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Resumo
Este artigo propõe, a partir da história da psiquiatria e da psicanálise, pensar um mais além do antagonismo entre elas. Essa condição se faz necessária para a abertura de novos contextos onde os efeitos dos psicofármacos podem também ser percebidos e analisados.


Palavras-chave
Psicofármacos; DSM-III; psiquiatria fenomenológica.


Autor(es)
Silvia Inglese Ribes Ribes
psiquiatra, assistente do Hospital Universitário da usp, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora, nesse departamento, do grupo de trabalho: Medicações psiquiátricas em análise: como, quando e por quê.


Notas
Este artigo foi escrito a partir de minha apresentação como interlocutora do "Grupo de trabalho medicações psiquiátricas em análise: como, quando e por quê" no último evento Entretantos promovido pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no segundo semestre de 2016, cujo tema foi "Política e psicanálise".


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Abstract
This article proposes to reflect, from the history of Psychiatry and of Psychoanalysis, farther on their antagonism. This is the necessary condition to the opening of new contexts in which psychotropic drugs effects could be analysed and studied.


Keywords
Psychotropic drugs; DSM-III, Phenomenological Psychiatry

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 TEXTO

Psiquiatras, psicanalistas e os psicofármacos – historiando na direção de um reposicionamento

Psychiatrists, psychoanalysts and psychotropic drugs – a review of the question
Silvia Inglese Ribes Ribes

Psiquiatras, psicanalistas e os psicofármacos. Sim, Freud não negou seu interesse pelas substâncias químicas nem a expectativa que tinha em relação a elas.

 

E o surgimento da psicanálise não se deu como uma oposição à psiquiatria organicista da época, nem como um questionamento do uso das medicações psiquiátricas e dos tratamentos somáticos vigentes. Psicanalistas prescreveram drogas e indicaram tratamentos físicos (como a eletroconvulsoterapia - ECT) por pelo menos algumas décadas. 

 

A partir desses fatos, nossa proposta é apresentar alguns elementos do contexto histórico em que aproximações entre psiquiatria e psicanálise foram possíveis, bem como os aspectos políticos que contribuíram para a grande oposição entre esses dois saberes por ocasião da publicação da terceira versão do manual de diagnóstico e de estatística americano, o DSM-III, em 1980.

 

Não deixamos de ter em mente que tratamos de dois campos distintos do conhecimento, que em determinados momentos puderam encontrar diferentes formas de convivência e de colaboração, mas que em outros momentos se distanciaram e encontraram formas de oposição. 

 

Tanto a psiquiatria como a psicanálise são atividades clínicas. E se nos dedicamos a esta incursão pela história, é com o objetivo de refletir sobre a clínica atual, em especial a clínica psicanalítica. 

 

A psiquiatria surgiu como especialidade médica na Europa no início do século xix e teve uma dupla origem: a neurologia e os asilos. No séc. xix a neurologia se ocupava das neuroses, não no sentido freudiano, mas naquele proposto por Cullem em 1785. Elas compreendiam doenças hoje consideradas neurológicas, como a doença de Parkinson, a coreia e a epilepsia, mas também a histeria e a hipocondria. A neurologia era exercida nas cidades e estava ligada a centros universitários. Os psiquiatras, por sua vez, se ocupavam de pacientes mais graves, que ficavam nos asilos localizados inicialmente em castelos e conventos. A partir de 1830 foram construídos asilos na zona rural. Na época prevalecia a ideia de que o isolamento em ambiente rural poderia favorecer o restabelecimento do paciente. Mas não deixava de ser também uma forma de segregação dos doentes. Os asilos, diferentemente da universidade, estavam submetidos ao poder político e econômico do Estado. Foi nessa condição que, na época nazista, começaram a surgir ali práticas eugênicas. 

 

Esse é o contexto da dupla origem da psiquiatria: a neurologia, científica universitária, e a psiquiatria asilar. Sua dupla origem foi, e ainda é, fonte de muitos conflitos, que dizem respeito ao seu caráter científico e de especialidade médica. Uma especialidade sempre ameaçada de desaparecer ou ser substituída por disciplinas não médicas. 

