voltar à primeira páginaResumo Neste texto, hoje clássico, Laplanche expõe
os motivos da sua crítica ao modo como Freud concebe a formação do psiquismo (visão “ptolomaica”, segundo o autor), e ao mesmo tempo deixa pistaspara uma formulação mais exata e mais fecunda,que leve em conta o papel fundador do contato com o adulto (visão “copernicana”, já que reconhecer a primazia do outro seria colocá-lo no centro do sistema relacional – algo equivalente ao que fez o astrônomo polonês quando sugeriu que é a Terra que gira em torno do Sol. Palavras-chave revolução copernicana; narcisismo; sujeito; outro; sedução Autor(es) Jean Laplanche é psicanalista, membro da A.P.F. e autor de diversas obras, entre as quais La révolution copernicienne inachevée, Paris, Aubier, 1993. Notas [i] {REVOLUCAO COPERNICANA} A obra foi publicada logo depois da morte de Copérnico, sem dúvida por precaução: vale mais arriscar o auto-de-fé para seu livro do que para si mesmo. [ii] Plutarque: Vie de Lucullus, 77. Vie de Démosthène, 26. Trad. port.: Plutarco: Vidas paralelas. [iii] Revolução em alemão. Em todo caso, Kant não cria a locução revolução copernicana e Freud, aliás, não a utiliza. De quem vem ela? [iv] A qual, na tradição árabe, tomará o nome sincrético de Al-mageste [v] Supõe-se mesmo que Platão tenha levantado essa hipótese, sinal de que ela não era considerada "ímpia". [vi] Não se pode negligenciar o fato de que os astros errantes t [vii] Platão, citado in Histoire générale des sciences, I, p. 243. [viii] Podemos adicionar ao navio freudiano essas sobrecargas suplementares - posições k1einianas, forclusão, falso-self, self grandioso, espaço transicional, etc. - sem soçobrar o todo? Não seria tempo de passar das problemáticas locais a um requestionamento do conjunto? [ix] E. Kant, Kritik der reinen Vernunft; p. 28. [x] Trad. francesa: La terre ne se meut pas, 1989. [xi] Cf. Nouveaux fondements pour la psychanalyse, p. 115-124. Cf. J. Lanonzière, Histoire secrète de la séduction sous le règne de Freud. [xii] Cf. sobre esse ponto Problématiques IV - L'inconscient et le ça, segunda parte - "Problématique du ça". [xiii] Ver a esse respeito Vie et Mort en psychanalyse, p. 87-102 e em particular p. 92-93. [xiv] O exemplo maior desses epiciclos, de um desses conceitos ad hoc, artificiais, é o da pulsão de morte. Tentei indicar de modo cada vez mais preciso seu valor de reequilíbrio no sistema freudiano, seu significado como reafirmação de algo que é da ordem do sexual em seu aspecto mais selvagem. Ora, num sistema que retornou ao não selvagem, ao domesticado e à autocentração, que retornou a um biologismo da pulsão, é digno de nota que a reafirmação daquilo que Freud nomeia, ele mesmo, de "demoníaco", só possa ter um lugar num quadro completamente desfigurado, sob a forma de um instinto biológico. [xv] Cf. Problématiques IV - L'inconscient et le ça, op. cit., p. 146-156 e L'inconscient, une étude psychanalytique por J. Laplanche e S. Leclaire, p. 261-321. [xvi] Ein anderes Psychische. [xvii] GW, I, p. 85. [xviii] Gegenwärtig wirkendes Agens. [xix] GW, I, p. 85-86. Retraduzimos essa passagem bem conhecida, mas frequentemente atenuada, na sua significação epistemológica, pela tradução. [xx] 1917, GW, XII, trad. francesa, in L'inquiétante étrangeté, p. 173-187. GW, I, p. 31. [xxi] Impulse. [xxii] Trad. francesa, p. 184. [xxiii] Ibid. p. 186. [xxiv] Segundo a expressão de Groddeck a propósito do id, expressão que contesto. Cf. Nouveaux fondements pour la psychanalyse, op. cit., p. 32. [xxv] Cf. Vie et Mort en psychanalyse, op. cit. [xxvi] Cf. L. Laplanche e S. Leclaire, "L'inconscient, une étude psychanalytique", cap. "Fiction d'un langage à l'état réduit", in Problématiques IV - L'inconscient et le ça, op. cit., p. 297 ss. [xxvii] "Mais uma vez parece digno de discussão que sejam somente as experiências vividas ulteriormente que desencadeiem fantasias que remontariam à infância...", Correspondance Freud-Flies, op. cit., p. 284. [xxviii] O que, nem por isso, significa que o inconsciente seja simplesmente o outro implantado em mim. Pois entre a intervenção primeira do outro e a criação da outra-coisa em mim, se intercala um processo chamado recalcamento, muito complexo, implicando, pelo menos, dois tempos reagindo um sobre o outro, e resultando numa verdadeira deslocação/ reconfiguração dos elementos (explícitos e implícitos-enigmáticos) do vivido. Metabolismo e ponto de vista tradutivo são a alma da teoria do recalcamento. Ver, por ex., Nouveaux fondements pour la psychanalyse, op. cit., p. 129-131. [xxix] Como faço habitualmente, utilizo o termo ego, como o fazem notadamente os etnólogos, para designar, em sua generalidade, a pessoa em questão; por exemplo: o paciente. [xxx] Ver a esse respeito a reconstituição da lembrança do Homem dos lobos. [xxxi] Na carta 52/112 a Fliess, Freud corrobora a sedução de uma jovem mulher pelo seu pai, graças a uma entrevista com o irmão da paciente e a cruzamentos de lembranças e sintomas entre o irmão e a irmã. [xxxii] Carta a Fliess 52/112. [xxxiii] É a ausência da "mensagem" que esquarteja a noção de [xxxiv] Entwurf; in GW-Nachtragsband, p. 410-412. Trad. francesa [xxxv] Ou do desejo (désir). Não argumentarei aqui sobre esse [xxxvi] Nahrungszufuhr transcrevem os editores, que, entretanto, to [xxxvii] Esses não são os termos de Freud, mas os da psicologia animal e da psicofisiologia. [xxxviii] Como se ele ressentisse o seu fracasso em fazer sair o coe [xxxix] Para mais detalhes, envio à minha crítica da noção de [xl] Porquanto o signo "representa alguma coisa para alguém", logo com um valor puramente denotativo, o "sig [xli] Op. cit. passim. [xlii] Carl Sagan, Cosmic Connexion. [xliii] "Une difficulté de la psychanalyse", trad. francesa, op. cit., p. 182-183. A oposição Lamark-Darwin não é pertinente em relação à humilhação em questão. [xliv] Cf. "Du transfert: sa provocation par l'analyste", in Révolution copernicienne inachevée, p. 417. Referências bibliográficas Bíblia Sagrada. João VII. 47 [Jean VII 47.]. Freud S. Gegenwärtig wirkendes Agens. [Trad. francesa L'inquiétante étrangeté, Paris, Gallimard, 1985.] ____. Correspondance Freud-Flies. Frankfurt-am-Main: Fischer. ____. GW-Nachtragsband [Trad. francesa La naissance de la psychanalyse. Paris: PUF, 1956] ____. Traumdeutung, GW, II-III p. 570-571. Freud S. [Trad. Francesa "Une difficulté de la psychanalyse"] Histoire générale des sciences, I. (1966). Paris: PUF. Husserl E. (1989). La terre ne se meut pás. Paris: Éd. de Minnuit. Kant E. (1985). Kritik der reinen Vernunft. Stuttgart: Philipp Reclam Jun. Lacan J. (1966). Écrits. Paris: Seuil. Lanonzière J. (1991). Histoire secrète de la séduction sous le règne de Freud. Paris: PUF. Laplanche J. (1970). Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion. ____. (1980). Problématiques III - La sublimation. Paris: PUF. ____. (1981). Problématiques IV - L'inconscient et le ça. Paris: PUF. ____. (1987). Nouveaux fondements pour la psychanalyse. Paris: PUF. ____. "La Nachträglichkeit dans l'après-coup" [seminário de 1989-1990]. ____. (1989). Traduire Freud. Paris: PUF. ____. (1992). Le fourvoiment biologisant de la séxualité, Psychanalyse à l'Université, 17,68. ____. Du transfert: sa provocation par l'analyste. In ____. La révolution copernicienne inachevée. Laplanche J.; Leclaire S. (1981). L'inconscient, une étude psychanalytique. In J. Laplanche. Problématiques IV - L'inconscient et le ça. Paris: PUF. p. 261-321. Sagan C. (1975). Cosmic Connexion. Paris: Seuil. Abstract In this classic paper, Laplanche puts forward his reasons to criticize Freud’s usual way of conceiving the formation of mind, and at the same time opens windows towards a more exact and more
fruitful solution for this problem. The official version is considered “Ptolomaic”, and Laplanche’s own description, “Copernican”. The metaphor refers to an inversion of the positions of the baby and the adult,which in the author’s view is equivalent to what Copernicus proposes in Astronomy. Keywords Copernican revolution; narcisism; subject; other; seduction voltar à primeira página
| | TEXTOA revolução copernicana inacabadaThe unfinished Copernican revolution
Jean Laplanche
