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Resumo
O presente artigo é um estudo sobre o capítulo "Infância" da autobiografia Memórias, sonhos, reflexões, de Carl Gustav Jung. Pretendemos elucidar o mito pessoal, de tipo profético, com o qual o psicólogo suíço representa a si mesmo ali, para então tentarmos articulá-lo com a postulação, por Jacques Lacan, de que o conceito junguiano de inconsciente coletivo é um synthoma, isto é, uma resposta, aqui de tipo teórico, e comparável à obra literária de James Joyce, a uma situação pessoal de extrema angústia ou mesmo de uma psicose latente.


Palavras-chave
Jung; Lacan; mito; synthoma; angústia.


Autor(es)
Caio Liudvik
é cientista social com mestrado, doutorado e pós-doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo; jornalista, escritor e tradutor.


Notas

1 J.-P. Sartre, Saint Genet - ator e mártir, p. 19.

2 P. Rieff, O triunfo da terapêutica, p. 117 ss.

3 C. G. Jung, Psicologia e religião.

4 Y. Tardan-Masquelier, C. G. Jung: a sacralidade da experiência interior,
p. 21.

5 C. G. Jung, op. cit., p. 17.

6 J. Lacan, O Seminário, livro 23 (O sinthoma), p. 121.

7 J. Lacan, op. cit., p. 121.

8 D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas, p. 365s.

9 P. Stern, C. G. Jung - o profeta atormentado.

10 D. W. Winnicott, op. cit., p. 372.

11 C. G. Jung, Memórias, sonhos, refl exões.

12 J. Lacan, O mito individual do neurótico.

13 S. Freud, Notas sobre um caso de neurose obsessiva.

14 M. Eliade, Le mythe de l'éternel retour.

15 C. G. Jung, Memórias ..., p. 35.

16 Y. Tardan-Masquelier, op. cit., p. 18.

17 Y. Tardan-Masquelier, op. cit. p. 21.

18 C. G. Jung, Memórias ..., p. 20.

19 C. G. Jung, op. cit., p. 19.

20 P. Stern, op. cit., p. 7.

21 P. Stern, op. cit., p. 8.

22 C. G. Jung, Memórias ..., p. 23.

23 F. McLynn, Carl Gustav Jung - uma biografi a.

24 F. McLynn, op. cit., p. 17.

25 F. McLynn, op. cit., p. 17.

26 F. McLynn, op. cit., p. 17.

27 D. Bair, Jung - uma biografi a.

28 C. G. Jung, Memórias ..., p. 22.

29 C. G. Jung, op. cit., p. 22.

30 C. G. Jung, Resposta a Jó.

31 C. G. Jung, Memórias ..., p. 24.

32 F. McLynn, op. cit., p. 21.

33 C. G. Jung, Memórias ..., p. 24s.

34 C. G. Jung, op. cit., p. 24.

35 C. G. Jung, op. cit., p. 23.

36 C. G. Jung, op. cit., p. 23.

37 D. Bair, op. cit., p. 40.

38 C. G. Jung, Memórias ..., p. 22.

39 C. G. Jung, op. cit., p. 31.

40 C. G. Jung, op. cit., p. 31.

41 C. G. Jung, op. cit., p. 20.

42 C. G. Jung, op. cit., p. 20.

43 C. G. Jung, op. cit., p. 52.

44 C. G. Jung, op. cit., p. 33.

45 C. Liudvik, "Um arcaísmo moderno", p. 191s; cf. C. G. Jung, Símbolos
da transformação.

46 C. G. Jung, Memórias ..., p. 34.

47 C. G. Jung, op. cit., p. 34.

48 C. G. Jung, op. cit., p. 28.

49 C. G. Jung, op. cit., p. 25s.

50 C. G. Jung, op. cit., p. 45s.

51 P. Stern, op. cit., p. 7.

52 C. G. Jung, Memórias..., p. 30.

53 C. G. Jung, op. cit., p. 30.

54 J. Joyce, Ulisses, p. 39.

55 J. Lacan, Escritos, p. 76.

56 O texto de Lévi-Strauss em questão é "A Efi cácia Simbólica" (1949),
depois incluído pelo autor no livro Antropologia estrutural.

57 Freud, Notas sobre ...

58 C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, p. 226-7.

59 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 228.

60 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 229.

61 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 230.

62 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 233.

63 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 234.

64 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 235.

65 C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 236.

66 J. Lacan, O mito ..., p. 47.

67 J. Lacan, op. cit., p. 47.

68 J. Lacan, op. cit., p. 48-9.



Referências bibliográficas

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São Paulo: Brasiliense.

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Tardan -Masquelier Y. (1994). C. G. Jung: a sacralidade da experiência interior.
Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus.

Winnicott D. W. (2005). Explorações psicanalíticas. Trad. José Octavio de Aguiar
Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.





Abstract
This is a study about the chapter “First years” of Carl Gustav Jung’s autobiography Memory, dreams, refl ections. We intend to elucidate the personal myth, of a prophetic type, through which the Swiss psychologist represents himself, and to articulate it with Lacan’s view of Jung’s concept of collective unconscious as a synthom, i. e. answer. In this case it is of a theoretical type, comparable to James Joyce’s literary work, and was useful in a situation of extreme anxiety or even a latent psychosis Jung went through after his breaking off from Freud.


Keywords
Jung; Lacan; myth; synthom; anxiety.

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 TEXTO

Jung entre a angústia e o mito

o inconsciente coletivo como sinthoma


Jung between anxiety and myth
collective unconscious as synthom
Caio Liudvik


Se desejarmos compreender esse homem e seu universo, não há outro meio senão reconstruir cuidadosamente, através das representações míticas que ele nos oferece, o acontecimento original a que ele se refere incessantemente e que reproduz em suas cerimônias secretas. Impõe -se um método: pela análise dos mitos, restabelecer os fatos em sua verdadeira signifi cação.
[J. -P. Sartre] [1]

Em numerosas ocasiões, ao longo de sua obra, Carl Gustav Jung (1875 - 1961) parece investir a psicologia moderna – ou melhor, a sua própria escola doutrinária, a psicologia analítica – de uma missão especial, com relação à religião. Missão de salvação, para que as verdades da fé não estivessem condenadas ao descrédito e ao desuso sob o impacto da maciça racionalização que se impunha sobre a vida pública e privada desde o Iluminismo e as revoluções burguesas [2]. Por meio dos conceitos de arquétipo e de inconsciente coletivo, entre outros, Jung considerava estar inaugurando uma via hermenêutica que, para além da efi cácia prática nos consultórios terapêuticos, aspirava a também ser um resgate do signifi cado da religião, tomada aqui num sentido mais amplo do que o desta ou aquela confi ssão institucional; religião, religere, enquanto observância cuidadosa e (literalmente) devotada à realidade da alma.

