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Resumo
Este artigo insere-se no âmbito da Psicologia da Arte e propõe uma leitura do filme Abril despedaçado, de Walter Salles, atentando sobretudo para a questão dos destinos do sertanejo e das relações com a lei. Observou-se que, em Abril despedaçado, a violência é alvo da crítica, e o filme parece se alinhar à crítica ideológica de Horkheimer e Adorno.


Palavras-chave
psicologia (arte); cinema; psicanálise.


Autor(es)
Renato Tardivo
é psicanalista e escritor. Mestre e doutor em Psicologia Social pela usp. Pós-doutorando em Psicologia da Saúde (Metodista/capes). Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo– literatura e cinema em Lavoura arcaica.


Referências bibliográficas

Bosi A. (2010). Ideologia e contraideologia. São Paulo: Companhia das Letras.

Butcher P.; A.L. Müller (2002). Abril despedaçado - história de um filme. São Paulo: Companhia das Letras.

Costa J.F. O último dom da vida (Abril despedaçado), Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno MAIS!, 28 abr. 2002. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2015.

Freud S. (1930/2010). O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras. (Sigmund Freud: obras completas, v. 18).

Horkheimer M.; T.W. Adorno T.W. (1973). Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix.

Kadaré I. (2001). Abril despedaçado. São Paulo: Companhia das Letras.

Matos O. (2009). A escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna.

Tardivo R. (2011). Literatura e Psicanálise: a poética de Raduan Nassar, Percurso n. 47, São Paulo.





Abstract
This article works with Psychologial of Art references and proposes a reading of Behind the Sun, by Walter Salles, attending especially to the issue on the backcountry destinations and their relation with the law. It was observed that in Behind the Sun the violence is critiqued and the film seems to side with ideological critique by Horkheimer and Adorno.


Keywords
psychology (art); cinema; psychoanalysis.

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 TEXTO

Esquecer é criar: cinema e psicanálise em Abril despedaçado

To forget is to create: cinema and Psychoanalysis in Behind the Sun
Renato Tardivo

Menos um, menos um, menos um

 

Este artigo insere-se no âmbito das pesquisas realizadas no Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte (LAPA-USP), cuja postura interdisciplinar vale-se, dentre outros, de referenciais da fenomenologia, estética e psicanálise. Dessa perspectiva, não se utiliza a psicanálise apenas como instrumento de leitura, mas ela é também considerada em seu parentesco com as artes[1]. Assumindo essa postura, busco neste artigo me valer da psicanálise como linguagem, de modo a estabelecer um diálogo entre ela e a linguagem cinematográfica de Abril despedaçado, filme de 2001, dirigido por Walter Salles.

 

Abril despedaçado se passa no sertão do Nordeste brasileiro, embora seja baseado no livro homônimo, de Ismail Kadaré, cuja trama se desenrola na fria Albânia[2]. Introduzindo a cena inicial, há a legenda - "Sertão Brasileiro, 1910" - e, depois, um plano-sequência frontal de um menino que, na sombra, caminha pelo sertão durante o amanhecer. Ele diz que se chama Pacu, mas que, sendo o nome novo, "ainda não pegou costume". Caminha tentando se lembrar de uma história - "às vezes eu me alembro... às vezes eu esqueço". Nesse momento, há um corte para o plano-sequência do menino ainda caminhando, mas de costas; isto é, a câmera assume a perspectiva daquilo que ficou para trás. A transição é sugestiva, uma vez que se dá no instante em que o menino se refere a uma outra história, da qual, esta sim, se lembra bem: "não consigo arrancar da cabeça... é a minha história, a de meu irmão e de uma camisa no vento". A caminhada é interrompida para dar lugar ao plano de uma camisa no vento manchada de sangue. A trilha é sombria. Uma família observa a camisa. O patriarca traduz o que os olhares dos demais (a mulher e os dois filhos: um jovem adulto e o menino da sequência anterior) testemunham: "o sangue já está amarelando".

 

O filme conta, a partir do menino Pacu, a história de uma infindável disputa por terras entre duas famílias; guerra pautada por uma lei que tende a dizimá-las. Essa lei, no romance de Ismail Kadaré, é estabelecida pelo Kanun, um complexo código em forma de livro cujo conteúdo é mais poderoso do que as leis oficiais. Sua lei máxima é uma lei ancestral: "Sangue se paga com sangue". Walter Salles aproveitou a descrição de um ritual do Kanun que está nas páginas iniciais do romance para começar sua versão da história com a imagem de uma camisa pendurada num varal, flutuando ao vento, manchada de sangue[3].

