voltar à primeira páginaResumo Ao retomar a teoria do recalque e da formação da tópica psíquica no âmbito de sua teoria da sedução generalizada, J. Laplanche aborda os complexos de Édipo e de castração para situá-los em relação a diferentes estratos do inconsciente. Este artigo apresenta uma análise crítica das formulações de Laplanche sobre a castração e, com o auxílio de algumas ideias de J. André sobre esse mesmo tema, busca mostrar o poder de recalque que a oposição fálico/castrado exerce sobre uma dimensão da sexualidade na qual os orifícios corporais e as fantasias de penetração ganham proeminência. Palavras-chave teoria da sedução generalizada; recalque; castração; Sexual. Autor(es) Paulo de Carvalho Ribeiro é professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da ufmg. Notas [i] {OSEXUAL O FÄLICO} Laplanche propõe que se traduza o termo Sachvorstellung por representação-coisa (e não representação dcoisa) justamente para marcar a ausência de função representativa desses conteúdos do inconsciente produzidos pelo recalque. [ii] J. Laplanche, "Court Traité de L'Inconscient", p. 87. (Todas as traduções do francês foram feitas por mim.) [iii] J. Laplanche, "Le genre, le sexe, le Sexual", p. 85. [iv] J. Laplanche, "Court traité...", p. 88-89. [v] J. Laplanche, Nouveaux fondements pour la psychanalyse, p.131-132. [vi] J. Laplanche, op. cit. p. 132. [vii] P. C. Ribeiro, "Perlaboração: feminilidade e transformação [viii] Cf. F. F. Lattanzio; P. C. Ribeiro, "Recalque originário, gênero e sofrimento psíquico"; P. C. Ribeiro; F. R. R. Belo, "Narcismo, gênero e sexualidade: aproximações entre Lichtenstein, Ferenczi, Laplanche e Butler". [ix] Laplanche denomina de situação antropológica fundamental a condição de desemparo e passividade do infante exposto à sexualidade inconsciente do adulto. [x] J. Laplanche, Problématiques II : Castration, symbolisations, p. 269. [xi] J. André, Aux origines féminines de la sexualité, p. 125. [xii] J. André define a passividade pulsional nos seguintes ter [xiii] No texto de apresentação de uma coletânea por ele organi [xiv] Laplanche utiliza o termo Sexual, que não existe na língua Referências bibliográficas André J. (1995). Aux origines féminines de la sexualité. Paris: PUF. ____. (2000). Le masochisme imnanent. In ____. (org.). L'énigme du masochisme. Paris: PUF. Bettelheim B. (1971). Les blessures symboliques. Paris: PUF. Freud S. (1924/2007). O problema econômico do masoquismo. In Obras Psicológicas de Sigmund Freud, vol III. Rio de Janeiro: Imago. (Trad. Luiz Hanns) Green A.; Pouillon J. (1971). Posfácio. In B. Bettelheim, Les Blessures symboliques. Paris: PUF. Laplanche J. 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He suggests that these complexes should not be thought of as occupying the deeper levels of the unconscious. This article brings a critical reading of Laplanche’s approach of the castration complex and, with the help of J. André’s contributions on this same subject, tries to point out the repressive power that the phallic/castrated opposition has on some aspects of sexuality in which bodyorifices and penetration phantasies prevail. Keywords theory of generalized seduction; repression; castration; Sexual. voltar à primeira página
| | TEXTOO sexual, o fálico e o orificial a partir da teoria da sedução generalizadaThe sexual, the phallic and the orificial seen from the viewpoint of theory of generalized seduction
Paulo de Carvalho Ribeiro
No "Curto tratado do inconsciente", de 1993, Laplanche apresenta de forma clara e quase esquemática sua posição sobre as relações entre recalque originário, processo primário e complexo de castração. Um dos principais problemas trabalhados por ele nesse artigo é a incompatibilidade da natureza não representativa dos objetos-fonte da pulsão com o processo primário, tomado como modo específico de funcionamento do inconsciente. De fato, ao conceber os objetos-fonte como restos não traduzidos das mensagens comprometidas pelo sexual inconsciente do adulto e associá-los às representações-coisa[i], Laplanche mostra exatamente a ausência de função representativa, o fechamento sobre si mesmo, a fixidez e a incomunicabilidade entre esses restos produzidos pelo recalque. Se pensarmos em termos das forças de desligamento e ligação que se opõem no psiquismo desde sua constituição e se manifestam, respectivamente, como