 

Na época de Freud a psiquiatria era kraepeliniana, uma psiquiatria de caráter organicista e que dava valor aos aspectos hereditários da doença mental. Freud não se opunha a essa psiquiatria. Na conferência xvi, "Psicanálise e Psiquiatria", faz uma comparação entre elas, aponta diferenças, mas não entendia que existisse uma contradição. Ao contrário, acreditava que talvez uma pudesse suplementar a outra. Freud também mantinha a mesma posição em relação à perspectiva de que medicamentos pudessem agir sobre o psiquismo. No "Esboço de Psicanálise", escreveu sobre a possibilidade de, no futuro, existirem substâncias químicas que atuassem sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho mental. 

 

Freud também sustentou um diálogo com a psiquiatria de sua época a partir de uma visão política que pretendia garantir a entrada da psicanálise no campo dos conhecimentos científicos. A proximidade com a psiquiatria institucional poderia conferir credibilidade à psicanálise.

 

A amizade que Freud tinha com o psiquiatra suíço Bleuler e a simpatia que este tinha pela teoria freudiana (apesar de não concordar integralmente com ela) fizeram com que a psicanálise fosse inserida no hospital dirigido por ele, o Burghölzli. Na Suíça, diferentemente da Alemanha, os grandes hospitais eram também universidades clínicas. Esse era o caso do Burghölzi. Bleuler, como professor universitário, propiciou a formação de seus alunos dentro da teoria e da clínica psicanalítica. Muitos deles se tornaram psicanalistas, como Jung e Abraham, e outros, como Binswanger e Min­kowski, não se tornaram psicanalistas, mas mantiveram um espaço de diálogo com a psicanálise a partir da psiquiatria fenomenológica.

 

Bleuler, diferentemente de Freud, foi crítico da nosologia kraepeliniana. Ele abandonou o diagnóstico de demência precoce e propôs o de esquizofrenias em 1911. Com isso transformou profundamente a psiquiatria da época, instalando uma psiquiatria fundamentada na psicopatologia e não mais na hereditariedade, nem na dependência da evolução da sintomatologia. 

 

O movimento psicopatológico a partir da fenomenologia foi inaugurado na França por Eugène Minkowski. Ele publica entre outras obras A esquizofrenia em 1927 e O tempo vivido em 1933. Na Suíça, Binswanger desenvolve, na mesma época, os fundamentos da fenomenologia existencial que procurava reconstituir, e tornar inteligível, a experiência interna do paciente. Binswanger ocupou-se principalmente da experiência psicótica na mania e na melancolia. Ele foi amigo de Freud e questionou a psicanálise a partir da filosofia e da psiquiatria, mas também se deixou por ela ser questionado. 

 

A psiquiatria fenomenológica afastou-se do naturalismo da psiquiatria organicista e passou a ter que lidar com a ambiguidade entre filosofia e clínica, uma vez que não pretendia ser mera aplicação da fenomenologia de Husserl, nem da analítica existencial de Heidegger. Para a psiquiatria fenomenológica, a experiência abrigava algo além do fato objetivo percebido nas alterações comportamentais. Esse algo além era a essência da experiência vivida. No caso das patologias a própria essência se modificava, transformando a experiência vivida de forma global. Não se tratava mais, nesse contexto, de pensar o patológico como redutível aos distúrbios das funções parciais do psiquismo. 

 

Minkowski, de acordo com essa concepção, entende que o que importa na esquizofrenia, por exemplo, não são os delírios ou as alucinações, mas a perda do contato vital com a realidade. 

 

Se na Europa a proximidade com a psicanálise se deu através da psiquiatria fenomenológica desenvolvida pelos ex-alunos de Bleuler, e outros que mais tarde se dedicaram a essa tarefa, nos EUA a psicanálise se tornou parte integrante da psiquiatria que ali começava a se desenvolver. 