 

O menino da sequência inicial, na obra de Walter Salles, é o caçula da família Breves, sobre a qual incide o foco narrativo. A camisa cujo sangue está amarelando é a do irmão mais velho, recém-assassinado pela família rival. Quando o sangue amarelar, caberá a Tonho, o outro irmão, "cobrar o sangue do morto". O romance de Kadaré começa com a narração desse assassinato:

 

De tocaia, à beira de uma estrada, perto da província de Mirëditë, Norte da Albânia, Gjorg Berisha espera sua vítima, Zef Kryeqyq. Gjorg está ali para vingar a morte do irmão. Tem consciência de que, ao disparar aquele tiro de fuzil, estará assinando a própria sentença de morte. Mas segue em frente. [...] Em Abril despedaçado, Kadaré alterna esse olhar interno do Kanun com a visão distanciada de um escritor, Bessian, de passagem pelo Norte da Albânia para pesquisar o código da vendeta[4].

 

No filme, Gorj transforma-se em Tonho, personagem de Rodrigo Santoro. A versão de Salles não poderia ser literal, uma vez que se passaria no Nordeste do Brasil, região com características bem distintas das do Norte da Albânia[5]. Nesse sentido, chama a atenção na fotografia de Abril despedaçado, assinada por Walter Carvalho, o contraste entre a luminosidade de fora, seja pelo sol escaldante do sertão seja pelo calor que emana dos caldeirões de rapadura que os Breves produzem, e a pouca luminosidade no interior da casa, no interior da família: a morte que não dá trégua. Os retratos dos mortos perfilam-se em um corredor da casa, como que a assombrá-los.

 

Tonho, cuja postura denota desde o início uma sensibilidade antagônica à brutalidade da guerra familiar, cumpre com seu papel e cobra o sangue do irmão. O travelling lateral em campo e contracampo que o mostra perseguindo o sertanejo da família rival é emblema da potência com que a batalha ancestral contamina a terra que divide as duas famílias. Agora é ele, Tonho, quem está com os dias contados. Como apregoa o patriarca rival: "cada vez que o relógio marcar mais um, mais um, mais um... ele vai estar te dizendo ‘menos um, menos um, menos um'".

 

Cenograficamente, o símbolo maior dessa temporalidade é a bolandeira que os Breves utilizam para fabricar a rapadura: "Quando viu a bolandeira, o cineasta percebeu que o engenho poderia funcionar como eixo do filme e poderia ter uma força narrativa semelhante à da desnatadeira de Eisenstein [no filme Linha geral (1929)]"[6]:

 

Visto de cima, o engenho lembra um relógio. Seu movimento circular e constante, de ritmo ditado pelos bois, representa o próprio ciclo a que os Breves estão atrelados. "A gente é que nem os boi (sic): roda, roda, e não sai do lugar", diz o único a enxergar com lucidez a situação da família (o menino). Dessa forma, os próprios bois "operavam" a câmera ao puxar a tração. "Sempre que a câmera é solidária à bolandeira, ela é o tempo", explica Walter Carvalho[7].

 

A vida se submete à morte: os vivos se submetem aos mortos

Essa força narrativa - pontuada pela bolandeira - que avança ao passado tem lugar na região conhecida como "Riacho das Almas". Mas, conforme dirá muito sabiamente o menino, o riacho secou e ficaram apenas as almas. Aliás, essa fala ocorre em um momento significativo: a aparição de andarilhos circenses - Salustiano e sua afilhada, Clara -, cuja importância para a trama veremos mais à frente. Os brincantes simpatizam com a espontaneidade do menino, e a moça o presenteia com um livro. Embora não seja alfabetizado, o menino sabe "ler as figuras". Por sinal, tanto as camisas manchadas de sangue como os retratos dos mortos na parede de sua casa são figuras com as quais ele está familiarizado: linguagem petrificada que subjuga a vida. E, nessa legalidade, a vida se submete à morte, pois os vivos se submetem aos mortos.

 

Em "O mal-estar na cultura", Sigmund Freud[8], desenvolvendo as noções acerca da pulsão de morte, propõe que, para que haja civilização (cultura, coletividade), os indivíduos precisam abdicar em algum grau da satisfação pulsional, submetendo-as às normas culturais - à lei. A descarga irrestrita de carga pulsional traria desordem, caos e destruição, uma vez que também seria expressão de Tânatos - pulsão de morte. Para Freud, ter de se haver com essa carga (não descarregada; submetida à ação do recalque, portanto) implica inevitavelmente algum grau de mal-estar. Daí os indivíduos, se não podem ser plenamente felizes, se valerem de recursos culturalmente permitidos para lidar com essa insatisfação: sublimação, religião etc.:

 

Já sabemos que aqui se coloca o problema de como afastar o maior obstáculo à cultura, o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua, e por isso mesmo nos interessamos especialmente por aquele que é provavelmente o mais jovem dos mandamentos do Super-eu cultural, o que diz: "Ama teu próximo como a ti mesmo[9].

