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Resumo
Através da teoria da sedução generalizada, Jean Laplanche apresenta a investigação da construção do originário na constituição subjetiva, partindo da hipótese de que o adulto, ao se ocupar do bem-estar e da sobrevivência da criança por meio dos cuidados dispensados ao seu corpo, envia-lhe mensagens enigmáticas, carregadas de conteúdos sexuais. Neste artigo procuro destacar a sensorialidade como campo de transição entre o biológico e o autoconservativo presente nesse processo e seus ecos na clínica psicanalítica.


Palavras-chave
psicanálise; corpo; sensorialidade; originário; teoria da sedução generalizada.


Autor(es)
Marcia Regina Bozon de Campos
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora dos cursos “Corpo: imagem corporal e identidade” e “O corpo na clínica” no mesmo instituto, mestre em comunicações e artes pelo ia/unicamp.


Notas
[i] {CONSIDERAÇÕES SOBRE A SENSORIALIDADE} J. Laplanche, "A pulsão e seu objeto-fonte", in Teoria da sedução generalizada, p. 79.

[ii] S. Bleichmar, A fundação do Inconsciente, p. 23.

[iii] S. Bleichmar, op. cit., p. 10.

[iv] S. Bleichmar, op. cit., p. 23.

[v] J. Laplanche. "A pulsão e seu objeto-fonte", in: Teoria da sedução generalizada, p. 78.

[vi] M. E. P. Labaki, "Sobre a sessão única e o rosto do analista - modulações na técnica", p. 73 a 82.

[vii] O conceito de metábola introduzido por Jean Laplanche pressupõe um processo inconsciente, que reúne a metáfora

[viii] J. Laplanche, "A pulsão e seu objeto-fonte", in: Teoria da sedução generalizada, p. 80.

[ix] O termo apoio para Freud remete a uma origem biológica

[x] J. Laplanche, "A pulsão e seu objeto-fonte", in: Teoria da sedução generalizada, p. 80.

[xi] Utilizo o termo incorporação no sentido de algo que vem de fora e se agrega ao corpo, como o alimento, que, após ser ingerido e processado, passa a constituir a própria matéria celular.

[xii] P. Aulagnier, "Nascimento de um corpo, origem de uma história", p. 107.

[xiii] O tônus representa o nível de tensão muscular involuntária presente em cada músculo do corpo, sendo que as variações tônicas ocorrem em sincronia com os estados emocionais, por exemplo, num estado de tristeza ou depressão o tônus tenderá a baixar, enquanto num estado de ansiedade ou de raiva o tônus tenderá a subir. O tônus pode, portanto, ser compreendido como uma expressão de nossas tonalidades afetivas.

[xiv] S. Freud (1923-1925), "O ego e o id e outros trabalhos".

[xv] D. W. Winnicott, "A capacidade de estar só", p. 35.



Referências bibliográficas

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Bleichmar S. (1994). A fundação do Inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas.

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Labaki M. E. P. (2006). Sobre a sessão única e o rosto do analista - modulações na técnica. Percurso, v. 19, n. 36, p. 73-82.

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Winnicott D. W. (1979). A capacidade de estar só. In ____. O Ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. São Paulo: Artmed.





Abstract
Through the theory of generalized seduction, Jean Laplanche states the original construction in the subjective constitution, from the hypothesis that the adult, by approaching the child with a peculiar sense of care, occupied with his well being and survival, through cares disposed to the children’s body, send him enigmatic messages, containing elements of sexuality. In this article, I attempt to declare the sensoriality as a transitional field between the auto conservative and erogenous present in this process, and it’s clinical implications.


Keywords
Psychoanalysis; body; sensoriality; originary; theory of generalized seduction.

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 TEXTO

Considerações sobre a sensorialidade na constituição do psiquismo

Considerations about sensoriality in the constitution of the psyche
Marcia Regina Bozon de Campos

Que quer de mim este seio que me alimenta, mas que também me excita; que me excita se excitando? Que quer ele me dizer, que ele mesmo não sabe?[i]

 

Nos primórdios da vida, todas as vivências afetivas, em sua maior parte relacionadas aos investimentos maternos, derivam de uma experiência interna que ocorre na interface entre o psíquico e o somático. Nesse tempo inicial, a sensorialidade pode ser pensada como campo transicional entre o autoconservativo e o erógeno, propiciando as trocas com o exterior que por sua vez permitirão que algo seja implantado no funcionamento endógeno da criança, possibilitando o surgimento da excitação sexual e marcando o início do processo de constituição do espaço psíquico a partir da sexualidade infantil.