 

A psiquiatria nos EUA

A psiquiatria americana foi organizada por Adolf Meyer, no fim do séc. xix. Ele construiu as bases de um sistema de formação que permitiu a expansão da psiquiatria americana depois da Segunda Guerra Mundial. Meyer rejeitava a nosologia médica de Kraepelin e considerava que as patologias só poderiam ser descritas como formas reativas a múltiplas causas. A partir dessa concepção, Mey­er, como Bleuler, apoiou o movimento psicanalítico, apesar de não aderir à psicanálise como prática, nem endossar integralmente sua teoria. Ele apoiou também teóricos da comunicação, bem como a antropologia cultural e as terapias humanísticas. Antes da Segunda Guerra a psicanálise já estava organizada nos EUA, e, no pós-guerra, o país recebeu uma quantidade enorme de psicanalistas europeus. Sua influência na psiquiatria e na medicina foi então grande, tendo surgido a psiquiatria dinâmica e a medicina psicossomática. A Sociedade de Psicanálise e a Associação Americana de Psiquiatria foram, nessa época, instituições muito próximas, até porque nos eua apenas os médicos poderiam se tornar psicanalistas. Diferentemente do que ocorria na Europa, a psicanálise nos eua era ensinada nas escolas médicas, e nos anos 1960 todos os chefes de departamento de psiquiatria eram psicanalistas. Depois de Meyer, Menninger teve grande destaque na psiquiatria americana e não mediu esforços para americanizar, medicalizar e popularizar a psicanálise. Esse fato, é de se imaginar, não agradou a toda a comunidade de psicanalistas, principalmente aqueles de origem europeia que queriam se manter fiéis a Freud e tinham receio de que a psicanálise fosse "engolida" pela psiquiatria e pela medicina. 

 

Nos anos 1960 começou, nos EUA, uma preocupação com a delimitação e a confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. A psiquiatria, além da base psicanalítica, tinha um caráter social e incluía, na sua prática, a noção de adaptação ao mundo e aos outros. A orientação teórica da psiquiatria, que remetia à psicanálise, às ciências sociais e à interação com o meio ambiente, não fornecia fundamentação para o tipo de objetividade que passou a ser solicitada pelos estudos epidemiológicos e pela pesquisa com novas drogas psicoativas. Havia pouco interesse pelo modelo médico e pela classificação das doenças mentais. Esses novos campos de pesquisa necessitavam, para se desenvolver, de uma clara distinção entre normal e patológico. A seguridade social, por sua vez, questionava o reembolso de psicoterapia para tratamento de meros "aborrecimentos" da vida. Instalou-se assim uma reação contrária à psicodinâmica e à ideia de uma continuidade entre a saúde e a doença. Esse contexto fez com que a psiquiatria ficasse novamente ameaçada de perder seu lugar como especialidade médica. E essa ameaça aumentava com o fato de que cada vez mais trabalhadores não médicos desempenhavam a assistência em saúde mental, e de que médicos generalistas cuidavam das prescrições de pacientes ambulatoriais, que eram os mais numerosos. O único lugar realmente garantido aos psiquiatras eram os asilos, mas estes estavam em declínio. A política federal vinha trabalhando no sentido de desativá-los e promover a atenção primária e a psiquiatria comunitária.

 

Era preciso, então, que a psiquiatria americana encontrasse urgentemente uma maneira de se manter como especialidade médica. Como esse contexto evocava, em alguma medida, a psiquiatria alemã do início do séc. xx, os americanos propuseram um retorno a Kraepelin. Kraepelin tinha organizado uma nosologia psiquiátrica de acordo com princípios da bacteriologia e da psicologia experimental, a fim de que a psiquiatria fosse considerada disciplina médica e pudesse receber recursos financeiros. O retorno a Kraepelin pela psiquiatria americana constituiu o movimento neokraepeliniano, que foi muito mais radical do que o próprio Kraepelin havia sido. Esse movimento propôs, de forma geral, o retorno à saúde mental de orientação médica, a exclusão da psicanálise do campo da psiquiatria, a rejeição da ideia de influência do ambiente nas patologias e a distinção clara entre normal e patológico. 

 

Como resultado desse movimento surgiu, a partir dos anos 1970, pesquisa e publicações sobre critérios diagnósticos, principalmente na Universidade de Washington, em St. Louis. Eles visavam a uma classificação válida e uniformizada com o foco no orgânico. 

 

Nessa época a maioria dos primeiros novos medicamentos já estava em uso. Eles surgiram a partir da década de 1950 com a clorpromazina, primeiro antipsicótico, e a imipramina, um antidepressivo tricíclico. Em 1957 surgiram os imao, também antidepressivos, e em 1960, o clordiazepóxido, primeiro ansiolítico. 