Este volume reúne meus principais artigos publicados em diversas revistas desde 1967. Sua disposição não é temática mas simplesmente cronológica. Eles alinham uma reflexão psicanalítica e constituem uma espécie de contraponto aos diferentes livros publicados no mesmo período. Em sua sucessão não encontraremos ruptura, mas poderemos reconhecer um movimento que eu gosto de figurar como uma espiral: passar de maneira cíclica à vertical de certos pontos problemáticos, a cada volta tomando um pouco mais de distância com relação à precedente e desenhando mais nitidamente as opções e as diferenças. É no seio da experiência inaugurada por Freud - experiência indissoluvelmente clínica e teórica - eu diria filosófica - que se situa meu pensamento; não para polir as arestas ou aperfeiçoar os detalhes, mas para fazê-lo trabalhar e, no sentido pleno das palavras, devolver-lhe a alma. Tarefa evidentemente infinita e que o texto inaugural deste volume não pode ter como objetivo concluir: ele é, ao contrário, uma meditação sobre a necessidade de ininterruptamente reabrir a brecha original, outrora aberta pela estrangeiridade do outro. Se aí não estivesse o âmago de nossa prática e o novo de seu (re)começo, a psicanálise não passaria de uma pobre e já obsoleta engenharia da alma.* * (N.T.) O texto acima faz parte da apresentação do livro La révolution copernicienne inachevée, do qual extraímos o capítulo de mesmo nome aqui publicado. A tradução brasileira, autorizada pelo convidado, foi feita em 1993 para o colóquio "Jean Laplanche em São Paulo" realizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. A versão original foi revista para essa publicação em Percurso. A revolução copernicana inacabada É de forma curiosa que o destino da palavra "revolução" está ligado ao nome de Copérnico. O sentido propriamente astronômico ou geométrico do termo é o único que existe em sua época e o tratado deste autor, De revolutionibus orbium caelestium, publicado em 1543, trata do movimento cíclico, eminentemente repetitivo, das esferas celestes[i]. O aspecto revolucionário dessas revoluções não está então marcado na terminologia, e é só dezesseis anos mais tarde, em 1559, que Amyot, em suas imortais traduções de Plutarco, começa a fazer evoluir o termo: ilustração, entre tantas outras, da função criadora dos tradutores na evolução da língua. Aliás, a mudança de sentido é progressiva; com Amyot, a revolução certamente significa uma mutação brusca, mas ela permanece prefixo, marcada de início por vários sinais celestes[ii]. Não disponho de documentos suficientes para seguir em detalhe a metabolização desta palavra. Seja como for, na época de Kant, depois de mais de duzentos anos, nosso termo moderno de revolução[iii] está consolidado. Em 1787, com o segundo prefácio da Crítica da razão pura, revoluções científicas e revoluções políticas andam, aparentemente, par e passo: o pensamento de Copérnico constitui uma "revolução súbita na ciência da natureza". Mas ao preço de que mal-entendido Kant vai se apoderar disso como um modelo para sua própria filosofia? Diremos algo sobre isso mais adiante. A revolução de Copérnico em astronomia é invocada, como se sabe, em Freud, como a primeira humilhação, a primeira ferida narcísica infligida ao homem pela ciência. Vale a pena precisar em que ela consiste, sem antes nos preocuparmos com sua relação com a psicanálise. A história da astronomia, que remonta como se sabe à mais alta Antiguidade assíria, babilônica e depois grega, não é nada menos que linear naquilo que diz respeito a seu problema maior, que podemos assim enunciar: constatamos movimentos circulares no universo. Mas, finalmente, o que gira em torno do quê? É simples e pedagógico opor Ptolomeu a Copérnico, o geocentrismo ao heliocentrismo; mas tenhamos em mente que uma revolução não é jamais tão revolucionária quanto acredita ser: no passado ela tem predecessores, e, naquilo que propõe como abertura, traz em si também possibilidades de recaídas potenciais. Finalmente, o que se afronta e se alterna, durante séculos e mesmo milênios de teorias astronômicas, são duas linhas de pensamento, uma ptolomaica e outra dita copernicana, com pensadores notáveis tanto de um lado quanto de outro. Ptolomeu, que se situa no século II d.C., não é mais que o resultado de uma longa e dupla tradição que remonta pelo menos ao século IV ou V a.C.; de uma parte os filósofos: os pitagóricos, Platão, Aristóteles, e de outra parte os sábios, mais próximos da observação, astrônomos, geógrafos e matemáticos. Eudoxo de Cnido (408-355), o primeiro que recompõe os deslocamentos dos astros a partir de movimentos circulares; Autolicus (século IV a.C.), Hiparco de Niceia (século II a.C.), ao qual devemos o primeiro grande catálogo das estrelas, enfim o próprio Ptolomeu (138-180 d.C.), que propõe a grande síntese (Μεγαλη Συντα)[iv]. Quanto à linhagem copernicana, como sabemos, ela vai prosseguir numa descendência brilhante através de Galileu, Kepler, Newton e depois, mais além, na revolução einsteiniana; o que se ignora geralmente é que ela remonta explicitamente ao século III a.C., com o genial Aristarco de Samos, de quem Copérnico conhecia os trabalhos. Fica-nos dele seu Tratado sobre as grandezas e distâncias do Sol e da Lua, no qual ele tem a audácia de calcular esses parâmetros, com uma aproximação surpreendente para alguns dentre eles, e isso graças à observação e a cálculos trigonométricos originais. Mas sobretudo sabemos que ele é o primeiro a propor um sistema heliocêntrico, incorrendo assim - já no mundo grego - na acusação de impiedade. Essa revolução copernicana, que estaríamos, então, no direito de designar como "aristarquiana", quais questões põe em jogo? Podemos distinguir aqui o plano astronômico e o plano filosófico-antropológico. Do ponto de vista astronômico, trata-se de explicar os deslocamentos dos diferentes corpos celestes com relação à Terra. Deixo de lado um certo número de iniciativas importantes, apesar de tudo extrínsecas em relação à mudança de perspectiva copernicana. Assim a prioridade dada ao movimento circular: ela não será recolocada em questão por Copérnico. Assim a redondeza da Terra: ela é admitida na Antiguidade desde o século IV a.C. O que está em questão não é nem mesmo a rotação da Terra sobre si mesma, responsável pela alternância dos dias e das noites. Atribuída a Heráclides, essa hipótese não é em si mais que uma mudança de coordenadas com relação ao que mostra a observação da vida cotidiana: a rotação imutável da esfera estelar com relação à Terra[v]. De fato, e sem entrar em detalhes, o que põe em xeque uma rotação pura e simples da esfera dita dos "fixos" (digamos: o conjunto das estrelas longínquas) são os deslocamentos de diferentes corpos celestes em relação a esta esfera: o sol, a lua e, enfim, os "planetas". Enfim e sobretudo, porque o movimento desses astros errantes, desgarrados[vi], desafia toda explicação simples num sistema onde a Terra permanece como centro de referência. A questão maior de toda astronomia, até e inclusive a síntese ptolomaica, se situa então sobre a via de um extravio inicial. É a partir de uma hipótese de base errônea que se trata de achar, de inventar, quais movimentos regulares e ordenados é preciso supor para salvar as aparências (isto é, para dar conta das aparências) observadas nos movimentos dos planetas[vii]. Como a multiplicação de "esferas", tendo por centro a Terra, é suficiente apenas para os movimentos do sol e da lua, é preciso apelar para toda uma série de movimentos adventícios, sempre circulares mas excentrados, depois excentrados uns com relação aos outros: "excêntricos", "epiciclos", "deferentes" etc. Todas hipóteses altamente matemáticas que mobilizam a engenhosidade, e mesmo o gênio dos astrônomos, até a suma ptolomaica que vai permanecer durante quatorze séculos a Bíblia da astronomia. Suma à qual é quase impossível adicionar qualquer coisa, dada sua complexidade. Um sistema onde cada detalhe inexplicado, longe de recolocar em questão o conjunto, tornou-se uma hipótese ad hoc, suplementar. Sobrecarga e bloqueio: pode-se sonhar com o que se tornou, posto certo grau de complexificação, a metapsicologia freudiana quando se começou a acumular certas insuficiências através de novos conceitos, sem se preocupar em saber se eles se integravam ao conjunto ou se não seria o conjunto a ser reconstruído[viii]. O que está em jogo, com aquilo que comodamente chamamos "revolução copernicana", é uma questão de centração que, de início, parece estar limitada a uma mudança de centro astronômico (a Terra, ou o Sol) mas que abre para consequências bem mais vastas. O heliocentrismo, ponto de vista adotado por Copérnico, traz de saída uma imensa simplificação, ao menos potencial: a ideia que hoje nos parece banal, de que a Terra é um planeta em órbita como os outros em torno do Sol, não simplifica tudo: a forma circular das órbitas obriga a manter uma quantidade de hipóteses adventícias, epicíclicas e outras. Mas a via está aberta em direção a progressos unificadores; não somente simplificações, mas também enriquecimentos indefinidos: o sistema não está mais entupido; não é somente uma barreira física do mundo que se foi pelos ares, mas também uma barreira epistemológica. A imensidão do universo, e mesmo sua infinitude, é uma consequência da teoria heliocêntrica e já percebida como tal desde a época de Aristarco. Isto, a partir da objeção seguinte: se a Terra estivesse em movimento, mudando então constantemente o ponto de vista que é o seu, as posições dos "fixos" uns em relação aos outros, "as constelações" deveriam sofrer modificações e deformações..., o que não é o caso. Donde uma dupla conclusão possível: ou a teoria de Aristarco - Copérnico é falsa... ou então as estrelas estão, em relação a nós, a uma distância sem medida comum com as distâncias internas ao sistema solar. A ideia restrita de heliocentrismo era apenas uma etapa; a revolução copernicana abria parcialmente para a ausência de centro. Num mundo de distâncias quase infinitas, torna-se absurdo tentar conservar ainda uma das estrelas entre as outras, sol ou sistema solar, como centro. De modo correlativo, se o "centro" do mundo pode estar em todo lugar é que sua "circunferência está em lugar nenhum". Descentração do nosso mundo, infinitude do mundo, esta dupla afirmação desembocava, tanto no tempo de Aristarco como no Renascimento, na acusação de impiedade. Se o homem não está mais no centro do universo, não somente as cosmogonias e gêneses míticas são contraditas, mas todos os panteons forjados à imagem do homem, ou centrados sobre o homem, são desvalorizados. Mas, sem dúvida, todo o aferramento da humanidade à visão ptolomaica tem uma raiz mais profunda. Quando Freud fala de ferida narcísica a esse propósito, é de uma humilhação do homem de carne, do homem empírico, que ele quer falar. Mas é preciso ir mais longe: não é somente o homem em sua existência concreta que se acha humilhado por se encontrar em lugar-nenhum, no seio da imensidão do universo: a revolução copernicana é talvez mais radical ainda ao sugerir que o homem, mesmo como sujeito cognoscente, não é o sistema de referência central do que ele conhece. Não mais estrelas gravitam em torno dele, não mais reconhecem elas o primado de nosso conhecimento. Inversamente, se o descentramento copernicano abre para um progresso indefinido (ainda que através de crises) do conhecimento, é sem dúvida porque ele afirma implicitamente que o homem não é, de modo algum, a medida de todas as coisas. Assim, o descentramento e a infinitude do universo seriam anunciadores de uma infinitude do saber e de um descentramento epistemológico, de outra forma difíceis de aceitar. Dessa ligação potencial entre descentramento astronômico e descentramento do saber, buscarei a prova em três pensadores, que serão evocados brevemente por sua relação com Copérnico. Kant, no segundo prefácio da Crítica da Razão Pura, evoca as "revoluções" científicas suscetíveis de servir de modelo a "toda metafísica futura que poderá se apresentar como ciência". É imediatamente Copérnico que é invocado, na medida em que teve a ideia de "fazer girar o observador e de deixar, por outro lado, as estrelas em repouso". Segundo Kant, a metafísica deveria "fazer uma tentativa semelhante"... Ora, longe de nos propor um descentramento à maneira de Copérnico, é justamente um recentramento ptolomaico que Kant quer então operar: de fato, longe de a intuição de um lado e os conceitos de outro "se regularem sobre o objeto"; convém inverter as coisas, admitindo que é o objeto que se "regula" sobre a "natureza de nossa intuição" e sobre os "conceitos de nossa razão"[ix]. Não quero discutir aqui o significado do idealismo kantiano, mas não posso deixar de achar perturbador que um movimento de descentramento radical seja invocado como apoio de um recentramento não menos radical. A única maneira de salvar Kant é evidente: lembrar que não há nada de comum entre a ciência física "mundana" por natureza e o conhecimento metafísico, cujas condições de possibilidade estão prescritas pela filosofia transcendental. O sujeito empírico está em conformidade com Copérnico, ele é levado não se sabe para onde, no movimento do universo. O sujeito transcendental, este permanece fiel a Ptolomeu: é sobre ele que se regula o movimento dos corpos celestes que são apenas "objetos em geral". Que seja! Mas neste caso, por que invocar a iniciativa de um para fundar a do outro, e isso contra a corrente? Há, no entanto, dois autores, após Kant, para não nos contentarmos com esse isolamento demasiado simplista entre o empírico e o transcendental, e isso em dois sentidos diametralmente opostos. Trata-se antes de mais nada de Husserl, o último Husserl, aquele a quem se atribui notoriamente o pensamento de Merleau-Ponty. Este último já citava na Fenomenologia da Percepção um texto husserliano de 1934 cujo título é em si um programa completo: Umstursz der Kopernikanischen Lehre: die Erde als Ur-Arche beweg sich nicht, que pode ser traduzido por: "Subversão da doutrina copernicana: a Terra, como princípio originário, não se move"[x]. Assim, em Merleau-Ponty, trata-se justamente de reintroduzir no ego "constituinte", o ser humano com sua "carne", seu "solo" natal, a Terra enfim que é sua morada originária, "a arché" que ele partilha com os animais. É um texto surpreendente porque, malgrado certas hesitações e numerosos pontos obscuros, ele combate a "revolução copernicana" em seu próprio terreno, pretendendo mesmo recentrá-la. Pois o "ego apodíctico" que volta a ser "ptolomaico" é ao mesmo tempo o sujeito constituinte e o sujeito de carne, contingente, que tem os pés nesta "Terra". Isso para mostrar que o que está em jogo na revolução copernicana - aceitação ou recusa - vai finalmente além do simples domínio técnico da ciência astronômica. Meu segundo testemunho a esse propósito será de um autor chamado Marr. Nome hoje esquecido, mas que teve em sua época uma reputação bem triste. É um linguista russo (1864-1934) que viveu antes da revolução de 1917, depois radicalizou suas ideias sob a revolução, e, no início do stalinismo, no que veio a se chamar "a nova teoria da linguagem". Ele se tornou uma espécie de Lyssenko da linguística: o marrismo foi considerado como sinônimo de marxismo em linguística, e todos os que não fizessem juramento de obediência absoluta se achavam perseguidos, obrigados a autocríticas e às vezes "eliminados fisicamente". Os marristas foram sustentados por Stalin de forma absoluta até 1950, data na qual o próprio autocrata, considerando que tudo isso desembocava em conclusões extravagantes (que alguns consideravam mesmo como delirantes), decretou morte ao marrismo (e, eventualmente, a "alguns marristas...") pronunciando este oráculo, na verdade tão simplista quanto o que ele combatia: "a língua não é uma superestrutura, a língua não tem uma característica de classe". O marrismo sustenta portanto que a língua é um fenômeno de classe e que se pode definir suas etapas segundo o tipo de sociedade de classes: sociedades e línguas aristocráticas, depois sociedades e línguas burguesas e enfim o falar-proletário que é mais importante para os nossos propósitos. Ora, o falar proletário é o falar-ciência; de modo que a sociedade sem classes deve corresponder ao advento de uma "novilíngua", uma espécie de esperanto mas muito mais ambicioso que este (e que teve, aliás, adeptos antes e depois da revolução). Em que isso toca nosso problema? É que a revolução copernicana que é científica, que é o pensar-ciência, não passou ainda para a língua, que permaneceu burguesa, ou pequeno-burguesa, ou capitalista. Assim, o camponês que diz que o sol se levanta a leste e se deita a oeste é de fato um kulak, é um burguês que fala a linguagem ideológica das ciências pré-copernicanas. Contrariamente, o homem da sociedade sem classes, livre de ideologia, deve inventar uma linguagem onde se fale verdadeiramente segundo a ciência, isto é, aonde se chegue. Por não sei qual descentramento na própria língua, a exprimir diretamente que não é o sol que gira em volta da Terra, mas a Terra que gira sobre si mesma e que gira em torno do Sol, etc. Com estas duas posições extremas, a do último Husserl e a dos marristas - loucas tanto uma como a outra -, reencontramos talvez ao mesmo tempo o testemunho do caráter fundamental da revolução copernicana e a impossibilidade de sustentar até o fim e de forma constante sua radicalidade. Voltaremos a isso no fim do nosso percurso. Freud, como se sabe, comparou muitas vezes a descoberta psicanalítica à revolução copernicana, vendo nela duas humilhações maiores do narcisismo humano. Não abordarei diretamente tais textos que merecem uma leitura atenta e eventualmente uma crítica sem concessões. Digamos primeiramente que minha visão da revolução "copernicana" de Freud coincide apenas parcialmente com o que ele mesmo admite naquele momento. É que efetivamente Freud é para si mesmo seu próprio Copérnico, mas também seu próprio Ptolomeu. A revolução astronômica durou aproximadamente dois milênios com, quase desde o início, intuições do verdadeiro, mas também com um extravio inicial. Na psicanálise tudo se produz, no que tange ao essencial, num único homem. Ao mesmo tempo: a descoberta, muito precocemente afirmada e que é conjuntamente (e, a meu ver, de forma indissociável) a do inconsciente e a da sedução - e o extravio, a falsa via adotada cada vez, onde é feito um retorno a uma teoria de autocentração, e mesmo de autoengendramento. É somente de forma esquemática que gostaríamos de datar o "extravio ptolomaico" de Freud na famosa carta