Discordando do modelo freudiano que aponta o corpo como fonte da pulsão, Laplanche compreende que o advento da sexualidade, embora revelador da erogeneidade, não emerge do corpo, tendo sua origem num processo de tradução que a criança faz de algo proveniente do adulto e que lhe é implantado. Na concepção laplancheana, a sexualidade é, portanto, inaugurada por um processo de comunicação através do qual o adulto, através de gestos de cuidado, envia à criança mensagens carregadas de fantasias inconscientes portadoras de conteúdos sexuais. Considero importante destacar que para o autor a comunicação antecede o advento da linguagem, sendo ancorada em aptidões inatas como, por exemplo, as descritas no modelo do apego introduzido por Bolby, segundo o qual a criança seria portadora de uma capacidade inata de provocar a aproximação da mãe a fim de garantir a manutenção da vida. Em contrapartida, a mãe seria portadora de comportamentos de cuidado inatos desencadeados pelo contato com a criança. Embora o apego estabeleça uma evidente relação com o aspecto instintual, traz consigo a ideia de reciprocidade no contato entre a mãe e o bebê. Também é fundamental considerar que, ao dizer que a comunicação entre o adulto e a criança antecede a linguagem, Laplanche não ignora o fato de que a comunicação humana seja inevitavelmente marcada pela ambiguidade e pela complexidade da linguagem na qual o homem está imerso, considerando inconcebível a existência de uma modalidade de comunicação reduzida ao seu aspecto instrumental, já que toda comunicação humana está contaminada pela sexualidade. Podemos então compreender que a importância conferida ao apego por Laplanche se atribui à hipótese de o autor concebê-lo como uma onda portadora de mensagens carregadas de fantasias inconscientes e sexuais a serem implantadas pelo adulto no corpo da criança. A sensorialidade constitui um elemento fundamental nesse processo, impingindo uma receptividade somática que permite a implantação.

O trânsito entre corpo e psiquismo, tão inescapável e universal quanto a situação antropológica fundamental adulto-criança proposta por Laplanche, persiste por toda a vida, sendo sua compreensão imprescindível para percebermos a importância das relações entre o psíquico e o sensorial. A clínica tem me mostrado que o olhar dirigido às sutilezas da relação entre a sensorialidade e o psiquismo produz ecos na relação transferencial, representando um instrumento importante na análise, principalmente de pacientes cuja pobreza da capacidade de simbolização denota um severo comprometimento da constituição subjetiva.

Para refletir sobre essas questões, recorro a autores que se dedicaram à compreensão das origens do psiquismo num tempo primordial. Jean Laplanche, com a teoria da sedução generalizada, apresentada em 1987 no livro Novos fundamentos para a psicanálise, afirma o recalque originário como ponto de partida para a fundação do inconsciente e constituição do eu, desenvolvendo a questão da instalação do inconsciente e da sexualidade desde os seus primórdios. Já Piera Aulagnier, Silvia Bleichmar e também Winnicott atentam não apenas para a instalação da pulsão com seu caráter disruptivo, desligado e em busca de tradução, mas também para aquilo que, na relação primitiva com o outro, a partir dos cuidados maternos e do estabelecimento do vínculo, fornece os elementos de ligação necessários à instalação do recalque originário e da constituição do psiquismo.

Em constante diálogo com Freud, Laplanche radicaliza a premissa da primazia da sexualidade infantil e a importância do outro na constituição do inconsciente. A pulsão, originalmente postulada por Freud como um conceito limítrofe entre o psíquico e o somático, é revista na teoria laplancheana como proveniente da intrusão representacional e econômica decorrente da sedução à qual a criança é submetida pelo adulto que se ocupa dos cuidados com seu corpo, conduzindo-a ao ingresso na dimensão fantasística da sexualidade. A partir dessa premissa, a origem da pulsão perde seu caráter endógeno ou inato, passando a ser concebida como adquirida e epigenética, embora permaneça ancorada no corpo.