Jung pretendeu, em obras como “Psicologia e Religião” [3], reverter a cristalização dogmática que matou, para muitos, a possibilidade da experiência originária da religiosidade enquanto evento na alma (psique). Declarava -se empenhado na difícil empresa de construir uma ponte que re -ligasse (para lembrar outra das origens do termo religião, religare) a concepção do dogma com a experiência imediata dos arquétipos psicológicos e afi rmava que encontraria os materiais necessários para tanto no estudo dos símbolos naturais do inconsciente, em especial os sonhos. Uma morte e ressurreição da verdade, antes fi gurada em crenças, instituições, e agora, num movimento de re -volta (no duplo sentido de um protesto iconoclástico e um retorno à origem), resgatada em seu valor originário, acessível ao homo psychologicus dos tempos modernos. Jung assim fazia sua, de modo peculiar, uma exigência do grande teólogo, e fundador da hermenêutica moderna, Friedrich Schleiermacher, de quem o avô paterno de Jung fora grande amigo: a primazia da “experiência espontânea” do religioso sobre os dogmas e rituais [4].

Não é nosso foco, aqui, uma avaliação detalhada desse projeto e de seu grau de sucesso, na obra de Jung e de seus continuadores. Caberia tão -somente registrar uma convicção nossa que precedeu e se reforçou ao longo dessa pesquisa, qual seja: estamos diante de um homem excepcional, um gênio, para usar categoria tão ao gosto das tradições românticas alemãs de que Jung era ávido admirador, gênio, sim, mas que nem por isso estaria isento das vicissitudes e sofrimentos que parecem ser fardo de todos nós, como pedra de Sísifo, tanto mais pesada quando mais profundo o homem que a tenha no meio do caminho. Dessa perspectiva mais existencial em que nos colocamos, rótulos psicopatológicos como neurose ou psicose têm menos peso heurístico do que a questão da angústia. Seria sim distorcer gravemente nossa tese resumi -la como: Jung é um louco, e suas teses são nada mais que delírios.

Longe da aura pacífi ca e transcendental que muitos junguianos da New Age lhe atribuem, o mestre suíço era franco em assumir que “vivemos sempre como que em cima de um vulcão” [5]. Iremos explorar algo do vulcão de tormentos subjacentes à existência concreta de Jung e à sua obra teórica, a qual é antes de tudo uma escrita subjetiva, um depoimento sobre si mesmo projetado (como os alquimistas faziam com seu próprio espírito, ao simbolizar a matéria no laboratório) em macroteorias da natureza humana. Para essa nekya, como os gregos chamavam a descida ao inferno, um de nossos principais guias será Jacques Lacan, e uma afi rmação em seu Seminário, livro 23 – O Sinthoma, dedicado a James Joyce. No capítulo viii da obra [6] (“Do sentido, do sexo e do real”), Lacan diz que, em Finnegans Wake, Joyce faz o próprio sonho ser um sonhador. E acrescenta: “É nisso que Joyce desliza, desliza, desliza até Jung, desliza até o inconsciente coletivo. Que o inconsciente coletivo seja um sinthoma, não há melhor prova que Joyce, pois não se pode dizer que Finnegans Wake, em sua imaginação, não participa desse sinthoma” [7].

Eis -nos diante de um enunciado demasiado curto para a complexidade da enunciação que lhe subjaz, cujo alcance parece ir além de Joyce e se referir ao próprio Jung, cuja ruptura com Freud, em 1912 -13, envolveu, entre outras divergências, a sua crítica ao olhar personalista – o inconsciente como confi guração psíquica única, de conteúdos exclusivos de cada sujeito– da teoria freudiana; uma perspectiva que seria insensível à camada mais profunda da mente, repleta de conteúdos simbólicos comuns a todos os indivíduos, o inconsciente coletivo.

Lacan, ao referir -se a tal noção como um sinthoma, parece nos convidar não tanto a uma discussão de caráter teórico -conceitual, mas a fazer o caminho inverso daquele de Jung: do universal ao particular, no caso, ao universo existencial do próprio Jung, cujos matizes e sulcos subjetivos teriam deixado, de modo indelével, suas digitais sobre o conceito de inconsciente coletivo.

Estará Lacan levantando a questão da possibilidade de um caso Jung nas bases em que estabelece, em seu seminário, o caso Joyce? Estará, em suma, sugerindo que a noção de inconsciente coletivo, como criação sinthomática, teve para Jung a função que a escrita teve para Joyce, ou seja, a de permitir que o sujeito se houvesse com uma psicose não desencadeada, portanto, com o acontecimento da foraclusão do Nome -do -Pai?

Muito mais explícito nesse sentido foi D. W. Winnicott, que, em resenha da autobiografi a de Jung, afi rma que este autor “fornece -nos um quadro de esquizofrenia de infância, e, ao mesmo tempo, sua personalidade demonstra uma força de um tipo tal que o capacitou a curar- -se sozinho” [8]. Cabe registrar que outro importante estudo psicanalítico sobre a vida de Jung, o de Paul Stern [9], alimenta também essa direção interpretativa, ao deter -se nas perturbações emocionais que marcaram a trajetória de seu biografado.

Soa, no mínimo, próximo da função da escrita em Joyce, segundo Lacan, aquilo que Winnicott afi rmou sobre a vida de Jung e sua moléstia psicótica. Para este autor, tal moléstia não trouxe apenas inúmeros problemas, mas também o impulso para realizações excepcionais. Assim, “( Jung), naturalmente, lançou um raio de luz sobre o problema que é comum a todos os seres humanos, na medida em que existem defesas comuns contra temores intoleráveis que poderiam ser chamados de psicóticos” [10].