do equinócio de 1897, em que é solenemente proclamado "o abandono da teoria da sedução". É preciso falar em Freud, quase que a cada período, de uma alternância de recaídas ptolomaicas e ressurgimentos da visão copernicana, heterocêntrica. Ressurgimentos e reafirmações que são frequentemente aprofundamentos: é assim que a sedução, ainda que teoricamente renegada em seu valor fundador, continua a perseguir um caminho secreto e um desenvolvimento subterrâneo, mesmo sob o reino do ptolomeísmo dominante, tanto na obra de Freud quanto na de alguns de seus discípulos contemporâneos[xi]. O mesmo se diria das reafirmações iniciadoras da heterocentração, entre as quais a mais forte é, sem dúvida, a adoção do Id groddeckiano, como uma instância que nos vive mais do que nós a vivemos. Mas é verdade também que essa reafirmação é pelo menos ambígua, uma vez que o movimento termina por recentrar o sujeito sobre o Id, como o que está nele desde a origem, e em torno do que, por assim dizer, ele desabrocha[xii]. Mas, da mesma forma que a linha copernicana continua bem depois de 1897, é verdade que o ptolomeísmo freudiano coabita já com o momento mais afirmado da teoria da sedução, como o testemunha notadamente a construção do Projeto de uma psicologia científica (1895): a segunda parte, "Psicopatologia da histeria", desenvolve amplamente uma gênese exógena do inconsciente, enquanto as duas outras partes, a terceira e sobretudo a primeira, são explicitamente de inspiração ptolomaica: reconstruir o aparelho segundo uma espécie de hierarquia a partir do nível Ψ, concebido como inconsciente e primário, sobre o qual vêm se enxertar os problemas da "consciência", da "qualidade", ou simplesmente da sobrevivência; a fórmula "tudo o que é consciente foi antes inconsciente" que envenenará toda a metapsicologia está presente desde o início, paralelamente à tese do inconsciente recalcado mas sem articulação com ela[xiii]. Nessa história conjunta de uma inovação e um extravio, nessa espécie de entrelaçamento onde ora é uma das partes da trança, ora a outra que passa ao primeiro plano, é preciso levar em conta também o enriquecimento por múltiplas descobertas, vindas da experiência analítica e que devem achar seu lugar ou numa linha copernicana ou mais frequentemente no sistema ptolomaico: assim, a descoberta do narcisismo, a descoberta da compulsão à repetição, a colocação em primeiro plano dos fenômenos de agressividade, etc. Todas essas descobertas, devidas a um alargamento do campo da experiência - poderíamos citar outras - devem se integrar no seio de uma doutrina que, parcial ou totalmente, apagou a revolução inicial. Donde, exatamente como no sistema ptolomaico, o artifício que consiste em integrar o novo ao preço de complicações suplementares, hipóteses adventícias destinadas a salvar as aparências: os famosos "epiciclos" da antiga astronomia[xiv]. A revolução freudiana no descentramento radical que propõe comporta duas aberturas; uma clássica: a descoberta do inconsciente enquanto não sendo nosso centro, mas um centro "excentrado"; e de outro lado a teoria da sedução, face oculta mas indispensável à primeira, pois é ela que mantém o inconsciente em sua estrangeiridade. Das Andere, a outra coisa em nós, é o inconsciente tal como foi descoberto desde antes de 1897 e tal qual sobressairá em numerosos momentos da obra incluindo o texto O Inconsciente de 1915. É desse inconsciente que Leclaire e eu tentamos marcar os contornos, em nosso artigo de 1966, com o nome de "realismo do inconsciente"[xv]. Só posso enumerar alguns pontos, tão essenciais uns como outros, apoiado nesta estrangeiridade. Para iniciar, honra lhe seja feita, o método. Pois é preciso insistir incessantemente que o que caracteriza esse domínio inacessível até então é um método novo, um método de descoberta e um método de exploração. O domínio do inconsciente é inseparável de sua forma de abordagem, o que já cria um hiato em relação a todas as concepções do assim dito "inconsciente pré-freudiano", as quais fazem um impasse com o método, seja postulando simplesmente o inconsciente, seja tentando adivinhá-lo através de não sei qual mântica. O método consiste em associações e recortes, consiste numa desconstrução e é somente no horizonte dessa dissolução ou análise que uma outra realidade pode se desenhar: o que nomeamos fantasia inconsciente. Mas, entre a sequência do comportamento ou do discurso consciente de onde partem associações e o fragmento de sequência inconsciente que pode se esboçar por recorte, não existe nenhuma correspondência ponto por ponto, nenhuma analogia ou similitude. De modo que se acha desqualificado todo método de ordem da "hermenêutica", como transposição ou tradução direta de um discurso num outro discurso, seja esse segundo discurso jungiano, kleiniano, lacaniano ou mesmo freudiano. Finalmente, implicação recíproca do método e do objeto consiste no fato de que o primeiro não é somente adaptado ao segundo, mas orientado, imantado por ele. O segundo ponto que desemboca também numa ideia de um "realismo do inconsciente" (que continua me parecendo importante) é que o objeto procurado não age somente sobre o método, mas também na vida. É o que Freud denomina de inconsciente dinâmico, e Leclaire e eu insistimos no fato de que essa ação implicava que o inconsciente não fosse um puro e simples decalque hermenêutico do consciente. Em outros termos, da mesma forma que por suas vias de descoberta, o inconsciente não é de modo algum o analogon do discurso consciente, igualmente na formação do sintoma, não é a tradução pura e simples do inconsciente. Leclaire e eu insistimos sobre a noção de compromisso: é com um mesmo coeficiente de realidade que se misturam, que se comprometem umas com as outras, de um lado, tendências conscientes e, de outro, tendências vindas do inconsciente. O terceiro ponto onde se manifesta a especificidade do inconsciente freudiano é a obediência a leis próprias, que são muito cedo denominadas "processo primário", e descritas desde as Cartas a Fliess, nos Estudos sobre a histeria e no Projeto de uma psicologia científica. Não insisto sobre tais leis. Em quarto lugar: no período anterior a 1897 e, durante muito tempo ainda, o inconsciente será considerado essencialmente como o resultado do recalcamento. Ainda em um texto como o de 1915, não há lugar para um inconsciente primordial que não fosse recalcado. Antes de 1897, não se pode nem dizer que o recalcado seja a pulsão, pois Freud vai praticamente se abster da noção de pulsão até 1905. Para situar as coisas numa fórmula lapidar, pode-se dizer que a partir de um certo momento o inconsciente nascerá da pulsão, depois a pulsão do somático, mas que, antes de 1897, é a pulsão que nasce do inconsciente. A última característica é que este inconsciente (lembrança, fragmentos de lembranças - fantasias - pouco importa no momento) é composto de cenas ou fragmentos de cenas, e que sobretudo tais cenas são, no fundo, sexuais. Isso não tem uma significação contingente: por que, com efeito, um primado do sexual em relação ao alimentar ou à necessidade de segurança, por exemplo? É que o primado do sexual abre diretamente para a questão do outro e, em se tratando da criança, sobre o outro adulto em sua estrangeiridade. Mas, antes de passar ao outro humano, insisto sobre dois pontos relativos a outra coisa, este "psíquico outro"[xvi] que é o inconsciente: de uma parte a nítida visão que adquire Freud de sua estrangeiridade, e, de outra, a precariedade desta. Com a "Comunicação Preliminar" dos Estudos sobre a Histeria, é o problema do modo de causação do sintoma que é colocado, uma vez estabelecido que este tem uma relação com o trauma. A priori, dois tipos de causalidade poderiam ser encarados: uma histórica, a outra atemporal. A partir da primeira forma de ver, poderíamos crer que "o trauma, como agente provocador, desencadearia o sintoma, o qual tendo se tornado independente subsistiria em seguida"[xvii]. Ora, a experiência do tratamento catártico, enquanto relacionado não ao histórico, mas a cenas e afetos atualizados, impõe uma outra concepção de causalidade: a causa não age porque está presente, é um corpo estranho que age na atualidade: "É preciso, ao contrário, afirmar que o trauma psíquico, ou antes, sua lembrança age à maneira de um corpo estranho, que muito tempo depois de sua penetração deve ter um valor de um Agens atuando no presente"[xviii]. E, mais adiante, Freud nos convida a utilizar a proposição inversa de cessante causa cessat effectus (portanto: permanente causa permanet effectus), para "concluir que o processo ocasionante continua a agir de certa forma por muitos anos ainda, não indiretamente pela mediação de cadeias causais interpostas, mas imediatamente enquanto causa desencadeante... A histérica sofre principalmente de reminiscências"[xix]. "Corpo estranho interno", "reminiscência", é o inconsciente como estranho em mim e mesmo posto em mim pelo