Piera Aulagnier contribui para essa reflexão a partir do seu postulado sobre a existência de um processo originário de constituição psíquica, cuja atividade é coextensiva à experiência corporal. Mais precisamente, a atividade do processo originário decorre das excitações provenientes das superfícies sensoriais a partir do encontro com um objeto exterior, sendo que as marcas desse encontro resultam em uma inscrição, um pictograma. No originário, a dualidade que compõe o encontro é ignorada, e a autoria das experiências de prazer ou de desprazer é atribuída às zonas sensoriais, de modo que toda experiência vivida será traduzida num fluxo de inscrições, através do qual a relação entre a zona sensorial e o objeto excitante se apresentará ou como investimento recíproco ou como tentativa de destruição. Metamorfoseando as afetações em hieróglifos corporais, essas primeiras inscrições pictográficas antecederão tanto a fantasia quanto qualquer possibilidade de nomeação por parte do eu.

 

A teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche

A teoria da sedução generalizada foi introduzida por Jean Laplanche com o intuito de retomar a concepção freudiana de trauma, relacionando-o à sedução inconsciente à qual a criança está submetida por parte do adulto. Apoiado na afirmação da existência do inconsciente e de sua origem sexual, Laplanche amplia a teoria da sedução postulada por Freud, conferindo novamente à alteridade um lugar fundamental na constituição do sujeito psíquico, já que, ao atribuir a fundação do inconsciente à pulsão, Freud minimiza, em certa medida, a importância do outro nesse processo. O autor apresenta a investigação da construção do originário na constituição subjetiva, partindo da hipótese de que o adulto, ao se ocupar do bem-estar e da sobrevivência da criança por meio dos cuidados que lhe são dispensados, envia-lhe mensagens enigmáticas, portadoras de elementos sexuais inconscientes.

Ao se referir à pulsão, Freud utiliza o termo Grenzbegriff (grenze - limite; begriff - conceito), para defini-la como um conceito limite, situado na fronteira entre o anímico e o somático, uma força cuja fonte é corporal, mas que exerce influência no campo psíquico. Assume claramente uma postura dualista, distinguindo a esfera corporal da esfera psíquica, mas na perspectiva deste artigo, em relação ao que estou destacando, é importante observar que isso não significa considerar que essas esferas sejam autônomas, ou tampouco que estejam submetidas a uma organização hierárquica.

A atribuição freudiana de uma origem somática à pulsão confere à fundação do inconsciente uma tendência biologizante, compreendendo a sexualidade humana como prioritariamente endógena, tendo o ego como ponto de partida. A teoria da sedução generalizada de Laplanche desmonta a concepção freudiana, atribuindo à sexualidade a emancipação do humano em relação ao biológico, partindo da hipótese de que a sexualidade é originada de um processo de tradução realizado pela criança das mensagens enigmáticas implantadas pelo adulto sedutor, sendo a pulsão derivada dos restos não traduzidos dessas mensagens.

Considero que o olhar sobre o papel da sensorialidade pode ampliar a compreensão sobre a complexidade dos processos corporais presentes nessa relação primordial, pois, embora a função sensorial dependa de um aparato biológico, a sensorialidade é, desde o início, marcada pela presença do outro, sendo responsável por garantir a abertura necessária para a introdução da sexualidade. Assim, as mensagens inconscientes dirigidas à criança serão implantadas pela via sensorial que, através de sua conexão imediata com as sensações de prazer e de desprazer, atribuirão ao inconsciente incipiente características próprias.

Silvia Bleichmar contribui para nossas reflexões postulando que "O fato de que haja uma energia somática que se torna energia psíquica, em princípio sexual, é efeito da intervenção de um comutador não existente no organismo como tal, senão no encontro com o objeto sexual oferecido pelo outro"[ii]. Se por um lado, em concordância com Laplanche, Bleichmar afirma a importância fundamental da alteridade na instauração da sexualidade a partir da "estreita relação existente entre o psiquismo infantil incipiente e o inconsciente materno"[iii], por outro distancia-se em certa medida da teoria da sedução generalizada ao atribuir ao adulto uma função de duplo comutador, responsável por implantar as mensagens sexuais e simultaneamente oferecer à criança recursos de simbolização através da contenção e do apaziguamento das intensidades provocadas pela implantação. A autora confere ao adulto sedutor o papel de tradutor parcial de suas próprias mensagens através da ligação terna e amorosa que estabelece com a criança, retomando parcialmente a concepção freudiana segundo a qual a descarga exigida pelo aumento de tensão decorrente dos processos de autoconservação se dá por uma ação específica impossível de ser realizada pelo bebê em seus primórdios, de modo que da mãe dependerá a condução dessa descarga, a qual, consequentemente, apaziguará a tensão promovendo uma vivência de satisfação. Bleichmar observa que "a vivência de satisfação não se constitui pela simples satisfação nutritiva, senão pelo fato de que esse elemento nutrício é introduzido pelo outro humano, sexuado, provido de inconsciente e cujos atos não se reduzem ao autoconservativo"[iv].