Jung começou a escrever Memórias, Sonhos, Refl exões com o auxílio de Aniela Jaff é em 1957, mas o livro só veio a ser publicado em 1962, ano seguinte ao da morte do autor [11]. Detemo -nos, como Winnicott em sua resenha, no capítulo “Infância”. Os limites do presente artigo nos sugerem a formulação e fundamentação de uma questão, sem pretender uma resposta exaustiva. Queremos identifi car algumas condições de possibilidade para uma ulterior elucidação do inconsciente coletivo como sinthoma de Jung. Um outro conceito importante de Lacan, o mito individual, referido em artigo de 1953, retomado e formulado em 1978, por Jacques -Alain Miller [12] com referência a um caso de neurose, o caso freudiano do “Homem dos Ratos” [13], é tomado aqui como baliza conceitual.

Nossa hipótese é que o mito individual de Jung, conforme fi ca patente no seu relato autobiográfi co, pode fornecer importantes pistas acerca do conteúdo do sinthoma junguiano, um profetismo de revelação da ideia de inconsciente coletivo. Todo sinthoma, no sentido estabelecido por Lacan, em linhas gerais, vem fazer suplência ao buraco deixado pela foraclusão do Nome -do -Pai, isto é, da função do pai simbólico que impede a criança de permanecer como o falo da mãe. Mas a foraclusão (ou preclusão, Verwerfung) dessa interdição, ou seja, a recusa do Nome do pai, não teria, no caso (de) Jung, levado ao delírio, e sim à suplência. A obra criadora, uma espécie de autonomeação que inscreve o sujeito na ordem simbólica, o teria protegido do desencadeamento de uma crise psíquica de consequências imprevisíveis.

Volta às origens

O que Jung pretende com esse retorno às origens – processo, aliás, típico das narrativas míticas tradicionais [14] – que foi seu exercício autobiográfico? A afi rmativa fi nal do capítulo nos dá pistas importantes sobre o signifi cado estratégico de todo este excerto do livro: “Na minha infância as coisas ocorreram tal como pude observar mais tarde entre os indígenas da África: eles agem primeiro e não sabem absolutamente o que fazem. Somente muito mais tarde refl etem sobre o assunto” [15].

Temos aqui as primeiras indicações de como o mito de sua vida, que Jung explicitamente se dedica a investigar em suas memórias [16], é um mito profético. Por mito, aqui, Jung entende uma forma de expressão e uma representação que dê conta da demanda de sentido que cada ser humano faz a si mesmo, à sua vida e a seu lugar no mundo. A autêntica expressão mítica de si mesmo não seria, porém, algum conto da carochinha conveniente, mas uma imagem da totalidade da própria alma, em seus conteúdos conscientes e inconscientes [17].

Na narrativa autobiográfi ca que começamos a trabalhar, Jung demonstra querer, em suma, mostrar, para o leitor e para si mesmo, como as verdades do inconsciente coletivo, antes de teorizadas, foram vividas por ele, de modo necessariamente confuso, errático, o que é típico dos processos iniciáticos nos quais o herói – neste caso, o profeta – passa por diferentes etapas de amadurecimento para o desempenho adequado de sua missão.

Tudo se passa como se as memórias de Jung sobre a infância traduzissem numa escala pessoal o que o pensamento mítico faz em nível coletivo: contar sobre as origens sagradas de tudo o que existe, e nesse sentido legitimar o que existe segundo sua conformidade com o molde celestial.

É o que acontece, em especial, com o conceito de inconsciente coletivo. Assistimos, no livro, a uma gradual tomada de consciência de um homem – o próprio Jung – sobre a existência deste substrato psíquico transpessoal a partir de uma experiência pessoal e imediata, nos seus sonhos e fantasias, que afi nal foram a “larva ardente e líquida a partir da qual se cristalizou a rocha que eu devia talhar”, ou seja, sua obra teórica e sua prática terapêutica [18].

De nosso prisma investigativo, é muito importante ver de que modo Jung formula teoricamente o que, nas Memórias, se traduz nos termos de uma narrativa, a do “mito de minha vida” [19]: a ideia de que a matriz de toda vivência religiosa está na vocação (do latim vocare, chamar) dirigida ao ego pessoal pelo inconsciente coletivo, que nos fala através de seus arquétipos – em especial o Self, a um só tempo, e paradoxalmente, o ponto central e totalidade da psique, onde se dá a integração dos conteúdos conscientes e inconscientes. Arquétipos – além do Self, temos também, por exemplo, a persona, a sombra, a anima e animus, o velho sábio – corresponderiam a categorias universais da imaginação. E o arquétipo do Self teria afi nidade intrínseca, senão com o Deus em si, ao menos com o Deus para nós, a imago Dei (imagem de Deus), a representação humana do divino, presente nas diversas religiões, inclusive naquelas, como o budismo, isentas da adoração a um Criador pessoal.

Retomando o fio inicial, as Memórias traçam o acidentado percurso de Jung rumo à consumação de sua missão profética, qual seja, o anúncio do inconsciente coletivo. Paul Stern, aliás, dá a seu importante estudo sobre o psicólogo suíço o nome de C. G. Jung – o Profeta Atormentado, e comenta: “O profeta, a seus olhos [os de Jung], era escolhido pelo destino para proclamar uma nova verdade ou restabelecer uma antiga, já esquecida. Sua revelação profética era a da Realidade da Alma” [20].

Conforme se pode depreender da análise de Stern, o profeta ou, mais amplamente, a figura sociológica do grande homem destinado a remodelar, mais ou menos profundamente, valores e instituições, se associa a uma falta e a um excesso, um a menos e um a mais em relação ao homem mediano. Um a menos em termos de adaptação, de ajustamento e, pois, de estabilidade interior e exterior. E um a mais na medida em que essa precariedade pessoal, causa de turbulências e excentricidades, é na verdade uma faceta da personalidade e do destino especiais do Escolhido. A ferida que afasta o profeta de seu meio habitual é o que o impulsionará no caminho novo que irá trilhar e depois anunciar aos demais homens [21].

