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Resumo
A conversa entre o poeta Haroldo de Campos e o psicanalista Jean Laplanche acerca das traduções da obra de Freud evidencia a existência de duas posições opostas: enquanto a psicanálise busca a legitimidade a partir da coerência interna dos conceitos freudianos, o campo literário tenta atrair a psicanálise para um espaço comum, partilhado pela literatura, pela poesia e pelos estudos da linguagem. As diferenças entre os autores são uma breve ilustração da própria natureza dos debates internacionais em torno das traduções de Freud.


Palavras-chave
Psicanálise; Poesia; Tradução; Jean Laplanche; Haroldo de Campos.


Autor(es)
André Medina Carone Carone
é professor do Departamentode Filosofia da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).


Referências bibliográficas
Benjamin W. A tarefa do tradutor. In Universidade Federal de Santa Catarina (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução), Clássicos da Teoria da Tradução. Florianópolis: EDUFSC. p. 202-233 (Trad. Susana Kampff Lages).

Bourguignon A.; Cotet P.; Laplanche J.; Robert F. (1989). Traduire Freud. Paris: Presses Universitaires de France.

Campos H. (1992). Da tradução como Criação e como Crítica. In Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo: Perspectiva. p. 31-48.





Abstract
The conversation between the brazilian poet Haroldo de Campos and the french psychoanalyst Jean Laplanche on translating Freud brings to light to opposite approaches: while psychoanalysis hold on to the internal coherence of Freudian concepts to legitimize its discipline, the literary field efforts to lure psychoanalysis and bring to a domain shared by literature, poetry and linguistics. The differences between these two authors illustrate the very nature of the international debate about translating Freud.


Keywords
Psychoanalysis; Poetry; Translation; Jean Laplanche; Haroldo de Campos.

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 TEXTO

Poesia silêncio psicanálise

Poetry silence psychoanalysis
André Medina Carone Carone

No ano de 1993 o Sedes Sapientiae promoveu um histórico encontro entre o poeta brasileiro Haroldo de Campos e o psicanalista francês Jean Laplanche. Distantes do olhar do público, conversaram em francês por aproximadamente uma hora a respeito da tradução das obras de Freud e da teoria da tradução, seguidos pelo olhar atento e curioso de Ana Maria Sigal, Miriam Chnaiderman e Renato Mezan, que realizam breves intervenções em meio ao debate.

 

Mais do que a reunião de dois autores e tradutores, esta belíssima gravação nos apresenta duas figuras que representam paradigmas em cada um de seus territórios. Haroldo de Campos, tradutor múltiplo, poeta e teórico da tradução e da linguagem, sempre foi mais do que um autor ou tradutor individual - basta recordar a constante redescoberta que promoveu dos precursores da poesia concreta e a aproximação infinita entre línguas, linguagens e correntes poéticas que formavam diante de seus olhos uma unidade antes insondável: falar sobre Haroldo de Campos significa falar sobre o universo que ele conseguiu mobilizar ao seu redor. Jean Laplanche, psicanalista e teórico da psicanálise, líder de uma equipe de tradutores e teórico da tradução freudiana, é um interlocutor inescapável para quem queira decifrar as articulações internas na obra do criador da psicanálise. Todo aquele que venha a traduzir Freud se vê em algum momento acompanhado pela sombra de Laplanche, por mais que queira rechaçar a sua influência: os impasses e dilemas da tradução freudiana sempre parecem ser aqueles descritos por Laplanche, mesmo se não quisermos aceitar a solução que ele nos apresenta. Com ele descobrimos o mapa de um labirinto cujas saídas nem sempre aceitamos, mesmo quando não encontramos alguma saída. Sua teoria sobre a tradução freudiana ultrapassa as fronteiras da língua francesa e impõe-se como referência para tradutores de diversos idiomas.

 

No centro do debate estão as teses de Traduire Freud, o volume teórico dirigido por Laplanche que fundamenta e sistematiza a coleção das Oeuvres Complètes editada pela Presses Universitaires de France (PUF). Percebemos com nitidez a cautela adotada por Laplanche ao expor suas ideias a um poeta e tradutor de língua estrangeira, bem como a sua surpresa diante da familiaridade de Haroldo com seus escritos. As premissas elementares da equipe francesa são ilustradas por seu diretor de maneira bastante didática. O ponto de partida adotado por Laplanche é a demarcação de uma "língua de Freud" (langue de Freud) no interior do idioma alemão. Entretanto essa demarcação não está restrita a um conjunto de termos fundamentais: trata-se antes de uma concepção do texto original como uma arquitetura de referentes cujas posições relativas devem ser preservadas em uma versão estrangeira que se destina sobretudo a colocar o leitor francês na mesma posição do leitor de língua alemã, ele afirma: neste trabalho de tradução o horizonte da precisão é muito mais vasto do que faria supor o clássico Vocabulário da Psicanálise que elaborou em parceria com o também psicanalista e tradutor Jean Bertrand Pontalis. A proposta laplancheana avança na contramão das antigas traduções de Freud que se orientavam pelo contexto ou pela preservação de um sentido geral das formulações presentes no texto original. O estranhamento semântico e sintático que resulta desse procedimento seria justificado - sempre de acordo com Laplanche - por uma distinção abrangente entre as "obras de pensamento" e as "obras poéticas": ao relatar um sonho ou um chiste, Freud não tem a intenção de produzir um efeito, mas sim demonstrar um mecanismo. Na concepção de Laplanche, o poeta habita inteiramente a linguagem e os efeitos que ele provoca pertencem à ordem do universal (o que justificaria, ao menos em princípio, a livre substituição das referências culturais ou do contexto linguístico em uma tradução literária), enquanto o pensador teórico habita parcialmente a linguagem: sua argumentação possui uma intenção demonstrativa e os casos particulares aos quais se refere não são intercambiáveis.