estrangeiro. Nos seus momentos mais proféticos, Freud não hesita a respeito de formulações que remetem a uma ideia de possessão, tal como Charcot, que teve o mérito de levá-la a sério, mesmo tendo que retranspô-la em termos científicos. Mas, inversamente a estes avanços copernicanos, sempre difíceis de sustentar além da metáfora, extravagantes no que supõem, por assim dizer uma extravagação da alma, a tendência maior é a de sempre relativizar a descoberta, e por assim dizer aclimatar e reintegrar o estrangeiro. Começarei aqui a dizer algumas palavras do texto que precisamente - supõe-se - coloca a descoberta psicanalítica no mesmo pé que a copernicana, com uma mesma significação de humilhação para o egocentrismo humano: "Uma dificuldade no caminho da psicanálise"[xx]. Pois uma leitura atenta desse texto mostra bem, para além de uma afirmação iniciadora da heteronomia do ser humano, um movimento constante para voltar à autocentração. "O homem se sente soberano em sua própria alma", primeira constatação; mas, na realidade, a observação psicanalítica mostra que: "o ego não é mestre em sua própria casa" e é aqui que a palavra "estrangeiro" retorna com insistência, quase a cada linha: "Em certas doenças, pensamentos surgem repentinamente sem que se saiba de onde eles vêm ... esses hóspedes estranhos parecem ter mais poder que os submetidos ao ego [...] ou então sobrevêm impulsos[xxi] que parecem com os de um estrangeiro, ainda que o ego os negue [...]". O ego diz a si mesmo que é uma doença, uma invasão estrangeira[xxii]. Mas é então que essa "estrangeiridade" vai se encontrar submetida a duas tentativas de redução: a primeira vem da psiquiatria, mas ela o faz com argumentos pobres, contentando-se em... "levantar os ombros dizendo: degeneração, disposição hereditária, inferioridade constitucional!" Em compensação, a outra iniciativa de reintegração do estrangeiro, a da psicanálise, é bem mais radical: "A psicanálise, por sua vez, tenta elucidar esses casos de doenças estranhamente inquietantes (unheimlich)...", e ela tem o direito de dizer finalmente ao ego: "Nada de estrangeiro entrou em ti. É uma parte de tua própria vida psíquica que se furtou ao teu conhecimento". Assim, o movimento mesmo da psicanálise seria o de negar a estrangeiridade do inconsciente propondo sua redução ao mesmo tempo na teoria e na prática do tratamento. E eis como termina esta longa prosopopeia da psicanálise se dirigindo ao ego: "Entra em ti mesmo, nas tuas profundezas e aprende primeiramente a te conhecer..."[xxiii]. Sintetizando: Tu não reconheces aquilo que em realidade é justamente tu mesmo. É o teu próprio núcleo, que tu não reconheces e o inconsciente se revelará estar finalmente "no fundo do homem isso"[xxiv]. De modo que o texto termina com uma referência a Schopenhauer num sentido completamente oposto ao que afirmei em várias ocasiões - a saber que procurar antepassados ao inconsciente freudiano no inconsciente do século XIX é enveredar por um caminho falso - mas essa confissão de uma paternidade duvidosa só pode se produzir à medida que o próprio Freud renega a originalidade de sua descoberta: "Apressemo-nos a acrescentar que não é a psicanálise a primeira a dar esse passo. Podemos citar como precursores filósofos de renome, acima de todos o grande pensador Schopenhauer, cuja ‘vontade' inconsciente pode ser considerada como o equivalente das pulsões psíquicas da psicanálise". De modo que Freud chega a conceder que "o único privilégio" da psicanálise foi o de ter demonstrado clinicamente as teses de Schopenhauer e que as resistências encontradas por suas próprias ideias são apenas um subproduto da aversão provocada pelo "grande nome do filósofo"! Tanto isso é verdade - a partir do momento em que o inconsciente, desde sua estrangeiridade, é reconduzido ao que se pode chamar, com os teólogos e os homens de certa lei, um intimior intimo meo* - que só podemos constatar um retorno à centração: há em mim algo que separei, que deneguei e que devo reintegrar. Certamente, o ego não é mestre em sua casa, mas afinal, ainda assim ele está em sua casa. Não nos cansaríamos de mostrar como a domesticação do inconsciente continua operando no pensamento freudiano, e isso a propósito de cada um dos aspectos da estrangeiridade acima expostos. Igualmente para o processo primário e para a lembrança. Com o processo dito "primário", Freud descobre uma espécie de legalidade que escapa à racionalidade de nosso pensamento pré-consciente - consciente. Mas esse termo "que escapa" pode querer dizer duas coisas: ou bem ele se subtrai a ela, ou bem ele não estava submetido a ela desde o início, sendo mais originário que ela. O termo "primário", em sua própria denominação, comporta toda uma teoria. Inevitavelmente, pensa-se que o primário estava lá antes do secundário, concomitantemente no tempo - o secundário vindo a se construir a partir do primário -, e igualmente de direito, o secundário tendo uma estrutura que pressupõe, como seu fundamento, o primário. Inversamente, a ideia de regressão engloba não somente uma regressão "temporal", ou seja, um retomo a tempos anteriores da existência do sujeito, mas uma regressão "tópica" (regressão a esse sistema de onde provém a excitação, o inconsciente) e uma regressão dita "formal", o retorno a esse nível de organização inferior que é o processo primário, menos estruturado que o processo "secundário", mas tanto a ideia de "primário" quanto a de "regressão" implicam uma coalescência destes três aspectos: aquilo que é menos organizado e aquilo de onde parte a excitação é também aquilo que foi primeiro no tempo. Freud por vezes prestou homenagem a Hughlings Jackson, o "grande Jackson", que é o promotor da ideia de uma hierarquia das formas e, reciprocamente, de uma regressão, desinvolução ou dissolução das formas mais elevadas nas formas menos elevadas que as precedem. Essa concepção de Jackson, Freud a retoma não somente, é claro, a propósito da afasia, mas também na teoria do sonho: aquilo que se desfaz é aquilo que é adquirido por último, aquilo que é superior se dissolve para deixar aparecer o que estava antes dele; portanto, aquilo que é reencontrado é o mais primitivo. É assim que a noção jacksoniana de uma progressão e de uma regressão na organização se encontra nessa linha do pensamento freudiano onde se pode situar, com o capítulo VII da Interpretação dos sonhos e com a primeira parte do Entwurf, um texto exemplar no extravio: as Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, datado de 1911. O essencial da arquitetônica desses dois últimos textos é relativamente simples. Há "em primeiro lugar" um funcionamento puramente associativo do organismo - caracterizado pelo fato de que a energia circula no sistema sem obstáculo e que ela deve igualmente ser evacuada dele sem obstáculo, ser posta fora do sistema o mais rápido possível -, portanto um funcionamento puramente "primário", regido, nos diz Freud, pelo "princípio do prazer". Depois apareceria um funcionamento secundário, regulado, onde a energia se encontra, enfim, barrada em certas vias, permitindo uma acumulação, uma reserva, uma inibição e um comportamento adaptativo, submetido ao "princípio de realidade". Esse princípio de realidade, sob o nome de Not des Lebens (necessidade da vida), longe de estar presente no início do Projeto, é introduzido em um determinado momento, se bem que é necessário admitir que nos é descrito de início um organismo que seria ainda... não vital. É apenas de forma secundária que é introduzida a necessidade de uma reserva de energia para tratar as excitações em conformidade com o princípio da realidade. Assim, o nível constante e a homeostase, não obstante características do próprio funcionamento vital, só seriam introduzidos secundariamente naquilo que deveria ser, de início, um organismo[xxv]. Portanto, o termo "primário" é responsável por muitos dos estragos, tanto quanto o modelo genético e hierárquico, construtivista, imaginado pelo fundador da psicanálise. A tentativa de dar conta, através de conceitos pretensamente psicanalíticos do conjunto do funcionamento vital, ou mesmo simplesmente do conjunto do funcionamento psíquico, corre o risco, a cada instante, de fazer soçobrar nossa barca. O que é necessário afirmar é o seguinte: se o primário é o inconsciente e o inconsciente é o recalcado, esse "primário" é, por assim dizer, algo "tornado primário". Ele não é primeiro, nem primitivo, mas é uma espécie "de estado reduzido"[xxvi] a partir de outra coisa, de forma que o modelo jacksoniano de uma construção por complexificação é errôneo se quisermos aplicá-lo à psicanálise. Mas, mais perniciosa ainda que a noção de primário, porque faz apelo a evidências íntimas, seria a noção aparentemente indiscutível de "lembrança recalcada" se não a colocássemos em jogo com relação à de "reminiscência". Se o inconsciente é constituído de lembranças, que não puderam ser conservadas no ego porque