Será justamente nesse momento que mensagens enigmáticas serão endereçadas à criança gerando restos que produzirão inscrições no seu inconsciente rudimentar. Ora, esses gestos serão dirigidos ao corpo do bebê, não havendo, portanto, outra entrada para tais inscrições que não o campo da sensorialidade através de seus mecanismos capazes de receber e imediatamente inserir a informação sensorial na cadeia de prazer-desprazer. Nas palavras de Laplanche a respeito desse processo, "a autoconservação implica uma abertura imediata ao mundo, abertura perceptiva e motora do organismo sobre seu ambiente"[v], sendo justamente essa abertura ao outro mediada pelo estado de desamparo no qual o bebê humano vem ao mundo que o humaniza. Esse processo de humanização se dá, justamente, pelo atravessamento dos significantes enigmáticos carregados de conteúdos sexuais inconscientes desconhecidos pelo próprio adulto.

A visão da autoconservação da vida como prioridade inata, que tem como consequência a predisposição do bebê a uma abertura imediata ao mundo, é uma ideia central no pensamento de Jean Laplanche, que o leva a negar veementemente a visão solipsista de um organismo em princípio fechado sobre si mesmo que só a posteriori viria a se abrir ao objeto, afirmando definitivamente a importância da alteridade na constituição do inconsciente.

A partir disso podemos pressupor que o bebê humano seja dotado de uma capacidade inata de receber e de processar, ao menos parcialmente, os conteúdos que o adulto inconscientemente "decalca"[vi] sobre sua pele psicofisiológica. Conteúdos que tanto podem ser de natureza sensorial como verbal, se considerarmos as palavras desvinculadas de seu significado, ou seja, reduzidas ao som e à melodia da entonação materna. Num primeiro momento, antes do recalcamento primário, o decalque acontece na periferia do corpo da criança, sobre uma derme psicofisiológica. Conforme postula Jean Laplanche, será somente após as sucessivas tentativas de metabolização que os restos não metabolizados darão origem aos primeiros objetos-fonte das pulsões, as quais, embora ainda localizadas na periferia do corpo, passam a constituir as primeiras inscrições psíquicas que mais adiante virão a constituir o eu-instância, uma transposição psíquica do eu-corporal, correspondente a uma primeira imagem da totalidade do corpo adquirida pela criança.

Podemos ainda supor que essas comunicações inconscientes sejam moduladas pelos ritmos e intensidades provenientes do corpo do adulto, decorrentes das sensações de prazer e de desprazer que o contato com o corpo da criança propicia, e que o conteúdo inconsciente contido nessas mensagens portará significantes enigmáticos que demandarão da criança um esforço para traduzi-los. Devido à dificuldade de serem processadas pela criança, essas mensagens enigmáticas serão metabolizadas[vii] apenas parcialmente, sempre deixando restos. A hipótese do autor é que esses restos constituirão, portanto, os objetos-fonte da pulsão que, por sua vez, corresponderão às representações recalcadas que exercem sobre o ego-corpo uma estimulação constante desde o interior do psiquismo. Nas palavras de Laplanche, a pulsão deriva da "ação dos objetos-fonte recalcados sobre o corpo; isto através do Ego que é antes ego-corpo e no qual, bem naturalmente, as zonas erógenas se tornam os lugares de precipitação e de organização de fantasias"[viii].