 

Ocorre que, em Abril despedaçado, é a obediência estrita à lei que traz morte e destruição. A linguagem de um passado petrificado - que paira no ar, na pouca luz, no sangue da camisa - é emblema da pulsão de morte. Retomando a leitura de Freud, podemos sugerir que, no filme, o mal-estar é levado às últimas consequências e a destrutividade é culturalmente permitida, não porque a lei é violada mas justamente pelo oposto. Há uma ordem pervertida das coisas: "Odeia teu próximo como a ti mesmo". A repetição é tamanha que ninguém sai do lugar.

 

Nesse sentido, a respeito de Abril despedaçado, escreve o psicanalista Jurandir Freire Costa:

 

A crueldade, no mais das vezes, não é uma assombração disforme, como nos sustos das sessões da tarde ou nas enormidades metafísicas à Lovecraft. É um veneno capilar que invade as rotinas do que chamamos hábito. Vivemos nos hábitos e, por fazermos da vida um hábito, nos tornamos fantoches da compulsão à repetição. A vida presa ao hábito é, por certo, eficiente. Mas de uma eficácia das moendas, por onde só entra cana e sai bagaço. Criada para lidar com o mesmo, a roda do hábito, diante do diverso, emperra, se despedaça e fere de morte os que a põem em marcha[10].

 

Os bois na bolandeira - que chegam a andar sozinhos -, o balanço em que os irmãos brincam, ou mesmo a lógica da vingança que se perpetua, enfim, muitos são os elementos indicativos de repetição. O hábito é corrosivo.

 

Em direção oposta, o novo tem lugar na figura dos circenses. Clara, a moça, apresenta ao menino novas figuras. O contato com esse universo o coloca em embate com a lógica da repetição e do passado que se acumula. A partir das figuras do fundo do mar e da sereia, que se confunde com a própria Clara, o menino descobre/cria uma história, da qual às vezes se alembra, às vezes se esquece. Mas, para uma história ser esquecida, ela precisa existir.

 

Tonho toma contato com os andarilhos do circo quando, vendendo com o pai a rapadura à mercearia da cidade[11], também se encanta com a "sereia". À noite, quebrando o hábito de opressão e aridez, Tonho sai às escondidas com o irmão para assistir ao espetáculo dos brincantes. Clara cospe fogo; como seu nome diz, traz a luz. Os meninos se encantam e, no fim, vão conversar com os artistas. A troca de olhares entre Tonho e Clara denota uma captura recíproca. É nesse momento que Salustiano batiza o menino com o nome de Pacu. De volta a casa, o pai, um fantasma vivo, os espreita. Tonho não se submete a ele e, em paga, é surrado com o chicote.

 

Às avessas, Eros

Tonho parte, em busca da vida, para uma espécie de exílio. Junta-se aos brincantes e os acompanha até outra cidade. Se o menino cria a sua história a partir das figuras do livro, Tonho, sem tempo a perder, vive o próprio livro. Há, nesse período, uma cena significativa. Ele e Clara brincam numa corda, situação análoga à do balanço de sua casa, mas, diferentemente da circularidade do balanço - e da bolandeira -, agora o tempo passa, tanto que ele começa a girar a moça com dia claro e só para ao anoitecer.

 

A respeito dessa cena, "as habilidades circenses de Flavia Marco Antonio (atriz que interpreta Clara) contribuíram para a autenticidade de umas das sequências mais importantes do filme: aquela em que Clara se exibe para Tonho na corda indiana - "a verdadeira cena de amor do filme", segundo Walter Salles"[12].

 

Interessante pensar a sequência como a "verdadeira cena de amor do filme", sobretudo ao se considerar que Clara também vive uma espécie de clausura, tendo de trabalhar com - e para - o tio, seu padrinho, com quem forma um par em que um vínculo incestuoso fica sugerido. Portanto, o amor e a liberdade unem esses dois jovens, e se Clara, para Tonho, representa um contraponto à pulsão de morte, isto é, Eros, este, ao trazer a morte marcada no corpo, representa, às avessas, Eros para Clara. Há entre eles uma reciprocidade pautada pelo amor e pela vida.

 

Mas Tonho retorna à família. Quando ele aponta na terra dos Breves, o pai, a mãe e o irmão, que trabalhavam na bolandeira, param por um instante: parecem felizes. O silêncio, nesse caso, é também emblema de pulsão de morte, e sua volta à circularidade da bolandeira é mesmo uma volta para a morte - o que, naquela família, dita a vida.