Angústia infantil

O retrato que o ancião Jung dá do pequeno Carl é, sem dúvida, o de uma criança fragilizada, desamparada, marcada, inclusive, por um traço que o próprio Jung depreende da série de acidentes físicos pelos quais passou nos seus primeiros anos: “uma tendência inconsciente para o suicídio ou uma forma de resistência funesta à vida no mundo” [22]. O fator externo que mais o teria infl uenciado nesse sentido teria sido o ambiente doméstico tenso, sobrecarregado pelas brigas e pelo distanciamento afetivo (e sexual) entre seus pais, Paul Jung e Emilie Preiswerk, ambos suíços e de família repleta de pastores luteranos (como o próprio Paul veio a se tornar). Paul Jung, segundo Mc Lynn [23] ao estudar idiomas orientais na Universidade de Göttingen, teria se destacado, sobretudo em relação ao árabe. Mas, por volta dos trinta anos, em consequência de sua depressão, nada mais teria alcançado além de um obscuro posto de pastor da Igreja Evangélica Suíça, num recanto do Th urgau. Lacônico e discreto em público, de humor difícil e briguento na vida privada, teria enfrentado também incompatibilidade com a mulher, de personalidade esquisita e avessa a sua natureza sonhadora e erudita. O pai de Emilie, Samuel Preiswerk, era um brilhante pastor e sionista avant la lettre, mas também um adepto de práticas ocultistas. Pedia, por exemplo, que sua segunda esposa fi casse atrás dele nas prédicas, a fi m de afastar os maus espíritos, e mantinha em seu escritório de casa uma cadeira reservada para o fantasma de sua primeira mulher realizar suas visitas e conversações semanais [24]. Emilie teria “herdado uma dupla dose de mediunidade de seus pais [25] “.

O biógrafo de Jung então prossegue: “Os problemas do casal tinham uma raiz erótica. Paul, segundo alguns, carecia de virilidade, e Emilie sentia horror a contatos físicos; possivelmente ambos os fatores estavam em jogo, numa combinação que não podia dar certo” [26]. Temos desde já um indicador importante de precariedade, na experiência do menino Carl, da incidência do Nome -do -Pai – que não é tanto o pai real mas o pai simbólico, o pai dito no discurso da mãe –, algo que sabemos ter importantes consequências em termos de vulnerabilização de um sujeito à psicose.

Teria também concorrido para a infelicidade do casal o fato de Emilie ter dado à luz três fi lhos que não sobreviveram ao parto, antes de que Carl nascesse, em 26 de julho de 1875, na paróquia de Kesswil [27]. Ele ganharia uma irmã nove anos depois, diferença etária que tenderia a reforçar a solidão doméstica do menino.

Jung é bem explícito a respeito da infl uência negativa que recebeu desse ambiente e de como a religião, evidentemente hegemônica na atmosfera do presbitério onde cresceu, foi um fator de alívio mas também de mais angústia. Uma das suas lembranças mais remotas é a imagem de si, ainda bebê, “inquieto, febril, sem sono” [28], carregado nos braços do pai, que cantarola para ele melodias apaziguadoras. Jung relata que a que mais o marcou foi a canção do Soberano, cujo começo era: “Que tudo se cale, e cada qual se incline…” [29].

Esses dizeres da música ajudam, aliás, a caracterizar a religião que Jung herdou do pai. Ou melhor, o tipo de vivência e de função dadas à religião: que tudo se cale, sobretudo as dúvidas e medos, e que todos nos inclinemos ante a autoridade de dogmas que não precisam ser compreendidos, e sim acreditados. É este, ao menos, o perfi l que Jung nos dá de seu pai, e seria esta a dimensão religiosa do embotamento geral da vida sofrido pelo pobre pastor interiorano.

É exatamente contra esse modelo religioso que a missão profética de Jung se estrutura em seu texto. O inconsciente coletivo que ele revelará faz suplência ao vazio deixado por um discurso – a religião cristã – ao mesmo tempo hegemônico em casa e internamente enfraquecido, isto é, unilateral.

Unilateral é também um termo que se refere a um traço decisivo na fenomenologia da neurose segundo Jung. Reprime o elemento da dúvida e se apega a imagens – o Senhor Jesus, por exemplo – que não dão conta da realidade total do Ser, que não é só benfazeja, amorosa, luminosa, mas também terrível, sinistra. Como não implicar o divino em sua imperfeita e sombria Criação? Este tema, crucial em livros de Jung, como em Resposta a Jó [30] – no qual apontará o sofredor Jó como moralmente superior a Deus –, percorre intensamente seu depoimento autobiográfi co.

É esta uma singularidade de Jung e de sua psicologia em relação ao grande problema filosófico da morte de Deus, trazido à tona por Nietzsche. Para Jung, desde muito cedo, a existência de Deus foi uma evidência imediata; o que morre para ele, ou o que ele irá foracluir, é uma dada representação de Deus – a representação de seu pai. E, junto com ela, a representação coletiva, cristã -dogmática, de Deus como o “Sumo Bem”, o Pai amoroso totipotente. Uma sombra de suspeição caiu sobre um deus que chamava para si as pessoas que eram enterradas: o chamado divino, em vez de vocação para a vida, signifi cava morte e devoramento pela Terra, após cerimoniais tristes com homens “soturnos e negros, de fraque e cartola, cujos sapatos eram pretos e lustrosos e que se ocupavam com caixões negros” [31]. Também a fi gura do jesuíta se sobrecarregou de uma aura sinistra para o pequeno Carl, nisso infl uenciado pela verdadeira “fobia familiar” [32] que testemunhava em sua casa com relação aos sacerdotes católicos; daí o “primeiro trauma consciente” de que Jung se recorda [33]: uma “estranha fi gura com um chapéu de abas largas e uma longa veste negra”, parecia “um homem usando roupa feminina” (a androginia, mostrará o teórico Jung mais tarde, é componente importante dos deuses arcaicos), descendo uma colina e vindo ao encontro do pequeno Carl. “Vendo- -o, senti um medo que aumentou rapidamente até tornar -se pavor mortal. Confi gurara -se em minha mente a ideia apavorante: É um jesuíta! Pouco tempo antes, com efeito, eu ouvira uma conversa de meu pai com um de seus colegas sobre as maquinações dos jesuítas” [34].