inconciliáveis com ele, fica esta evidência de que uma lembrança, mesmo recalcada, é historicamente minha lembrança. Se ela deve voltar a ser eu mesmo, é bem natural, já que é apenas uma parte de mim mesmo da qual fui forçado, num determinado momento, a me separar. Mais ainda, se o recalcado é apenas uma parte de meu estoque de lembranças, o papel da psicanálise, que consiste em uma abolição do recalcamento e numa supressão do inconsciente, não tem, de direito, limites: a partir do momento em que já era eu mesmo, não há razão para que aquilo não volte a ser, um dia ou outro, eu mesmo! Uma outra forma de dizer a mesma coisa seria: o inconsciente é patológico. Na medida em que se trata de uma parte de mim mesmo da qual cometi o erro - por pusilanimidade, fraqueza ou defesa - de me separar, o patológico, por direito, deve poder ceder o lugar ao normal e a lembrança ser completamente reintegrada. Só há inconsciente se patológico, ou melhor, o processo que cria o inconsciente é um processo patógeno. Donde, como corolário e de forma recíproca, a ilusão ou a louca esperança de tornar novamente todo o inconsciente consciente. Tudo enfim vai se revelar: tendo reintegrado a lembrança a partir da qual você adoeceu, você não continuará mais doente... e você não terá mais inconsciente. É na "carta do equinócio" que vemos, de forma muito clara, perfilar-se - a posteriori, uma vez que Freud renuncia a ela - essa ambição desmesurada de suprimir ou dominar completamente o inconsciente. Donde, a desilusão, que é apenas o reverso de uma ilusão: "Quando se vê que o inconsciente não pode jamais superar a resistência do consciente, então cessa também nossa expectativa de que, durante o tratamento, as coisas venham a acontecer no sentido inverso até uma completa dominação do inconsciente pelo consciente". Em suma, pode-se colocar assim a questão maior: como é que o inconsciente pode ser algo recalcado, e como é que, apesar disso, pode ser inesgotável, isto é, recuar incessantemente diante de nossas ações? Donde a reviravolta dessa carta 139/69. Primeiramente em negativo: se o inconsciente não pode ser completamente reintegrado, é porque não é da ordem da lembrança; as fantasias inconscientes não são a simples lembrança de cenas vividas. E a isso eu digo: Muito bem! Não é lembrança, procuremos então de outro lado. Mas, a partir desse ponto, Freud é levado a emitir, sobre a natureza da fantasia inconsciente, uma dupla hipótese que não cessará de hipotecar toda sua obra: sob o signo da posterioridade, a ideia da fantasia retroativa[xxvii]; e sob o signo da anterioridade, a ideia da transmissão hereditária. Não seria, então, possível manter que o inconsciente tem um laço estreito com o passado, com o passado individual, renunciando concomitantemente à problemática psicológica da lembrança, com sua intencionalidade visando meu passado, mas também com suas ilusões retrospectivas e seu caráter, finalmente, "indecidível"? Pois aqui Freud negligencia aquilo que constituía o núcleo inovador de sua formulação inicial: não é de lembranças - fossem elas esquecidas - que sofre a histérica, mas de "reminiscências". Termo que podemos, é claro, restringir à memória - uma lembrança separada de seu contexto -, mas ao qual podemos aceitar atribuir esse valor de extravagância, que não está ausente da doutrina platônica: algo que retorna vindo de outro lugar, talvez uma pseudolembrança vinda... do outro. Ei-nos chegados ao ponto que consideramos como essencial a esta revolução copernicana iniciada por Freud; o descentramento, na realidade, é duplo; a outra coisa (das Andere) que é o inconsciente só se mantém na sua alteridade radical pela outra pessoa (der Andere): em suma, pela sedução[xxviii]. Que a alteridade da outra pessoa se esbata, que ela seja reintegrada sob a forma de minha fantasia do outro, do meu "fantasma de sedução", e é a alteridade do inconsciente que é posta em perigo. Donde a questão formulada num grau secundário: o que impede a teoria da sedução de "sustentar" sua afirmação do primado da estrangeiridade externa? O que, senão uma apreciação inexata das dimensões dessa descoberta e, não tenhamos medo em afirmar, de sua dimensão filosófica: de que forma o problema da "existência da outra pessoa" não se encontraria subvertida, a partir do momento em que essa outra pessoa é primeira na constituição de mim mesmo: uma prioridade que não é somente postulada na teoria, mas implicada e experimentada na transferência. A outra pessoa é a da sedução, o adulto que seduz a criança. Ora, desde a época em que formula a hipótese da sedução e até bem mais tarde. Freud oscila entre duas posições que são tanto uma quanto outra insuficientes. De uma parte, uma concepção que se pode dizer subjetiva, interior, levando o outro à percepção que ego[xxix] tem do outro, eventualmente ao traço dessa percepção, ou, uma vez criticada a noção de lembrança, à imaginação dessa percepção do outro. Nada, nessa abordagem, que dê ao outro um lugar que não seja no seio de minha subjetividade. E depois, ao lado disso e por momentos, um intento mais ingênuo filosoficamente, que consiste em... ir procurar o outro na peça ao lado. O outro que me fala sempre a partir da "peça ao lado", em determinado momento irei ver se ele realmente está ali. Concretamente, na situação da cura, e como que para encontrar o outro atrás dos dizeres do paciente, Freud não se priva de sugerir: questione assim seu servidor ou sua mãe, vá ver nos arquivos familiares se tal pessoa estava viva quando você era criança, e se é possível que você tenha tal lembrança[xxx]. Ou então, decididamente isto é comum mesmo ainda muito tarde, o próprio Freud não se privará de ir ver, na peça ao lado, se pode encontrar algum traço real do outro, pois, afinal, nunca se está seguro das investigações conduzidas pelo paciente[xxxi]. Tanto uma como outra posição, a do puro e simples subjetivo quanto a atitude que consiste em "ir ver do outro lado", tem um único e mesmo pressuposto: o outro só se dá na representação subjetiva de um real bruto. Mas será que se pode acusar Freud de que lhe falta algo que permita ao outro não ser reduzido à subjetividade daquele que o recebe, mas se manter em sua estrangeiridade? O que é que mantém o outro em sua estrangeiridade? Pode-se postular aqui, com Lacan, a prioridade da linguagem? Se falo, de minha parte, da "mensagem", é por razões bem definidas, que são pelo menos duas: por um lado, no sentido em que a mensagem pode ser tanto não verbal quanto verbal; e, na criança pequena, ela é prioritariamente não verbal. Por outro, no sentido que a ênfase dada à "linguagem" apaga a alteridade do outro, em proveito de estruturas transindividuais. Para fazer compreender essa categoria da mensagem, insisti em diversas ocasiões na expressão empregada por Freud para designar os dados originários propostos à criança: aquilo que ela tem, antes de tudo, que dominar em sua experiência, que ordenar, que "traduzir" para fazê-lo entrar em seu próprio sistema. Trata-se do Wahrnehmungszeichen[xxxii], termo que indica claramente que esses elementos primeiros a traduzir são dados na percepção, mas que nos deixa numa ambiguidade quanto ao sentido - e à tradução - desse Zeichen: "índices de percepção", ou "signos de percepção"? Se optarmos pela ideia de "índices" somos levados a considerá-los como elementos puramente objetivos da situação, singularizados para a criança enquanto lhe permitiriam revelar outra coisa e ter uma visão mais completa do fenômeno. Pode-se dizer que Freud não vai mais longe do que a relação que denotamos aqui pelo termo de índice: algo que está em relação puramente extrínseca com seu significado, e que é eventualmente destacado no conjunto perceptivo pelo sujeito que percebe. Mas podemos, em compensação, optar pela tradução "signo de percepção", conferindo-lhe um sentido muito mais fecundo: esses elementos não são as simples consequências ou detalhes que acompanham a situação; encontrando sua origem naquele que envia a mensagem, eles fazem sinal em um duplo sentido conjunto: assumem valor de signos, e isso porque, destacados pelo emissor, são endereçados a ego. A ausência de qualquer abertura à noção de mensagens, nós a sentimos cruelmente em Freud, em numerosas ocorrências[xxxiii], entre as quais demorar-me-ei um instante naquilo que ele nomeia "experiência de satisfação" (Befriedigungserlebnis). Achamos sua descrição no Projeto de uma psicologia científica, primeira parte - e o que direi corrobora o aspecto "ptolomaico" - e, de outra parte, na Interpretação dos sonhos[xxxiv]. Aliás, o Vocabulário de Psicanálise delimita bem o que está aqui em questão: o nascimento do Wunsch, digamos o nascimento do desejo (souhait)[xxxv], que é da ordem do humano, a partir da necessidade e de sua satisfação que são da ordem do vital. Pois a necessidade visa justamente a seu apaziguamento (befriedigen = apaziguar), tratando-se de uma tensão definida enquanto tal num sistema