 

Embora o teor da argumentação esteja muito próximo das teses que comparecem na primeira parte de Traduire Freud, a presença do poeta neste debate altera por completo a relação de forças e o próprio objetivo da exposição: enquanto o volume teórico destina-se principalmente a demarcar o alcance da terminologia e de sua sistematização no interior da própria psicanálise, nesse encontro com Haroldo de Campos é a teoria psicanalítica, representada na figura de Laplanche, que deve justificar a demarcação entre o dentro e o fora de sua própria linguagem. Em sua versão mais extremada, o dilema poderia ser formulado nos seguintes termos: se a psicanálise pode falar indiscriminadamente a respeito do mundo e abordar todo e qualquer objeto, então ela não possui nem consistência e nem especificidade (sendo este o risco que Laplanche busca evitar, com extrema mesura e rigor); mas se a psicanálise é uma linguagem específica e consistente, que articula um sistema distinto de toda forma de linguagem que se organiza em seu exterior, ela nada pode dizer a respeito daquilo que não seja ela mesma (eis a barreira que os argumentos de Haroldo de Campos procuram romper a cada novo passo da discussão). Enquanto o psicanalista francês quer legitimar a psicanálise a partir de uma linguagem autônoma e de um sistema interno de correspondências, o poeta brasileiro tenta arrastar a psicanálise para fora de si mesma, conduzindo-a a uma terra média entre a função poética e a função referencial. "Eu não tento entrar em seu território, mas o senhor está tentando entrar no meu", adverte Laplanche a certa altura: a menção ao "território" ocorre, aliás, em vários momentos da conversa. A certa altura Haroldo de Campos pergunta ao psicanalista se a Bíblia e a obra de Nietzsche seriam "obras de pensamento" ou "obras poéticas". Laplanche responde com simplicidade que não está traduzindo a Bíblia. A persistência do poeta sobre essa questão me parece justificada, pois, ao contrário do que afirma Laplanche, a perspectiva literária não é estranha ao projeto francês: bastaria recordar sua afirmação de que no texto de Freud "o inconsciente se manifesta através de certas formas verbais", ou a necessidade de "torturar um pouco a sintaxe francesa", com a qual o poeta brasileiro está de pleno acordo.

 

As intervenções de Renato Mezan e Miriam Chnaiderman, que parecem pressentir a necessidade de um terreno comum, alcançam um resultado apenas parcial: Chnaiderman pergunta simplesmente se o mais correto não seria afirmar que toda tradução é poética, uma tese rejeitada de maneira categórica por Laplanche, enquanto Mezan propõe que ambos apresentem suas reflexões acerca da linguagem e da tradução, nascidas em campos do saber e experiências que são bastante distintos. As tensões do diálogo persistem apesar das inúmeras aproximações que se anunciam mas não se sustentam no correr da conversa: logo no início Laplanche assinala que praticamente todos os neologismos que a equipe francesa imaginava ter inventado já existiam (um fenômeno que Haroldo de Campos identificou na literatura brasileira, mais precisamente na poesia de Gregório de Matos e nas traduções de Odorico Mendes, se eu não estiver enganado) e afirma em seguida que os tradutores são os verdadeiros transformadores de uma língua. Haroldo de Campos, por sua vez, apresenta uma leitura original da Wörtlichkeit ("vocabularidade", segundo ele) em A tarefa do tradutor, ensaio de Walter Benjamin que serve de esteio teórico para a edição francesa dirigida por Laplanche.

 

Resumindo: nesse belo debate encontraremos divergências manifestas e convergências latentes, fronteiras teóricas e entrelaçamentos reais, sistemas de linguagem e fragmentos do inconsciente que orbitam ao redor da obra de Freud: mais do que um entre vários debates sobre a sua tradução, este parece ser o encontro que simboliza os desencontros da própria história das traduções de Freud.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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