pulsão de morte e pulsão de vida, os objetos-fonte da pulsão devem ser localizados inteiramente do lado do desligamento. Basta, portanto, considerar que o processo primário é caracterizado por um modo de funcionamento psíquico onde prevalece a mobilidade dos investimentos (como nos mecanismos de condensação e deslocamento), para que a incompatibilidade desse processo com a concepção de representações-coisa torne-se flagrante, pois não há como excluir desse modo de funcionamento as forças de ligação e a interação constante entre representações inconscientes. O complexo de castração e os diferentes estratos do inconsciente À semelhança do que ocorre com o processo primário, a existência de complexos inconscientes também vem se chocar com a ideia de desligamento. Laplanche admite a existência de moções inconscientes elementares, não coordenadas, dirigidas aos pais, mas quando tomado como uma forma destacada de estruturação da parentalidade, na qual se baseiam as trocas entre pessoas, o Édipo só pode ser visto como um verdadeiro "cimento" da alma contemporânea ("ce ‘liant' de l'âme contemporaine"), logo incompatível com o "império do desligamento" ("l'empire du ‘délie'")[ii] que é o domínio das representações-coisa. O mesmo vale para o complexo de castração, inteiramente fundado na oposição fálico-castrado, logo, uma forma de negação, que opera como um grande organizador tanto no âmbito do tratamento simbolizante da angústia gerada pelo ataque interno da pulsão, quanto em níveis mais abrangentes e mais elevados do funcionamento psíquico, como o da lógica binária. De fato, não é possível conciliar a negação e a oposição binária com a ausência de coordenação e de referência entre as representações-coisa. Sobre essa incompatibilidade dos complexos com os elementos constitutivos do inconsciente, não podemos deixar de considerar um desdobramento importante da análise que Laplanche faz do complexo de castração em seu artigo de 2003, intitulado "O gênero, o sexo, o Sexual". Nesse artigo, ele lança mão dos estudos de dois pesquisadores norte-americanos, Roiphe e Galenson (1981), para desvincular o complexo de castração do complexo de Édipo e estabelecer uma relação direta da castração com a descoberta da diferença anatômica dos sexos. Pretende-se assim demonstrar o efeito organizador e recalcante que a lógica binária da presença ou ausência do pênis tem sobre o caráter enigmático da atribuição do gênero pelo pequeno socius familiar. O que mais chama atenção nesse desdobramento da análise laplancheana do complexo de castração é, no entanto, a tese com a qual ele pretende fundamentar o recobrimento da diferença anatômica pela lógica binária. Para Laplanche, para que possamos entender a famosa afirmação freudiana segundo a qual a anatomia é o destino, é preciso considerar que se trata de uma anatomia sem compromisso com o rigor científico, inteiramente fundada na percepção, ou até mesmo na ilusão, e que pode ser considerada uma anatomia popular. Sua origem remontaria à adoção da posição ereta pelos seres humanos. A anulação perceptiva dos órgãos genitais femininos, uma vez que teriam se tornado inacessíveis à visão e ao olfato, transforma a diferença dos sexos em diferença de sexo. A percepção da presença ou ausência de apenas um sexo não teria nenhuma relação com a biologia ou com a fisiologia, tampouco com a diferença macho/fêmea. Dessa forma, a diferença de sexo passa a ter o status de significante e a ser considerada um esqueleto de código que se manifesta como complexo de castração no indivíduo, ou seja, como uma verdadeira ideologia. É o que podemos verificar na seguinte passagem: Não é um destino extraordinário esta contingência? A posição ereta torna os órgãos femininos perceptivelmente inacessíveis. Ora, esta contingência foi elevada por muitas civilizações, e sem dúvida a nossa, ao posto de significante maior, universal, da presença/ausência[iii]. Independentemente de se concordar ou não com essa tese de Laplanche sobre a origem do complexo de castração e sua lógica binária, o que ela estabelece de forma clara é o poder recalcante desse complexo, logo, sua posição secundária relativamente às representações-coisa constitutivas do inconsciente e que funcionam como objetos-fonte da pulsão. A solução desse problema metapsicológico impôs uma estratificação do inconsciente. Valendo-se da existência de