energético que tende para a estabilidade. Esse modelo da necessidade, que não está necessariamente caduco em fisiologia, fornece a base biológica concreta sobre a qual vai se constituir o desejo sexual. O ponto de partida é indicado como sendo o Hilflosigkeit da criança, isto é, sua incapacidade de ajudar a si mesma, sua "desajuda". Incapaz de prover sozinho suas próprias necessidades, o organismo do lactante é confrontado a um acúmulo de tensão insuportável, comparável à elevação de nível em um reservatório, ao qual ele só pode responder de duas maneiras: seja deixando o reservatório transbordar (ação que Freud considera como não específica, inadequada naquilo em que ela não impede o reservatório de ficar cheio), ou de maneira específica, por uma série de ações permitindo descarregar a tensão por um certo tempo. A característica da "desajuda" é precisamente a incapacidade da criança de desencadear nela mesma a ação que pode esvaziar o reservatório de maneira durável. Tudo que ela pode fazer é gritar; gritos, aliás, que não são mais que a expressão puramente mecânica do transbordamento não específico. São os gritos que suscitam "a ajuda estrangeira", a ação da mãe caracterizada, antes de tudo, pelo aporte de alimento[xxxvi]. O que vai se desenrolar é uma sequência específica de satisfação: uma série de atos consumatórios[xxxvii] conduzindo a um relaxamento prolongado. Mas tão importante quanto esta há, segundo Freud, os traços mnésicos, as imagens que se inscrevem e que são em número de três; uma lembrança de satisfação, assim como dois tipos de sinais: sinais ligados ao objeto (uma imagem do alimento) e de outra parte imagens internas correspondendo a uma memorização da sequência consumatória. Demoremo-nos, e isto vale a pena, na descrição da Traumdeutung: "A criança que tem fome vai gritar ou se agitar na desajuda. Mas a situação continua imutável, pois a excitação proveniente da necessidade interior não corresponde a uma força de impacto momentâneo mas a uma força agindo continuamente. Uma reviravolta só pode intervir se [...] pela chegada de ajuda estrangeira é vivida a experiência de satisfação que suprime o estímulo interno. [Eis aqui a guinada: passa-se para o nível da representação]. Uma parte essencial desta experiência vivida é a aparição de certa percepção (no exemplo, a percepção do alimento) cuja imagem mnésica, a partir disso, fica associada ao traço mnésico da excitação da necessidade. Assim que essa necessidade aparece novamente, produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida, uma moção psíquica que reinvestirá a imagem mnésica dessa percepção. Uma tal moção é o que chamamos desejo. O reaparecimento da percepção é a realização de desejo, e o pleno investimento da percepção pela excitação de necessidade é a via mais curta em direção à realização de desejo. Nada nos impede de levantarmos a hipótese de um estado primitivo do aparelho psíquico no qual essa via estaria efetivamente marcada de modo que o desejar desembocaria então em um alucinar". Citei longamente essa passagem na medida em que se trata de uma descrição ao mesmo tempo extraordinária e abortada. Extraordinária porque trata-se de fazer nascer alguma outra coisa: a partir da necessidade, o desejo. Abortada, pois, como é claro, da satisfação da necessidade só pode nascer uma reprodução alucinatória da satisfação da necessidade. O desejo do qual nos é descrita uma espécie de gênese é um desejo de alimentação e nada mais. Se admitirmos que o sexual não é somente o alimentar transportado na alimentação ou alucinado, fica evidente que a alquimia freudiana fracassou: essa tentativa de fazer nascer ouro do sexual a partir do chumbo do alimentar. Da mesma maneira, se Freud tivesse descrito aqui uma experiência fisiológica sexual ela teria sido reproduzida em seguida em um desejo sexual[xxxviii]. É importante darmo-nos conta do que falta na "experiência de satisfação", pois aí está um modelo sempre invocado por psicanalistas, sem que se deem conta de sua incapacidade de produzir o que quer que seja. Antes de tudo, a propósito da ajuda estrangeira, frisemos que, para Freud, ela se situa somente no tempo inicial do processo. A introdução do alimento se limita a desencadear o conjunto da ação. Tudo em seguida consiste em um funcionamento solipsista. Não resta mais nenhuma marca do estrangeiro no que vai se passar tanto no objeto quanto no objetivo pulsional: o objeto cuja percepção é reproduzida é o alimento; da mesma maneira, é a sequência consumatória alimentar - ingestão, digestão - que deve se reencontrar no cenário rememorado do desejo[xxxix]. Há aqui dois aspectos que finalmente formam um só. De um lado a ausência do adulto na continuação da sequência, e de outro, o recolhimento por parte de ego - o nenê - de índices perceptivos puramente objetivos que são somente representações sem decalagem de certos elementos da situação. De tal modo que, finalmente, o que falta em tudo isso é o signo que "faz sinal". Um signo proposto pelo adulto à criança, forjado por ele na situação, antes que a própria criança acabe esse recolhimento. Ora, é bem por aí, e unicamente por aí, que podemos conceber a intervenção do sexual na experiência de satisfação. Aqui, eu vou evidentemente bem além de Freud. É o adulto que coloca em primeiro plano o seio - e não o leite - e isso em função de seu próprio desejo consciente e sobretudo inconsciente. Pois o seio não é somente um órgão destinado a alimentar a criança, mas um órgão sexual, o que é perfeita e completamente escotomisado por Freud e depois de Freud. Nenhum texto, nenhuma alusão, mesmo de Freud, leva em conta a excitabilidade do seio feminino, não somente no aleitamento, mas simplesmente na vida sexual da mulher. Comentei, uma vez mais, a experiência arcaica do aleitamento. Mas o que nomeamos "cena primitiva" se presta a uma crítica análoga. Todas as observações, todos os comentários das cenas originais cindem, por assim dizer, dois mundos sem comunicação: de um lado um comportamento parental, cuja experiência vivida e o contexto estão, por definição, fora do alcance de ego; de outro lado, o da criança, um espetáculo traumatizante, frequentemente entrevisto mais que visto, adivinhado, e mesmo mencionado por uma simples alusão (coito animal), que a criança deve completar, interpretar, simbolizar. É nisto que insisto, que entre os dois falta esta suposição (que deveria passar pela cabeça de um psicanalista!) de que dar a ver um coito não é jamais um fato puramente objetivo, e mesmo o deixar-ver da parte dos pais é sempre, de certa maneira, um fazer-ver, uma exibição. Mas Freud não suspeitará nunca dessa ideia; a cena originária só toma seu impacto porque ela veicula uma mensagem, um dado-a-ver ou um dado-a-escutar da parte dos pais. Não há somente um outro real em si, para sempre inatingível, os pais e seu gozo e, de outro lado, o outro para mim, puramente imaginado por mim: há de maneira primordial o outro que se endereça a mim, o outro que "me quer" alguma coisa, mesmo somente não se escondendo desse coito. O que me quer esse pai me mostrando, me deixando ver essa cena originária, seja apenas me levando nos campos para assistir os coitos dos animais? O que falta em Freud - não lhe permitindo levar em conta a alteridade da outra pessoa (o sedutor), o qual por sua vez comanda a alteridade da outra coisa (o inconsciente) -, podemos nomeá-lo de diferentes maneiras, finalmente próximas: endereçamento, mensagem, signo que "faz sinal", ou ainda o significante, categoria que Lacan teve o grande mérito de levar adiante sob a condição de lhe dar um valor bem diferente daquele que toma em "o algoritmo saussuriano"[xl]. Sentimo-nos autorizados a gracejar um pouco com o último Husserl abandonando por assim dizer o Ego transcendental e constituinte ao "perigo da astronáutica", nos perguntando como é que com as naves espaciais (as "arcas-voadoras") Ego leva a "Terra-sol", seu arquilar, na sola de seus sapatos[xli]. No entanto as mesmas viagens interestelares - em boa via de realização depois desse texto de 1934 - colocaram um outro problema, mais apaixonante e mais autenticamente filosófico: como enviar, nos espaços interestelares, uma mensagem que signifique minha intenção de comunicar e isso para além de toda comunidade de código com o eventual receptor. É assim que, em 3 de março de 1972, o foguete Pioneer 10 levou consigo uma tal "garrafa ao mar", uma mensagem que "visa comunicar alguns dados sobre a origem espaço-temporal dos construtores do engenho espacial, e sobre sua natureza". Quaisquer que sejam, aliás, a textura dessa mensagem e a inventividade de que seus autores deram prova[xlii], toda diferença reside (situando-nos do lado do receptor) entre, de um lado, capturar um foguete e descobrir em sua constituição os índices da presença de seres inteligentes e, de outro lado, receber os significantes que, sem pressupor nenhum código, nenhuma regra de interpretação