Laplanche desconstrói a teoria do apoio[ix] afirmando que "a única verdade do apoio é a sedução originária"[x], pois serão justamente as ações de cuidado conferidas pelo adulto ao corpo da criança visando garantir sua sobrevivência que portarão as mensagens enigmáticas impossíveis de serem totalmente traduzidas. Podemos estabelecer aqui um diálogo entre Laplanche e Winnicott reconhecendo o duplo paradoxo de que a mãe que traumatiza o bebê ao mesmo tempo o ampara, e o bebê passivo é ao mesmo tempo tradutor. Nesta perspectiva, será a capacidade da mãe de investir narcisicamente seu bebê através do manejo de seu corpo, por exemplo, através da sustentação de sua cabeça, conferindo uma sensação de segurança e estabilidade, ou da música contida na entonação de sua voz buscando acalmá-lo, que propiciará o processamento de ao menos parte da excitação provocada pelo transbordamento da sexualidade traumática contida no investimento materno.

 

Contribuições de Piera Aulagnier:
a corporeidade no processo originário

A afirmação do inconsciente a partir do recalcamento originário como determinante nas origens do sujeito psíquico presente em Laplanche encontra possibilidades de interlocução com as investigações de Piera Aulagnier sobre a atividade de representação pictográfica que é própria ao processo originário, quando a percepção do mundo externo só poderá se dar por meio das alterações que este impõe ao corpo do infante, sendo que o efeito no psiquismo ocorre através da inscrição das sensações corporais. A autora considera que no processo originário existe uma atividade psíquica peculiar, compreendendo a atividade do originário como equivalente ao processo metabólico do organismo pelo qual algo do meio externo é incorporado[xi] e se transforma no próprio organismo, tornando-se homogêneo a ele. No psiquismo, os elementos a serem metabolizados seriam as informações provenientes da sensorialidade do indivíduo no seu contato com o meio e com a alteridade.

Neste tempo primordial, o conhecimento do mundo se dará pelos efeitos vividos a partir dos investimentos e desinvestimentos no campo somático, de modo que os primeiros elementos do alfabeto do originário derivam da atividade sensorial. Segundo Aulagnier, a primeira leitura que a criança fará do meio no qual está inserida será norteada pelas "[...] consequências do poder exercido pela psique dos outros que a rodeiam e que constituem suportes privilegiados de seus investimentos"[xii].

 

Conclusão

Entre o corpo biológico e o corpo erógeno, podemos considerar a existência de um campo sensorial, ressaltando o papel fundamental da sensorialidade como um meio de informação contínua, imprescindível à sobrevivência e à atividade psíquica por representar uma abertura ao erógeno, que possibilitará os investimentos libidinais.

Ao dirigirmos o olhar para os processos que acompanham esse encontro inaugural entre a mãe e o bebê, deparamos com o papel fundamental da sensorialidade na constituição do erógeno, tanto em relação à função de comunicação estabelecida entre a dupla, como na impressão da cartografia somatopsíquica resultante das sensações de prazer e de desprazer vivenciadas pela criança nesse contato. Gostaria de ressaltar a importância da experiência tátil tanto no que se refere à construção da imagem de um involtório cutâneo, separando o dentro e o fora, como às experiências de sustentação e de contorno do corpo, fundamentais para que se efetive a discriminação entre o eu e o não eu e consequentemente a constituição egoica.

O contato entre o corpo materno e o corpo da criança delineia uma modalidade de comunicação que por sua vez é modulada pelos ritmos da corporeidade, diretamente relacionados à sexualidade inconsciente da mãe. Essa modulação rítmica constitui um diálogo tônico, pontuado por diferentes nuances do nível de tensão entre os corpos, envolvendo percepções sutis como dos movimentos respiratórios, batimentos cardíacos, variações de temperatura e de tônus[xiii] muscular. Para a compreensão das hipóteses presentes neste artigo, considero importante ressaltar que todas essas atividades corporais são regidas pelo sistema nervoso neurovegetativo, ou seja, são atividades autônomas diretamente conectadas aos estados emocionais, que no caso da mãe sofrem influência tanto de fatores conscientes como inconscientes, enquanto na criança derivam de experiências de satisfação ou de sofrimento. Também considero relevante lembrar que os processos de integração responsáveis pela constituição egoica decorrem da oscilação entre estados de tensão, provenientes da necessidade, e de relaxamento, provenientes da satisfação. Assim, se o ego, como afirma Freud[xiv], "se constitui como uma projeção mental da superfície do corpo", a sensorialidade oferece a possibilidade de trânsito das sensações e percepções corporais a uma esfera que transcende o biológico, se configurando como um veículo fundamental nos processos de constituição do sujeito psíquico. A sensorialidade pode, portanto, ser compreendida como um campo transicional, uma abertura ao outro, que permite a inscrição do novo, tanto a partir da instauração do sexual desligado como dos movimentos de ligação pulsional.