 

A indústria farmacêutica estava animada com a perspectiva de expandir um negócio lucrativo. A sociedade, também muito confiante nos avanços da medicina, principalmente depois da descoberta dos antibióticos, depositava grande expectativa na cura das doenças mentais com medicamentos. A pesquisa psicofarmacológica foi largamente financiada tanto nos eua como na Europa.

 

Os psicanalistas, por sua vez, também participaram desse clima de euforia e muitos deles, tanto na Europa como nos eua, se interessaram pelas novas medicações que surgiam. 

 

Nos eua, nos anos 1950 e 1960, psicanalistas indicavam os novos medicamentos, assim como tinham feito anteriormente com a anfetamina. A abordagem psicanalítica não chegou a ser inteiramente resistente à prescrição dos psicofármacos, nem ao ect. Alguns psicanalistas - como Azima, Sarwer-Foner e Ostow - também se ocuparam em pensar o efeito das drogas a partir de conceitos da metapsicologia freudiana. Sarwer-Foner publica, em 1959, artigo em que analisa o efeito da medicação neuroléptica (antipsicótica) na interação psicoterapêutica de pacientes internados ou atendidos ambulatorialmente. Na mesma época publica artigos em que aborda aspectos da transferência e da contratransferência relacionados ao uso de medicações psiquiátricas. Ostow escreve sobre o uso das medicações em psicanálise, também em 1959. 

 

Enquanto isso...

Na França, a introdução dos antipsicóticos promoveu vários estudos teóricos. Também nos anos 1950 e 1960, psicanalistas como Green, Racamier, Guyotat, Lambert, e um pouco depois Jeanneau, entre outros, produziram textos descrevendo o efeito dos psicofármacos usando conceitos da metapsicologia freudiana. Discutiam a ação deles pela via pulsional e também estudavam a nova relação médico-paciente que se produzia. 

 

Psiquiatria, psicanálise e a experiência com os psicofármacos encontraram, nessa época, muitas formas de convivência e de colaboração, mas uma oposição radical se instalou a partir da publicação do DSM-III, em 1980. 

 

A história...

A partir da publicação do DSM-III, psicanálise e psiquiatria se tornam antagônicas. Na verdade se tratava de uma oposição entre a psiquiatria relacionada com a psicanálise, que precisava ser erradicada, e uma nova psiquiatria, desta vez "científica", que vinha ocupar seu lugar. Até 1980 a clínica era soberana, depois passou a ser considerada muito subjetiva e por isso de pouca confiança.

 

Entendia-se que alguma mudança era necessária na psiquiatria americana, mas a radicalidade dessa mudança e a força com que se instalou não encontraram precedentes. Conceitos psicanalíticos foram excluídos e uma classificação sintomática, pretendida ateórica, foi proposta, baseada em critérios operacionais e em ciências estatísticas. Mas não se tratava apenas de uma nova classificação diagnóstica. Era uma nova clínica psiquiátrica que se colocava de caráter científico porque seus diagnósticos eram confiáveis, ou seja, diversos psiquiatras chegariam ao mesmo diagnóstico para um mesmo paciente. 

 

O DSM-III mudou também todo o campo da saúde mental, conferiu mais poder ao médico e à psiquiatria, que teria, sozinha, o poder de determinar a abrangência do que seria considerado patológico. E esse campo vem se alargando a cada atualização do manual. Não podemos esquecer que uma classificação tem dimensões políticas e econômicas muito abrangentes. Uma classificação determina a prevalência das patologias, o que orienta a política de saúde pública e a distribuição orçamentária. Também determina direitos em relação à seguridade social. 

 

Com o passar dos anos, o DSM-III influencia a psiquiatria mundial, principalmente porque teve sucesso na difusão das alterações que promoveu na pesquisa e nas publicações da especialidade. Antes do surgimento do manual americano existiam diferenças entre psiquiatria americana e europeia, sendo que a psiquiatria europeia também não era homogênea, com variações principalmente entre a França e a Alemanha, e algumas particularidades interessantes na Escandinávia e na Espanha. Penso que essas variações significavam mais uma riqueza de pensamento do que imprecisão e falta de caráter científico. 

 

A colaboração entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria já existia, mas se acentua com o DSM-III. Aliadas, trabalharam juntas na construção daqueles que seriam os sintomas alvo de determinada droga, sintomas estes que caracterizariam uma determinada categoria diagnóstica. Por sua vez, o mecanismo de ação da droga validaria uma suposta fisiopatologia para essa categoria. 