dois tipos de recalque, originário e secundário, Laplanche propõe distinguir, esquematicamente, dois níveis do sistema inconsciente. O nível mais profundo, o do recalque originário, seria o domínio do desligamento e dos protótipos inconscientes caracterizados pela fixidez, pelo isolamento e pela atração que exercem não entre eles mesmos, mas sobre as representações que se encontram ao alcance deles. No nível do recalque secundário, onde vigora o processo primário, já teríamos alguns elementos de ligação e a possibilidade de oposição e composição entre as pulsões de morte e de vida. Estabelecida a estratificação do inconsciente, Laplanche esclarece que os complexos estão excluídos do inconsciente originário e podem estar presentes no secundário, mas com a seguinte ressalva: a negação permaneceria excluída até mesmo desse estrato secundário. Para justificar como a castração se encontra ali presente sem implicar negação ou contradição, Laplanche traz um esclarecimento que me será muito útil para as considerações que farei adiante sobre o fálico e o orificial: A ferida castrativa está ali presente [nos estratos secundários do inconsciente] como perfuração, abotoadura (boutonnière), até mesmo como corte (tranchement), mas não como amputação (retranchement). Pode-se cortar um corpo em mil pedaços, pode-se cortar incompletamente. Mas amputar o pedaço "falo" é uma negação em ato, terminando no "castrado". Como tal, a amputação castrativa não pertence ao inconsciente[iv]. Antes de dialogar com essa posição defendida por Laplanche e assim apresentar meu ponto de vista sobre o problema da castração e sua inserção no inconsciente, algumas considerações sobre o surgimento da tópica psíquica e sua relação com o recalque se fazem necessárias. O recalque, a tópica psíquica e o "tempo auto" Em Novos fundamentos para a psicanálise, de 1987, Laplanche estabelece alguns pontos destinados a servir de baliza para um posterior aprofundamento da teoria sobre a gênese do eu e sua relação com o recalque. Um desses pontos teóricos ressalta a interdependência do surgimento da tópica psíquica e do recalque. Sobre isso, ele é muito claro quando afirma: "O ponto de vista tópico é indispensável para compreender o recalque, mas o recalque indispensável para compreender a tópica"[v]. Impõe-se, portanto, além da interdependência, uma simultaneidade na constituição desses dois fenômenos. A distinção entre eu-corpo e eu-instância permite a Laplanche estabelecer dois tempos do recalque originário e o efeito de a posteriori que se produz entre eles. Mas ao afirmar que no primeiro tempo já teríamos um eu-corpo que coincide com a superfície epidérmica[vi], ele acaba por pressupor uma importante dimensão do eu antes da consolidação do recalque. Isto é, essa hipótese leva a pensar que o corpo unificado precede a existência da projeção psíquica desse corpo, ou seja, o eu-instância. Basta, porém, acompanhar, na sequência imediata de seus argumentos, a descrição da transformação dos significantes enigmáticos (implantados nas zonas erógenas da periferia corporal) em objetos-fonte da pulsão (localizados internamente, ainda que agindo como externos ao eu) para perceber que o denominado eu-corpo, anterior ao surgimento do eu-instância, seria muito mais apropriadamente denominado de corpo fragmentado, marcado por significantes enigmáticos que se instalam como zonas erógenas desconectadas umas das outras. Trata-se, portanto, a meu ver, muito mais da necessidade de se levar em consideração o efeito de a posteriori entre o tempo autoerótico e o tempo narcísico, do que entre dois tempos narcísicos, como Laplanche parece sugerir. Uma rápida retomada da concepção laplancheana de autoerotismo pode nos ajudar na formulação de uma nova articulação entre recalque originário e surgimento da tópica. Em sua análise das teses freudianas apresentadas nos Três Ensaios, Laplanche procura salientar a importância do objeto na experiência autoerótica. "Tempo auto" é a denominação com a qual ele identifica o processo que é desencadeado pela perda do seio como objeto da autoconservação e que conduz à formação de objetos internos fantasmáticos, como o seio alucinado, ou a simples imagem mnêmica dos movimentos de sucção que, assim, se tornam independentes da mamada e da alimentação. Há, nesse processo, que coincide com o estabelecimento do campo sexual propriamente