À palavra pai, graças a esses fatores religiosos e à tibieza pessoal que seu progenitor paterno manifestava em casa, no trabalho, na vida, Jung diz ter aprendido a associar o signifi cado de “integridade de caráter e… fraqueza” [35]. Já assinalamos, acima, o peso que essa peculiaridade pode ter tido na estruturação psíquica de Jung, em termos de uma possível foraclusão da metáfora paterna.

Outros dois significantes cruciais foram impregnados, para ele, de uma coloração afetiva imposta pelo mal -estar doméstico: “A palavra amor sempre me suscitava a desconfi ança. O sentimento que associei com a palavra feminino foi durante muito tempo a desconfi ança” [36].

Tais ansiedades se relacionam com as diversas longas estadas de sua mãe numa casa de repouso em Basel. Paul disse a seus paroquianos que ela precisava de hospitalização por causa de uma vaga queixa física, dando a entender que esta se ligava a complicações não especifi - cadas durante o nascimento de Carl. Ao ouvir essas explicações, o menino teria se sentido “culpado e responsável pela ausência da mãe. Suas emoções foram acrescidas de uma sensação de abandono quando Paul o levou para morar com a irmã de Emilie, sua tia Gusteli, uma solteirona vinte anos mais velha que a mãe dele e que morava na velha casa dos Preiswerk, em Basel” [37].

Como é típico da angústia, não se tratou somente de uma desordem intelectual ou representacional, mas sim de um sofrimento psíquico que se alastrou pelo corpo: ele menciona, por exemplo, sua crise de eczema generalizado, aos três anos, como tendo possível motivação psicológica: uma separação momentânea de seus pais [38]. Jung também mencionará, no capítulo sobre a adolescência, as crises de convulsão – tidas inicialmente como epilepsia – que passaram a acometê -lo sempre que se lhe ordenassem que fosse à escola ou estudasse os livros didáticos. Os colegas de escola, em vez de arrancá -lo da angústia doméstica, agregavam -lhe outro tipo de angústia, a de se sentir despersonalizado: eles “me alienavam de mim mesmo […] me arrastavam e constrangiam a ser diferente do que eu pensava ser” [39]. O contato com eles também lhe devolvia, especularmente, uma autoimagem em termos sociais, fazia -lhe se conscientizar de sua condição de pobreza em comparação aos outros. Além dos colegas, também os professores tinham com ele uma relação tensa, inclusive porque Carl atraía, de quando em quando, a suspeita de ter plagiado trabalhos escolares, cujo nível intelectual parecia estar muito acima do potencial demonstrado no dia a dia por aquele frágil garoto.

Outro sintoma corporal da sua angústia infantil: os acessos de pseudocrupe (a crupe é uma obstrução aguda da laringe, devido a causas diversas, desde alergia até tumor), acompanhados da sensação de sufocamento. “Durante essas crises fi cava de costas na cama, inclinado para trás e meu pai me sustinha. Um círculo azul- -brilhante, do tamanho da lua cheia e onde se moviam formas douradas que eu tomava por anjos, pairava sobre mim. Esta visão aliviava a angústia da sufocação cada vez que esta ocorria. Mas a angústia reaparecia nos sonhos” [40].

A revelação do inconsciente coletivo

Adentramos, nesta última citação, outro território crucial do discurso autobiográfi co de Jung: o seu mundo interior. E o que separa o interno e o externo, ou o invisível e o visível, é também o que demarca o eterno e o efêmero, como vemos nas palavras de Jung no Prólogo das Memórias: “A vida sempre se me afi gurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma; a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura um só verão, depois fenece […]. O que vemos é a fl oração – ela desaparece. Mas o rizoma persiste” [41].

O rizoma, em termos psíquicos, corresponderia ao território do inconsciente coletivo, mãe e matriz uniforme e inata de que cada ego – e seu respectivo inconsciente pessoal, equivalente ao Id freudiano – seria uma fl oração pontual e passageira, na superfície da realidade espaço- -temporal. E esta autobiografi a, afi rma o autor, será dedicada justamente ao rizoma; no máximo, aos acontecimentos externos pelos quais o mundo eterno se manifestou [42]. Mas, tão ou mais importantes que os fatos que se desenrolaram no raso da vida de sua personalidade número um, modo como Jung classifi ca sua identidade aparente, o eu – foram as irrupções da personalidade número dois (o Self, centro profundo da personalidade). Jung, aliás, se esforça em dizer que essa percepção dividida de si mesmo “não tem nada em comum com a ‘dissociação’, no sentido médico habitual” [43]. Mas é possível dizer que se tratava de uma vivência que tamponava algo da angústia e do desamparo que o frágil Carl sentia ante o mundo hostil que o circundava. Pois o número dois se lhe parecia um velho sábio, magnânimo, que remontaria nas eras, para além do pobre fi lho de pastor engolfado pelo desamor doméstico, pela inconsciência espiritual de pastores e devotos e pela frieza escolar.

É sob um regime severo de segredo que Jung se comunicava com este número dois. Este vinha a seu encontro sobretudo mediante sonhos e fantasias – que é como, mais tarde, Jung conceberia a via régia de sua terapêutica, confi ante de que, nos símbolos e imagens produzidos pela mente não racional, está a chave para o acesso às energias coletivas de que poderia depender a restauração da saúde anímica do sujeito.

Se uma religião tem como componentes básicos o mito – narrativas sagradas que dão sentido ao universo – e o rito, que presentifi ca e põe em ato seus valores e representações, não exageramos ao dizer que, na ótica retrospectiva do octogenário Jung, o menino Carl vivenciou praticamente uma religião particular. Sobre os mitos, falaremos em breve; e os ritos? Estavam no lugar do que supostamente deveriam ser as brincadeiras infantis de Carl. Estas tomavam, porém, outra magnitude para ele; vide o bonequinho de madeira que ele talhou, guardou num pequeno estojo e escondeu no sótão de casa, para momentos (reservados) de contemplação. Nos bolsos de sua própria calça, Carl guardou e manteve consigo um seixo que colheu junto ao Reno e pintou de várias cores com uma aquarela; era a pedra do homenzinho, da qual caberia a Carl cuidar, e que deveria levar ao encontro daquele, nos momentos de contemplar.