 

A colaboração entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria começou a ser importante, como já apontamos, antes da publicação do DSM-III, mais exatamente a partir dos anos 1950. Até o início dos anos 1960, já tinham sido descobertos ou "escolhidos" aqueles que seriam os novos medicamentos psiquiátricos. Mas a maior novidade não estava nas drogas, referia-se à mudança do campo conceitual em que elas passaram a se inscrever. 

 

O novo contexto em que as drogas psiquiátricas passaram a fazer parte foi nada mais, nada menos, que aquele dos antigos tratamentos somáticos em psiquiatria. 

 

As terapias somáticas eram o coma insulínico, o choque com cardiazol ou a eletroconvulsoterapia (ect), e a cirurgia cerebral. Até 1950 o enfoque da psiquiatria não era medicamentoso. As terapias somáticas é que eram consideradas específicas para determinadas patologias, eram elas que davam credibilidade ao diagnóstico e legitimavam a psiquiatria como especialidade médica. 

 

Mas não devemos entender a partir disso que não se utilizavam as substâncias psicoativas. Muito pelo contrário. As drogas eram largamente indicadas, mas seu uso não era considerado "científico". Elas não eram discutidas nem mencionadas em publicações científicas. Sabemos do seu uso pelo registro em prontuários de pacientes. 

 

As drogas - como os barbitúricos, paraldeído, brometos, anfetaminas e canabis - foram muito utilizadas antes de 1950, assim como derivados da morfina e derivados do meimendro. 

 

A anfetamina começou a ser usada a partir de 1935, e o metilfenidato a partir de 1954. Eles eram indicados como estimulantes de uso ambulatorial, no tratamento da fadiga e do desânimo. Provavelmente eram consumidos pela mesma população que hoje utiliza os antidepressivos fluoxetina ou sertralina (isrs). 

 

Tônicos diversos estavam disponíveis há séculos para fadiga e nervosidade. Eles aumentavam o apetite e melhoravam o sono. Foram usados até 1950. Um deles, a cyproheptatina, era um anti-histamínico muito semelhante à imipramina (antidepressivo tricíclico, o Tofranil). Era também considerado tônico um fitoterápico, Erva de São João, hoje regulamentada como antidepressivo (Hypericum Perforatum). A isoniazina, um antituberculoso, foi também utilizada como tônico. 

 

Para a psiquiatria sempre foi importante a ideia de especificidade do tratamento, que atingiria uma suposta causa biológica da patologia. Até 1950 os tratamentos físicos e cirúrgicos se adequavam mais a essa ideia do que as drogas. Os medicamentos eram considerados paliativos, inespecíficos ou sem interesse científico, mas muito utilizados. Já o tratamento por choque elétrico ou cardiazol era considerado específico para a depressão, e o coma insulínico e as cirurgias cerebrais, como a lobotomia, específicos para a esquizofrenia. 

 

A partir de 1950 as novas drogas passaram a ser consideradas específicas e curativas, como eram os tratamentos somáticos. Elas não eram mais entendidas como sintomáticas porque atingiam o mecanismo de ação da doença. Assim, graças em grande parte ao esforço de marketing da indústria farmacêutica, as novas drogas foram modeladas como tratamento específico para determinada patologia. E passou a ser obrigatória prescrição médica controlada. 

 

Na mesma época em que as novas drogas foram inscritas num novo registro conceitual, a compreensão das afecções psiquiátricas mais prevalentes na população se modificava. Um entendimento antes baseado na angústia e na ansiedade foi dando lugar a uma compreensão em termos de alteração do humor. 

 

O estudo conceitual e epidemiológico dos estados patológicos mais prevalentes na população era realizado pelos pesquisadores acadêmicos, mas esse trabalho não estava desvinculado dos interesses da indústria farmacêutica e do seu departamento de marketing, responsável pelo processo de construção de novos medicamentos. A primeira experiência de uma cooperação mais estreita entre a indústria e os pesquisadores da universidade foi provavelmente o lançamento da anfetamina como o primeiro antidepressivo. O sucesso dessa experiência impulsionou a cooperação entre os laboratórios farmacêuticos e os pesquisadores, e contribuiu para o lançamento das novas medicações. 