Na clínica psicanalítica contemporânea deparamos com patologias narcísicas que nos remetem ao não representado, ao sofrimento que, não encontrando palavras para se expressar, encontra no corpo alguma forma de inscrição. A escuta do analista para além das palavras será fundamental para adentrar o silêncio do vazio do campo do não traduzido, daquilo que permanece na impossibilidade de estabelecer conexões simbólicas. Estou me referindo à atenção do analista dirigida ao campo da sensorialidade, tanto no que se refere ao corpo do paciente, seus movimentos, variações de tom de voz, mudanças de tônus durante a sessão, como à percepção de seu próprio corpo sendo afetado pelo contato que se estabelece entre a dupla.

Gostaria de concluir esta breve reflexão com uma vinheta clínica que ilustra como elementos de sensorialidade podem contribuir no processo analítico: Ana, 23 anos, procura a análise por se sentir deprimida, sem rumo, impossibilitada de concluir a faculdade, ou de buscar trabalho, pois dores fortes no corpo a impediam de dirigir, de caminhar e de frequentar as aulas. Enredada numa relação amorosa marcada por uma dependência que remetia à adição, sofrendo pela infidelidade do companheiro, por seus desaparecimentos repentinos seguidos por retornos ruidosos, manifestava o desejo de pôr um término nessa relação e retomar a sua própria vida. Numa sessão a paciente, chorando angustiada, se pergunta por que não consegue se livrar desse homem se tem consciência do quanto ele a faz sofrer. Nesse momento seu corpo, encolhido, muito contraído, me remeteu a uma sensação de aprisionamento, de falta de espaço, o que me levou a reformular sua pergunta, dizendo: "sim, o que te prende a ele?". Fez-se um breve silêncio, seu corpo foi relaxando e enquanto puxava a manta que deixo no pé do divã nos dias frios, se aninhou virando para a janela e disse: "acho que é a temperatura, quando ele me abraça sinto que é o único lugar onde eu poderia estar". Ficamos em silêncio até o término da sessão, enquanto ela experimentava a possibilidade de descanso sentindo minha presença silenciosa ao seu lado, pois mesmo sem palavras o contato entre nós permanecia sustentado pelo ritmo comum de nossas respirações. Em um artigo lido na Sociedade Britânica de Psicanálise em 1957, Winnicott ressalta a capacidade de estar só como um dos sinais mais importantes do desenvolvimento emocional da criança, destacando que essa capacidade brota da experiência de ficar só na presença da mãe. Nesse mesmo artigo, o autor tece um paralelo entre tal capacidade e o silêncio na análise, afirmando que em algumas ocasiões o silêncio do paciente deve ser interpretado pelo analista como uma conquista e não como resistência. Mais adiante nesse mesmo texto o autor afirma que "É somente quando só (isto é, na presença de alguém) que a criança pode descobrir sua vida pessoal própria [...] quando só no sentido em que estou usando o termo, e somente quando só, é a criança capaz de fazer o equivalente ao que no adulto chamamos relaxar)"[xv]. Minha suposição, que depois se confirmou com a continuidade da análise, foi de que naquela sessão Ana havia encontrado outro lugar onde pudesse estar.

A hipótese colocada por Laplanche de que o pulsional e o inconsciente dizem respeito ao desligado, vivido como perigoso, a um Sexual que representa o que há de diabólico na sexualidade humana e que ignora os princípios autoconservativos nos ajuda a compreender o aprisionamento da paciente em suas escolhas causadoras de sofrimento. Nesta premissa, o autor opõe o Sexual a Eros, tecendo uma correspondência entre Eros e os processos de tradução capazes de acalmar as excitações.

Para Laplanche, a segurança do espaço analítico e instalação da transferência podem levar à atualização de elementos arcaicos, possibilitando que os restos não traduzidos das mensagens enigmáticas possam circular. Isso contribui para pensar minha hipótese de que a escuta estendida ao campo da sensorialidade, na sua qualidade de propiciar uma abertura ao outro, contribuiu para que a experiência vivida pela paciente na transferência possibilitasse novas vias de ligação.


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