dito, uma prevalência da fantasia associada às marcas deixadas pelo objeto no corpo do infante. Na verdade, trata-se da sedução originária como fonte da fantasia e como instauradora de zonas erógenas às quais a fantasia se liga indissoluvelmente. Dessa forma, o "tempo auto" permite que o autoerotismo seja visto como precursor do narcisismo, como o mecanismo pelo qual a erogenização do corpo institui as zonas e os órgãos a serem conectados e transformados em corpo unificado, pronto para ser projetado no psiquismo como representante de uma totalidade. Parece-me muito claro, portanto, que, ao se referir aos significantes enigmáticos implantados na superfície corporal, Laplanche esteja muito mais próximo do autoerotismo do que do eu-corpo unificado, logo, muito mais próximo do autoerotismo que do narcisismo. Se estou certo nessa avaliação, é possível dar mais um passo em minha proposta de articulação entre o recalque e a tópica tentando responder às seguintes questões: considerando autoerotismo e formação do eu como dois tempos envolvidos no recalque originário, o que, exatamente, surge como recalcado nesse processo, e o que funciona como força recalcante? Em consonância com a característica de não coordenação, isolamento e fixidez das representações-coisa que agem como objetos-fonte da pulsão, é possível conceber o recalcado originário como um não corpo, ou seja, como fragmentos de uma superfície epidérmica carregada de excitações que se estenderiam da dor intensa ao prazer intenso; incluindo excitações viscerais, proprioceptivas, que também se estenderiam por uma vasta gama de qualidades sensoriais, tais como a sensação de fome ou de saciedade. Mas é imprescindível lembrar que todas essas excitações/sensações não pertencem a um sujeito consciente de si, embora sempre estejam associadas a fantasias elementares, pouco ou nada distintas de uma imagem simples e repetitiva, à qual viria se somar um som peculiar, por exemplo; outras vezes uma imagem colada a um odor; quiçá uma "fantasia" sem imagem, apenas um traço sensorial, como uma cor, um sabor, um ruído, uma textura ou um cheiro. A força recalcante, por sua vez, não tem como escapar do princípio de oposição que preside o recalque, logo, deve ser uma força de ligação, de formação de unidade e continuidade das excitações e das sensações em geral, a começar pela unidade corporal e o senso de continuidade de um ser que passa, por obra do recalque, a dispor de corpo e autoconsciência. O fálico, o orificial e o Sexual Uma precisão decisiva nessa concepção do recalque originário ainda deve ser feita: a constituição de um corpo delimitado e de sua representação psíquica onde o eu se aloja inaugura também a oposição entre interno e externo. A partir daí, torna-se possível incorporar, introjetar, expulsar, projetar e, principalmente, penetrar e ser penetrado. Talvez possamos dizer que reside aí, no fato de o corpo não ser hermético e sim orificial, o verdadeiro poder da anatomia no destino da sexualidade. De fato, o corpo unificado e orificial torna-se o representante tanto da totalidade quanto da suscetibilidade à efração, ao rompimento de barreiras, à violência da penetração, ao trauma, enfim. Não terei aqui a possibilidade de discorrer sobre o papel do trauma no pensamento de Freud e seus desdobramentos na teoria da sedução generalizada de Laplanche. Limitar-me-ei a dizer que o trauma e o sexual são, para ambos, inseparáveis. Tampouco retomarei a articulação detalhada entre os dois tipos de recalque e o efeito de a posteriori que, à semelhança do que se passa entre os dois tempos do recalque originário, também incide entre eles. A forma como os recalques, originário e secundário, assim como a temporalidade especial que sobre eles incide, conectam-se com a descoberta da diferença anatômica dos sexos, com o efeito dessa descoberta sobre a identidade de gênero e sobre os destinos da sexualidade feminina e masculina já foram longamente trabalhados por mim[vii] e por colegas meus[viii], em permanente diálogo não só com Laplanche, mas também com Jacques André e vários outros autores e autoras. No presente texto, o caminho metapsicológico percorrido destina-se a um fim bem específico: pôr em evidência um aspecto da teoria laplancheana da castração que poderia ter conduzido a uma concepção dos recalques originário e secundário, logo, a uma teoria sexual, muito mais