comum, testemunham a intenção de comunicar, e talvez expectativas conscientes e até inconscientes dessa invenção. Endereçar-se a alguém sem sistema de interpretação comum, principalmente de maneira extraverbal, tal é a função das mensagens adultas, desses significantes, dos quais eu afirmo que são, simultânea e indissociavelmente, enigmáticos e sexuais: nisso que não são transparentes em si mesmos, mas comprometidos pela relação do adulto com seu próprio inconsciente, pelas fantasias sexuais inconscientes mobilizadas nele pela sua relação com a criança. A estrangeiridade interna "mantida" pela estrangeiridade externa, a estrangeiridade externa mantida por sua vez pela relação enigmática do outro com seu próprio estrangeiro interno; tal seria minha conclusão sobre a revolução do descentramento proposto aqui no prolongamento da descoberta freudiana. Falta mostrar em que ela é inacabada e qual é a natureza - contingente ou inelutável - desse não acabamento. Que Freud podia - teria podido - ir além do que fez, como duvidaríamos disso, na medida em que está aí a ambição de nossa própria tentativa? Quanto às razões de seu bloqueio depois de seu extravio, propus em diversos momentos explicações parciais, aliás, correlatas umas com relação às outras: centração na patologia, donde a recusa de um inconsciente normal; insuficiência de elaboração da teoria tradutiva; ausência, sobretudo da categoria de mensagem, como uma terceira realidade de uma dignidade igual à realidade material e à realidade psicológica. No presente, valorizarei um outro fator que tem diretamente a ver com a oposição centração - descentração, retornando às considerações de Freud sobre as três "humilhações" infligidas ao homem pela ciência. Com efeito, negligenciei provisoriamente o fato de Freud intercalar, entre a humilhação copernicana e a humilhação psicanalítica, a ferida infligida em nosso orgulho pelas descobertas evolucionistas e atribuídas a "Charles Darwin, seus colaboradores e seus precursores"[xliii]. O homem que se crê de origem divina, estrangeiro ao mundo animal, aprende da ciência que "é ele próprio originário da série animal". Ora, esse lugar concedido ao evolucionismo e à humilhação dita biológica, entre as excentrações propostas por Copérnico e por Freud, aparece-nos como ambíguo e perigoso. Ambíguo, pois religar o homem à sua linhagem biológica, animal, é verdadeiramente descentrá-lo e humilhá-lo? Uma vez passados alguns gritos alarmados provocados pela ideia de que o "o homem descende do macaco" não é um prato bem cheio que nos é servido dessa forma? A árvore genealógica que mais de um, em sua fatuidade, ambiciona reconstituir, eis que remonta além de Abraão, de Isaac e de Jacó, além de Adão, à história da vida inteira. A tal ponto que o termo "filogênese", comumente reservado à gênese de uma só espécie, acaba por englobar o conjunto da evolução da vida, da qual a espécie humana é o último elo. Solidamente sentado - bem centrado - sobre a pirâmide animal, o homem não deixa de se considerar como o coroamento e a eflorescência: uma doutrina à Teilhard de Chardin apagou a suposta humilhação evolucionista. Situada erroneamente por Freud entre as revoluções do descentramento, a doutrina evolucionista recentra em realidade o homem sobre o que vive; mas ela será perigosamente tomada por Freud para colocar em perigo a essência da descoberta psicanalítica. A invocação da filogênese, a hereditariedade das pulsões e mesmo aquela dos cenários e fantasias, retorna ao primeiro plano cada vez que se perde de vista o cenário psicanalítico. É justo ela que subjaz ao próprio texto onde Freud crê afirmar a "humilhação psicológica" do homem. "Volta-te a ti mesmo" e verás que "nada de estrangeiro entrou em ti": essas pulsões sexuais recalcadas e estranhas não são finalmente mais que a expressão de forças somáticas, sobre as quais a evolução da espécie - e, mais além, aquela da vida - imprimiu sua marca indelével. Mostrar que podemos ir mais longe que Freud, manter melhor que ele o "copernicanismo" de sua descoberta, eis aí o aspecto maior daquilo que nomeamos "novos fundamentos para a psicanálise". Mas essa afirmação seria insuficiente se ela simplesmente remetesse Freud ao erro, à cegueira, ou mesmo à insuficiência dos instrumentos conceituais de que dispõe. A retificação de um extravio, tal como o entendo, vai além de uma simples refutação do erro, e até da explicação de suas causas contingentes. É preciso propor uma visão causalista mais profunda: mostrar como, no teórico Freud, o extravio vai par e passo com uma espécie de conivência do lado do objeto, ou seja, um ocultamento da verdade inerente à coisa mesma sobre a qual o pensamento se regula. A reclusão sobre si do sistema psíquico freudiano como monadologia, resultando na ideia de um "aparelho da alma" (resultado, aliás, que é anunciado desde o início) estaria profundamente ligado ao fechamento sobre si do ser humano no próprio processo de sua constituição. Eu propus - em uma formulação humorística paralela à lei de Haeckel, segundo a qual a ontogênese reproduz a filogênese - uma espécie de lei de Laplanche que se enunciaria: a teoreticogênese reproduz a ontogênese. Sem querer propor assim uma lei universal, submetida à prova da falsificação de tipo popperiano, eu só posso constatar que, na evolução da teoria freudiana, encontramos mais de uma vez um paralelismo como desenvolvimento do indivíduo humano. Já tive a ocasião de mostrá-la, a propósito da sucessão das teorias ou ainda do pansexualismo. Tendo em mente esse paralelismo entre a ontogênese individual e a teoria que a sustenta, é preciso propor a questão: a revolução copernicana da psicanálise pode estar acabada? A revolução copernicana de Copérnico, astronômica, fracassa como entrevimos, na tentativa de Marr: não podemos reformar nossa língua, e com ela nossa percepção e nosso senso íntimo, a ponto de exprimir cotidianamente o movimento do sol, da lua e das estrelas em "linguagem Copérnico": a ferida narcísica pela ciência fracassa em nossa centração narcísica como corpo vivo. Com o psiquismo humano as coisas são um pouco diferentes. A chave do problema continua sendo o narcisismo, mas este é tomado na própria evolução do objeto: não podemos dizer que o objeto astronômico, o universo, seja nem copernicano, nem ptolomaico, ou ainda, antes ptolomaico e depois copernicano. Em compensação temos o direito de afirmar que o ptolomeísmo do psiquismo humano, o recentramento narcísico, sucede, como a seu pressuposto, a uma etapa "copernicana", onde o pequeno lactante gravita em torno do outro e é passivo em relação às suas mensagens. Além disso, o momento do fechamento narcísico - a constituição do ego como instância - é correlativo, nos momentos do recalcamento originário, à constituição do outro interno: o inconsciente. Do lado da teoria, a incessante recaída "ptolomaica" de Freud, sua maneira de sempre falar do ponto de vista de ego (no que concerne ao interpessoal) depois do ego (no que concerne ao intrapessoal) não é mais que o paralelo da reclusão narcísica inelutável do aparelho da alma. Se o ser humano se fecha muito cedo sobre si mesmo, e se a teoria é incessantemente impulsionada, como por uma força de atração interna a se fechar também, que sentido tem em se manter a abertura trazida pela teoria da sedução generalizada? Será insensato "falar-teoria-da-sedução" assim como é insensato para Marr "falar - copernicano"? Uma tal constatação de fracasso, a inelutável reclusão da teoria sobre ego só seria definitiva se a psicanálise não fosse mais que uma teoria face a um objeto. Mas a psicanálise, como sempre sustentou Freud, é antes um "método" do qual, evidentemente, a situação psicanalítica é indissociável. O que acrescentamos é que essa situação reitera a situação originária do ser humano. Enquanto tal, ela é ao mesmo tempo ptolomaica e copernicana. Copernicana enquanto encontra de saída seu centro de gravitação no outro: ao mesmo tempo na observação da regra fundamental - destinada a colocar em evidência essa atração do sol e dos astros inconscientes, que faz gravitar, de maneira oculta, a aparente coerência de nosso discurso - e na transferência[xliv]. Mas a própria cura psicanalítica não escapa a uma incessante recentração: o ego aí não para de trabalhar para tentar recolocar em ordem os elementos inconscientes "recuperados". Wo Es war, soll Ich werden Aí está uma máxima em seu fundo ptolomaica, mesmo se concedermos que o ich em questão não é somente o ego narcísico no sentido limitado que lhe dá a "segunda tópica". Mas a teoria da sedução impõe a máxima inversa ou complementar. Wo Es war, wird (soll? muss?) immer noch Anderes sein Lá onde havia id, haverá sempre e ainda o outro. A permanência do inconsciente, a prioridade do endereçamento do outro: é uma das funções da análise mantê-las, e é dever do analista garantir o respeito que lhes é devido.
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