Jung assim obtinha uma confi guração plástica para o sentimento misterioso de força interior que o socorria nas horas de maior afl ição da personalidade número um. “Sentia -me [com aqueles objetos] seguro e a sensação penosa de divisão interior desapareceu” [44]. Somente anos depois, durante os preparativos de seu livro Símbolos da Transformação – que marcou a sua ruptura com Freud e a consolidação de sua poética do mito psicoterapêutica [45] – ele veio a se aperceber de analogias de seu rito privado com costumes arcaicos [46]. Foi nesse momento, com o retorno da lembrança infantil expressa na forma de práticas sociais primitivas, que Jung foi, “pela primeira vez, levado à ideia de que existem elementos arcaicos na alma, que não penetraram na alma individual a partir de uma tradição qualquer” [47]. Curiosamente, aliás, o campo de aplicação preferencial dessas descobertas de Jung era o dos psicóticos. A escola de Zurique, com Bleuler e Jung à frente, já se destacava, desde o início do século xx, pelos importantes avanços no estudo da esquizofrenia (vide os estudos de associação de palavras introduzidos por Jung no estudo dos complexos, termo de sua autoria), o que veio a entusiasmar Freud quanto à possibilidade de levar para este campo os princípios e possibilidades que a psicanálise elaborara no tratamento de histéricos. Segundo Jung, os psicóticos estariam expostos mais diretamente do que os neuróticos à irrupção dos conteúdos arcaicos da psique.

Quanto à sua mitologia pessoal, era constituída pelo que veio depois a chamar de inconsciente coletivo, um Outro que não é o Grande Outro lacaniano da linguagem, mas sim um ente dotado de uma intencionalidade superior, como se fosse o próprio Deus. “O que falava em mim nesse tempo? Quem propunha as questões supremas? Quem reunia o alto e o baixo, estabelecendo a base de tudo o que preencheria a segunda metade da minha vida de tempestades apaixonadas? Quem perturbava a tranquilidade e a inocência com esse pesado pressentimento da vida humana, a mais madura? Quem, senão o hóspede estrangeiro, vindo do alto e do baixo?” [48].

O pai, pálido representante do cristianismo ofi cial cujo Deus, ele sim, estava morto, nada tinha em comum com essa divindade misteriosa, ctônica, terrível, capaz, por exemplo, de – no primeiro sonho de que Jung se recorda, por volta dos três anos de idade – tomar a forma de um grande pênis, cuja parte superior era envolta por halo luminoso, e postada sobre um trono de uma câmara subterrânea [49]. Noutra ocasião, para grande pesar e resistências de um rapaz cujo mundo cultural era, quisesse ou não, sobrecarregado da moral cristã, Carl teve uma fantasia de que Deus, do alto do céu, defecava em cima da nova catedral da Basileia, aniquilando -a [50].

Jung estava convicto de que não era ele o responsável por tais imagens, mas uma vontade superior, que queria que ele blasfemasse, isto é, que ele rompesse com os limites éticos do cristianismo ofi cial. Mas não se tratava de uma experiência de dessacralização, ao contrário: o cerne do “evangelho de interiorismo” de C. G. Jung [51] está no anúncio de que o sagrado nos fala através de nossa própria alma inconsciente, que é bela e horrenda, boa e má, devota e blasfema, assim não se ajustando a qualquer manual de boas maneiras dogmáticas.

Diferentemente do que se dava em relação a seu pai cristão, em sua mãe Jung pressentia uma estranha familiaridade com o inconsciente pagão em que estava sendo iniciado. Carl, de fato, também percebia na mãe esta duplicidade de personalidades número um e número dois. Por um lado, a pacata, contida, estreita esposa do pastor, de outro, uma mulher misteriosa, dotada de uma energia e de uma sabedoria selvagens, que fi cavam mais claras durante a noite, por exemplo, nas visões do menino Jung: “Meus pais dormiam separados. Eu dormia no quarto de meu pai. Da porta que conduzia ao quarto de minha mãe vinham infl uências inquietantes” [52]. Uma terrível aura de mistério tomava sua mãe. “Uma noite vi sair de sua porta uma fi gura algo luminosa, vaga, cuja cabeça se separou do pescoço e planou no ar, como uma pequena lua. Logo apareceu outra cabeça que também se elevou. Esse fenômeno repetiu -se umas seis ou sete vezes” [53].

Eis -nos aqui, aliás, diante de um dos indícios mais fortes da adequação do juízo de Winnicott sobre a esquizofrenia infantil de Jung. É tempo de voltarmos a essa questão, dando especial ênfase aos nexos entre mito individual e sinthoma no caso do psicólogo suíço.

Mito individual

Apresentamos acima a forma pela qual Jung narra o mito de sua vida, ou de parte desta, a infância. E o que sobressai é o retrato de um chamamento profético que dá sentido – seja como signifi cado, seja como direcionamento– a uma existência que de outro modo naufragaria na angústia e no isolamento.

Como dissemos, esta nos parece uma senda valiosa para entender o que Lacan quer dizer ao chamar o inconsciente coletivo de sinthoma. James Joyce faz seu alter ego Stephen Dedalus dizer, a certa altura do Ulisses: “A história é um pesadelo do qual estou tentando despertar” [54]. Em certo sentido, sua escrita, ao implodir com os cânones do sentido e da comunicabilidade intersubjetiva, é esse expediente de despertar do pesadelo da história, pelo ingresso na suspensão espaço -temporal do sonho. Ora, o conceito de inconsciente coletivo opera efeito análogo, de abolição imaginária da história, de reintegração da multiplicidade empírica num Uno transcendente, numa identidade arquetípica universal, ao fazer do ego presente uma efêmera floração do rizoma ancestral, o inconsciente inato, sua personalidade número dois, cuja sabedoria e poder excediam e compensavam a frágil inserção da personalidade número um no mundo. E nesse sentido Jung encontrará o eixo ordenador para uma experiência pessoal marcada por angústias acentuadas, mas que não chegaram a tragá -lo justamente por terem sido postas a serviço de si e de sua obra.