condizente com a situação antropológica fundamental[ix], sobre a qual se apoia a tese da sedução generalizada. Para alcançar esse fim específico, retomarei a passagem, já citada, na qual Laplanche distingue corte (tranchement) de amputação (retranchement) para sustentar a tese freudiana da ausência de negação no inconsciente, afirmando que essa negação em ato, que é a amputação castrativa, não encontra lugar nem no recalcado originário nem no secundário. Na passagem já citada, Laplanche faz referência ao clássico livro de Leroi-Gourhan, As religiões da pré-história (1971), que já havia sido objeto de seu interesse nas Problemáticas II: castração, simbolizações (1980). Leroi-Gourhan chama atenção para o seguinte signo frequentemente presente nas pinturas pré-históricas do período neolítico: (()). Esse signo, que normalmente aparece no flanco dos animais representados nessas pinturas, indica, segundo o pré-historiador, tanto a ferida produzida pela lança do caçador quanto a vulva. André Green, ao comentar, juntamente com Jean Puillon, o livro As feridas simbólicas, de Bruno Bettelheim (1971), utiliza essa mesma observação de Leroi-Gourhan como um argumento em defesa da teoria freudiana da castração. Laplanche, por sua vez, pondera que se nossos ancestrais do período neolítico já estivessem de fato sob o poder da lógica fálica, deveríamos esperar que essas pinturas contemplassem muito mais a oposição entre animais fálicos e animais desprovidos de atributo fálico do que animais portando marcas que, evidentemente, referem-se tanto à ferida produzida de forma agressiva quanto à genitália externa das fêmeas, mas que evidenciam, acima de tudo, a existência de um orifício. É o que se verifica na seguinte passagem: Ora, aqui a ferida é colocada, claro, como idêntica ao estatuto feminino e como resultado de um ato agressivo, mas também como abertura, pelo menos virtual, do corpo: não unicamente como amputação, mas como buraco[x]. Se a genitália externa feminina pode ser vista em sua positividade orificial e não em sua negatividade castrativa, então, a diferença anatômica dos sexos pode encontrar seu lugar no inconsciente, que não comporta nenhum tipo de negação. Esta é, em síntese, a tese defendida por Laplanche tanto no volume das Problemáticas dedicado à castração, quanto em seu "Curto tratado do inconsciente", e que parece ter sido completamente esquecida em 2003, quando a oposição fálico/castrado e sua lógica binária são apresentadas como uma verdadeira ideologia cuja origem remonta à adoção da posição ereta, na pré-história. Longe de ser uma discussão bizantina sobre um detalhe das pinturas pré-históricas ou sobre uma mera nuance da teoria freudiana da castração, a possibilidade de se conceber uma teoria sexual infantil na qual a diferença anatômica dos sexos possa ser interpretada como oposição entre fálico e orificial, logo, entre penetrante e penetrável, permite superar o que deve ser visto como um verdadeiro trabalho de recalque em operação na teoria psicanalítica desde Freud. De fato, como denuncia Jacques André ao analisar criticamente a concepção freudiana de masoquismo feminino, apresentada em "O problema econômico do masoquismo" (Freud, 1924), a teoria do primado fálico recalca a feminilidade orificial: o "masoquismo feminino" [...] participa dessa colocação em evidência (miseauclair) fantasmática que constitui a teoria do primado do falo; uma colocação em evidência que é simultaneamente recalque das representações de uma feminilidade orificial, mais do que ferida[xi]. (itálico no original). É bem possível que a associação do conceito laplancheano de sedução originária com a ideia de feminilidade orificial e de passividade pulsional[xii] dê margem à crítica da posição teórica de J. André como posição essencialista, na qual feminilidade e passividade se encontrariam naturalmente e indissoluvelmente vinculadas uma à outra. Seja por esse motivo ou outro qualquer, o que se constata é que essa tese sobre as origens femininas da sexualidade, baseada na teoria da sedução originária e na denúncia da função recalcante do primado fálico, parece ter sido completamente abandonada por seu autor[xiii]. Da minha parte, sem entrar no mérito do caráter essencialista da tese, considero que J. André trouxe à baila uma questão fundamental para a solução de vários problemas tanto da teoria quanto da clínica