 

Cada nova droga descoberta passava por um processo de construção, que atendia os interesses convergentes da indústria e de uma psiquiatria que queria se manter científica, e que também queria aumentar seu campo de influência e poder através da abrangência cada vez maior das suas categorias diagnósticas. É dentro desse contexto que os fármacos foram e ainda são desenvolvidos e avaliados no que diz respeito à sua eficácia, efeitos terapêuticos e efeitos colaterais. 

 

Mas seria esse o único contexto possível para se pensar os efeitos de uma medicação? 

 

Em 1957 Roland Kuhn, psiquiatra suíço, aceita experimentar em pacientes internados uma nova substância - a imipramina (que depois foi considerada o primeiro antidepressivo, o Tofranil).

 

Kuhn tinha a expectativa de encontrar, nessa droga, efeitos antipsicóticos semelhantes aos da clorpromazina (Amplictil), utilizada no tratamento da esquizofrenia. Mas não teve sucesso nesse sentido. 

 

Ele resolve, então, administrar a imipramina nos pacientes melancólicos. Depois de algum tempo começa a observar efeitos positivos. 

 

Kuhn era um psiquiatra que privilegiava a psicopatologia e a psiquiatria fenomenológica. Ele não era vinculado à indústria, nem estava comprometido com a academia. Sentia-se livre para exercer sua clínica. 

 

E foi a partir da clínica que avaliou os efeitos da nova substância e criou o conceito de depressão vital. Essa noção incluía tanto aspectos físicos como psíquicos. Apontava a essência do sofrimento mental que encontrava na substância imipramina um agente terapêutico. 

 

O que achamos interessante na experiência de Kuhn é que foi a clínica, neste caso fenomenologia, que forneceu o contexto de experimentação e avaliação de uma substância. Foi sob a perspectiva da clínica que determinados efeitos foram percebidos e considerados terapêuticos. Também foi a partir da clínica que efeitos puderam ser propiciados. E, além disso, foi possível a criação de um entendimento, um conceito. A clínica comporta, do meu ponto de vista, uma abertura e uma dimensão criativa não valorizada nas pesquisas farmacológicas atuais.

 

A título de finalização

O desenvolvimento de um psicofármaco é, então, sempre um processo de construção. Pode ser construído visando a determinados sintomas alvos implicados numa adaptação performática do indivíduo, ou pode ser construído a partir da clínica psicopatológica com a orientação do conhecimento psicofarmacológico. 

 

As substâncias químicas precisam de um contexto, de um discurso, de uma política, para se efetivarem como fármacos. E esse contexto não precisa necessariamente ser uma psiquiatria de adaptação pragmática vinculada ao dsm, como nos mostrou Kuhn.

 

Fédida, na sua obra Dos benefícios da depressão, entende que é interessante para a psicanálise que o contexto da utilização e da análise dos efeitos dos psicofármacos seja o contexto da clínica. Esta dimensão, a da clínica, foi perdida pela psiquiatria a partir do DSM-III. E essa perda empobreceu a experiência com os psicofármacos, já que é a clínica que pode fazer surgir uma reserva terapêutica que não aparece nos procedimentos experimentais que utilizam questionários e escalas para validar um produto por seu efeito padrão. Segundo Fédida, quanto mais a psicoterapia souber receber e guiar o uso de um medicamento, maior será a reserva terapêutica de uma substância. E ele vai mais longe ao dizer que o aperfeiçoamento farmacodinâmico de uma substância química depende em grande parte da ação psicoterápica. Seria a fala em transferência que qualificaria uma molécula química como medicamento. 

 

Fédida, na mesma linha de pensamento de Freud, não deixa de se ocupar dos efeitos dos psicofármacos na clínica psicanalítica. Ele mantém uma postura crítica à prática psiquiátrica decorrente do surgimento do DSM-III, mas, assim como Freud, não se opõe ao diálogo com uma psiquiatria anterior ao manual americano. 

 

Propomos, assim, um mais além do antagonismo entre psiquiatria e psicanálise, uma vez que compreendemos que esse antagonismo se relaciona com interesses histórico-sociais e políticos que não são os nossos, engajados que estamos no estudo e aperfeiçoamento da clínica psicanalítica.


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