Além de mítica nos termos do próprio Jung, a construção da autoimagem do autor, em seu relato autobiográfi co, é um mito também no sentido que Jacques Lacan concebeu para a noção de mito individual. Como? Cabe -nos recordar brevemente o contexto em que Lacan apresenta tal noção como sendo pertinente à teoria e à clínica.

Lacan nos dá uma indicação preciosa a esse respeito, em 1966, quando afi rma, sobre o ensaio O Mito Individual do Neurótico, que viria a ser publicado em livro apenas em 1978, por Jacques -Alain Miller: “Ali produzimos [no Collège philosophique de Jean Wahl] um mito individual do neurótico, início de uma referência estruturalista como forma (o primeiro texto de Claude Lévi -Strauss sobre o mito)” [55].

Nos limites de nosso trabalho, precisaremos nos deter nestas origens lévi -straussianas do conceito de mito individual [56], sem detalhar as aplicações específi cas que Lacan faz, no ensaio em questão, ao retomar o caso clássico de neurose obsessiva do Homem dos Ratos, discutido por Freud em texto de 1909 [57].

O antropólogo francês analisa um caso de cura xamanística entre os índios Cuna, do Panamá. Trata -se de longo encantamento, cuja versão indígena ocupa dezoito páginas, divididas em quinhentos e trinta e cinco versículos, e utilizado como meio de auxiliar a um parto difícil. Lévi -Strauss, primeiramente, resume o enredo do cântico, isto é, a viagem que o xamã, auxiliado pelos seus espíritos protetores, faz ao mundo sobrenatural, para ali combater o espírito maligno que estava atravancando o parto da gestante. E o que lhe chama a atenção é como este mundo abstrato, em vez de se colocar numa esfera remota e abstrata, tem como teatro de ações o corpo e os órgãos internos da doente. Temas míticos e fi siológicos se entrelaçam a ponto de serem quase indistinguíveis, o que, segundo Lévi -Strauss, tem um efeito psicológico sobre a paciente – fornece -lhe uma linguagem e uma signifi cação socialmente compartilhadas para o que antes era um caos informe de sensações inefáveis e dolorosas. A fi nalidade principal do canto parece ser descrever essas dores, nomeá -las, apresentá -las “sob uma forma que pudesse ser apreendida pelo pensamento consciente e inconsciente” [58].

Eis -nos diante da efi cácia simbólica daquela técnica terapêutica: não obstante seu caráter fantasioso, a narrativa permite “tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar” [59]. E é por esse caminho que o antropólogo, na parte fi nal do artigo, sugere interessantes paralelos estruturais entre a cura xamanística e o moderno processo analítico, passando por aspectos tais como a conscientização (verbalização) de confl itos, a abreação e a transferência [60]. Nos dois casos, lançar -se -ia mão do mito (mythos aqui no sentido mais geral de uma narrativa fantástica, por oposição ao logos e à premissa da adequação objetiva do discurso à realidade empírica).

A grande diferença estará na natureza coletiva do mito xamânico, e individual, no caso do analisante. “O doente atingido de neurose liquida um mito individual, opondo -se a um psicanalista real; a parturiente indígena supera uma desordem orgânica verdadeira, identifi cando -se com um xamã miticamente transposto” [61].

Enquanto o xamã, por uma espécie de sugestão, aplica à paciente uma história que remonta diretamente ao acervo do passado coletivo, ao Grande Outro lacaniano, aos primórdios arquetípicos, o neurótico volta às suas próprias origens pessoais, reinventando seu passado pela palavra – a sua própria, não a do terapeuta, embora numa situação transferencial, que inclui pois o Outro – com vistas a rememorar e assim extirpar os fatores causadores do sofrimento atual. Nos dois casos, a linguagem revela -se dotada de efi cácia simbólica não pela capacidade de espelhar uma realidade em si, mas por intervir nas representações mentais e no próprio corpo, dirigindo -os ao restabelecimento da saúde.

De especial relevância para Lacan é a passagem na qual Lévi -Strauss observa que as constelações psíquicas que o neurótico carrega, e que o fazem sofrer, são de natureza mítica [62]. Isso quer dizer que o acontecimento empírico, a despeito de sua particularidade concreta, é assimilado pelo sujeito – neurótico ou psicótico [63] – segundo estruturas mentais a priori, comuns a todos os homens e culturas, uma série de leis a que se pode dar o nome de função simbólica. Estamos aqui no âmbito da defi nição lévi -straussiana – de tanta importância para o primeiro ensino de Lacan – do inconsciente. Não como um mero depósito de lembranças recalcadas de natureza pessoal, mas tampouco um acervo de signifi cados potencialmente universais à la Jung. O inconsciente, vazio de imagens, limita -se à função de impor determinadas leis a “elementos inarticulados que provêm de outra parte; pulsões, emoções, representações, recordações” [64]. É a gramática subjacente aos diferentes léxicos individuais que cada qual produz em sua vida concreta. É o que permite, em suma, a existência do discurso.

O mito, segundo Lévi -Strauss, é sempre uma procura do tempo perdido, é uma abolição da experiência meramente cotidiana e um retorno às origens, como aludimos acima. “Esta forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem” [65].

O que Lévi -Strauss sugere é, pois, que a psicanálise é um avatar no século xx da efi cácia simbólica já conhecida e posta em prática terapeuticamente pelas civilizações desde os tempos remotos do xamanismo. Um avatar que presume, como condição de possibilidade, a emergência do sujeito moderno, e não a extinção, mas a individualização da experiência mítica.

Para Lacan, que fará uso desses pressupostos, há, com efeito, no cerne da experiência analítica, algo que é, propriamente falando, um mito “na medida em que a psicanálise não se reduz ao discurso da ciência, nem, pois, à defi nição clássica de verdade como adequação entre intelecto e coisa.” [66]. Em uma de suas formulações, o mito “é o que confere uma fórmula discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmitida na defi - nição da verdade […]” [67].