psicanalítica. Considerando que os orifícios corporais estão presentes em todos os seres humanos (e em inúmeros outros seres vivos, obviamente), seria possível propor, em lugar de "feminilidade orificial", uma sexualidade orificial. Mas isso seria apenas um subterfúgio, visto que o problema é exatamente este: o Sexual[xiv] vem sendo afetado pelo sexo provavelmente desde a pré-história. Ao estabelecer a situação antropológica fundamental como posição inteiramente assentada na passividade radical do infante perante o caráter involuntariamente invasivo do inconsciente sexual do adulto, Laplanche não só coloca em primeiro plano os efeitos psíquicos e pulsionais da oposição interno-externo inerente à delimitação do corpo e sua projeção no psiquismo, como também estabelece que a tradução da passividade originária se dê, invariavelmente, em termos de penetração, de intrusão, de rompimento de barreiras, de arrombamento de orifícios. Como, então, desconsiderar o poder que a diferença entre os sexos tem sobre a simbolização dessa penetração originária? Diferença essa que se manifesta prioritariamente como presença de um órgão apendicular e erétil nos homens e presença de um órgão orificial e penetrável nas mulheres? O recalque originário, como assinala Laplanche, precisa do secundário (e do efeito de a posteriori que aí se produz) para se consolidar. O originário diz respeito diretamente à formação da tópica, do eu e do inconsciente primário; o secundário refere-se, a meu ver, muito mais à força de ressignificação que o gênero e a diferença dos sexos têm sobre o eu (incluindo a formação do supereu), do que às interdições edípicas relacionadas ao incesto e ao parricídio. Ora, admitir essa relação entre os dois tipos de recalque implica admitir que a tradução do trauma inerente à situação antropológica fundamental não tem como escapar da referência à penetração, que, por sua vez, não tem como não convocar a penetrabilidade do corpo e principalmente dos orifícios corporais (boca, narinas, ouvidos, olhos, uretra, ânus e vagina) e o poder penetrante das protuberâncias e apêndices corporais (dedos, língua, mamas, nariz e pênis). Que a feminilidade seja, desde épocas imemoriais, associada à posição penetrada, pode significar apenas a existência de um vício de tradução que, em algum momento histórico, passou a ser usado como instrumento de poder e dominação dos homens sobre as mulheres. O mesmo pode-se dizer da associação da posição penetrante com a masculinidade. Que a posição penetrada esteja associada à passivação e ao trauma, pode também somente significar a existência de um hábito interpretativo arraigado e cultivado há milênios. Embora ainda vivamos todos, atualmente, sob a influência dessas categorias, é possível pensar que a participação do gênero e do sexo no sexual não é obrigatória, não é uma lei universal! Para Laplanche, em que pesem suas diferentes abordagens do problema da castração e sua incursão tardia na problemática dos gêneros, prevalece a tese fundamental da passividade do infante e da inevitável inoculação traumática do sexual pelo adulto. Os recursos sempre incompletos de simbolização que transformam esse trauma em pulsão sexual no infante podem variar enormemente e podem prescindir do Édipo e da castração, mas enquanto houver infante e adulto, o sexual resultará da sedução, do trauma e da tradução simbolizante. Da minha parte, considero importante acrescentar o seguinte: enquanto o psiquismo se constituir a partir da ação do outro sobre um corpo inicialmente fragmentado e indefeso, o sexual sempre será dominado por fantasias de penetração (tanto na forma ativa quanto passiva), por pulsões que compelem à penetração e por mecanismos que buscarão conter essas pulsões. Se algum dia a diferença anatômica dos sexos vier a ser reduzida a uma diferença tão pouco importante para os seres humanos como, por exemplo, as diferentes conformações do lobo da orelha; ou até mesmo se um dia, pelo intermédio de uma engenharia genética generalizada, a diferença dos sexos não mais existir, e junto com ela os gêneros também deixarem de existir, o sexual se apoiará em alguma outra coisa, em outros fenômenos e em outras diferenças que servirão de suporte para a oposição entre as forças pulsionais ligadas às fantasias de penetração e os mecanismos que buscam contê-las.
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