Mais adiante, o psicanalista francês afi rma que se poderia defi nir o mito como uma “certa representação objetivada de um epos ou de uma gesta, exprimindo de forma imaginária as relações fundamentais de um certo modo de ser humano numa determinada época”; e assim entendido ele poderia ter sua função encontrada “no próprio vivido de um neurótico” [68].

Mutatis mutandis, esta dimensão de mito individual, essencial à experiência analítica, ganha expressão também no caso aqui em questão, a historicização imaginária que Carl Jung faz de si mesmo em suas Memórias. Trata -se, a nosso ver, de uma narrativa que individualiza determinado protótipo mítico, o do profeta, pela narração das vicissitudes de um eleito divino, cuja missão era revelar ao mundo o inconsciente coletivo como o Outro que vem se pôr no lugar do Deus convencional que Jung herdara de seu meio social e, em particular, de seu pai. E o Deus de seu pai era em certo sentido o Pai fraco, o Pai morto, do qual a civilização pós -cristã se vê obrigada, apontou Nietzsche, a fazer o luto, nem que, num primeiro momento, mediante um niilismo depressivo.

No caso de Jung, o curioso é ver uma espécie de solução de compromisso entre o que, em Lévi -Strauss e Lacan, aparece de modo disjuntivo: não se trata de um mito individual por contraste com o mito coletivo. O mito de Jung é individual e coletivo: individual por afrontar a mitologia instituída e vigente na época – o imaginário cristão eclesial –, e coletivo por resgatar certa ideia de ancestralidade fi logenética, e por se valer dos protótipos da missão profética tradicional. E, como para o paciente do xamã e do analista, é um mito que permite a travessia de um impasse, transfi guração de uma situação existencial de estagnação, de ausência dos ventos indispensáveis à viagem, como no caso das tropas gregas detidas pela deusa Ártemis no porto de Áulis, antes da partida para Troia.

Assim como para Lacan o parricídio descrito em Totem e Tabu é um mito de Freud, podemos desse modo dizer que o inconsciente coletivo é um mito de Jung e um mito para Jung, o que, entre outras consequências, certamente nos deveria pôr de sobreaviso em relação a cristalizações e receitas, que correm o risco de apelar para a imposição de signifi cantes próprios do analista – projeções contratransferenciais, pressupostos vindos de citações de teorias ou dicionários de símbolos – sobre a existência irredutivelmente particular, a história de vida peculiar do sujeito que vem à análise, no que tem de sentido e não sentido. O inconsciente coletivo nasceu como uma metáfora pessoal, de estatuto análogo ao da literatura de Joyce; é, em vez de uma chave universal de decifração dos mitos como psicologia, uma conversão da psicologia em mito, um ciclo mítico a mais no acervo da imaginação literária universal. Erro lamentável na aplicação prática desse dispositivo mítico é a frequente tentação de literalizar o literário, dogmatizando e desperdiçando o seu inegável frescor intuitivo em nome de uma ingênua escolástica dos símbolos, os quais, assim como o paciente individual, se veem também emudecidos, deixam de falar de si mesmos, a partir de seu contexto próprio, em nome de vagas homogeneidades construídas por um olhar de sobrevoo e sugestionado pela ilusão da seletividade.

Sem cuidado e sutileza no manejo das fábulas e personagens conceituais deste moderno narrador (no sentido forte que a palavra toma em Walter Benjamin, ou seja, o contador de histórias que cria laços coletivos mediante experiências, conselho e sabedoria que transmite com suas narrativas), esvai -se assim a efi cácia simbólica do mito terapêutico legado por Jung, tesouro de imagens e símbolos recolhidos de diversas tradições culturais e capazes de funcionar, aqui e agora, como argila de modelar para almas em sofrimento pela ausência de signifi cado, de transcendência, de pertença a um Todo maior, almas para as quais os antigos altares sacros do Sentido já não passam de museu ou cemitério. O caminho aberto por Jung é resgatado assim em sua dimensão de aventura, risco, emoção de lidar, como um paciente de Nise da Silveira chamou certa vez o trabalho artístico em terapia, termo cujo sentido primário, lembremos, é cuidado do Ser. Nise, aliás, cujo trabalho com pacientes esquizofrênicos, trocando o eletrochoque pelo ateliê e pelo afeto, é um dos mais brilhantes exemplos da potência da poética junguiana como mitologismo capaz de fi ccionalizar (fiar, tecer) e tornar mais expressiva a existência.

O mito, quando vivo, não é uma mera mentira, mas, como nos ensinou o sábio de Kusnacht, um símbolo, a melhor expressão possível de algo incompreensível; é expressão de algum aspecto essencial da vida, bela e absurda, generosa e cruel. É uma forma de tornar possível a existência humana, protegê -la do não -sentido ou da proliferação delirante de sentidos. Lacanianamente, diríamos que é, e na vida de Jung o foi também, uma defesa contra o Real – que é sempre o Real do corpo – que o assediava de forma avassaladora desde a infância, na forma da depressão materna – de tanto impacto psicotizador, segundo Winnicott –, da tensão familiar, da hostilidade do mundo, da precariedade da vida, das insufi ciências, lacunas e sombras do discurso religioso.

Contra todas essas turbulências e riscos de naufrágio, Jung teria se agarrado a uma nau não meramente teórico -abstrata, mas existencial: a ideia de um verdadeiro Eu – o Si -mesmo arquetípico, núcleo comum de consciente e inconsciente. Sua personalidade número dois, aquela sabedoria ancestral e indomável que fez do menino Carl um sujeito, um corpo, menos vulnerável. É o que ele teria pretendido, pelo menos. E, nisso, oferece -nos um testemunho, tão valioso quanto o de Joyce acerca da escrita, da invenção teórico -literária de mundos paralelos. Sinthoma que, à falta de um Nome -do- -Pai internalizado, funciona como falo, um tronco na vertical, impedindo, segundo a imagem (mítica, também ela) de Lacan, o fechar da boca do crocodilo devorador que é o gozo das Mães.

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