 

O tempo de Tonho vence. O membro da família rival sai em seu encalço. Nessa mesma noite, Clara chega à casa dos Breves e traz chuva ao sertão. É o menino quem a vê se aproximar e dá a notícia ao irmão, que sai pela janela do quarto. Tonho e Clara fazem amor em um abrigo próximo à casa. Ela arranca a fita preta - o atestado de morte - do seu braço e consuma a libertação. Fazem amor.

 

O jovem da família rival, atrapalhado pela chuva, se aproxima. O menino Pacu, ao sair de casa pouco depois e deparar com a fita de Tonho no chão, é levado a crer que o irmão foi morto. Mas, na verdade, Tonho dorme. Clara, conforme Tonho fizera antes, também parte, mas diz que o espera. Pacu, acreditando que o irmão morreu, assume o seu lugar: amarra a faixa preta no braço. Sai em caminhada.

 

O filme retorna ao começo. O plano-sequência do início se repete. Toda a história foi um flashback: o menino Pacu, que a criou e a viveu, pôde contá-la.

 

Mas Abril, que significa juventude, viço, marca um novo - e doloroso - ciclo. O jovem da família rival, cujos óculos se quebraram, agora cego como o avô, atira (por engano) no menino. Tonho não chega a tempo. Não vemos o cadáver da criança, apenas o sofrimento estampado no rosto do irmão. O pai, em desespero, exige que Tonho cobre o sangue imediatamente. Tonho, triste porém determinado, entra e sai de casa. Mas deixa a arma. O pai ameaça matá-lo, e é contido pela mulher, que aos prantos diz: "Acabou, homem". O casal se abraça.

 

Tonho, que voltara para morrer, não fica para matar.

 

A morte simbólica do pai, aqui, se dá justamente pela recusa ao ciclo das mortes. O casal - par de mortos em vida - fica para trás chorando a morte do menino. Tonho segue. Na trilha que liga o Riacho das Almas aos demais vilarejos e à cidade, há uma bifurcação. Quando os Breves iam à cidade, tomavam o caminho da esquerda. Agora, entretanto, Tonho segue pelo outro lado. Leva lágrima nos olhos; não sangue. Com o sacrifício do menino, a lógica circular se rompe.

 

Há o corte para um plano frontal de Tonho, de baixo para cima. O espectador não sabe o que o personagem contempla, mas o olhar de Tonho denota algo inaugural. Segue-se uma tomada mais aberta, e pode-se ver que há areia ao redor. Tonho prossegue a caminhada. Dessa vez em plano-sequência, a câmera o acompanha até ele se afastar. Está em uma praia. Quando toca a água, há uma tomada em close do seu rosto e o corte para o plano final. O corpo de Tonho, de costas, divide as águas. Ondas imensas quebram diante de si.

 

O sertanejo vai ao mar.

 

Cordeiro sacrificial

Abril despedaçado é um filme contemplativo: "Os personagens habitam um universo onde se ‘fala de boca calada' e se age com sentimentos e gestos mínimos. A câmara ilumina ao máximo essa pouquidade e nos faz ver o ‘mais' que brota do ‘menos'"[13]. Assim, se a violência aprisiona, a reflexão sobre a sua reiteração, o que só se efetiva com a ruptura implicada pelo sacrifício do menino, pode levar à possibilidade de libertação.

 

Os andarilhos circenses trazem um sopro de vida ao sertão. Novamente em companhia de Freud[14], em certa medida os brincantes, por meio das artes, apontam para a possibilidade de sublimar a carga pulsional de modo a amortecer a atmosfera de mal-estar. Mas não se trata de apenas dirimir o mal-estar. O contato dos irmãos com os andarilhos - figuras "de fora", "estrangeiros" - permite também a inscrição de novas realidades, uma nova história, e, nessa medida, os irmãos Breves reivindicam o bem-estar:

 

porque mudamos, estamos sempre escolhendo e fabricando outros futuros. A tradição é apenas a imagem do mundo segundo a força e o talento dos ancestrais. Fixá-la em um esqueleto de regras e princípios é despojar a vida de seu ímpeto criador. O Bem da vida está sempre "on the road"; sempre de passagem, sempre na área transicional entre o "não mais" e o "não ainda"[15].

 

Abril despedaçado aborda questões existenciais e possui atmosfera atemporal (a possibilidade mesma de adaptar uma história que se passa na Albânia para o sertão do Brasil reforça a ideia). O passado petrificado que pesa sobre o sertão é reconstruído pelo menino. Que reescreve a História. Pacu, que antes da chegada dos circenses sequer tem nome, destoa da legalidade marcada pela violência - ele já pertence a outro tempo. Nesse sentido, são a ingenuidade e criatividade infantis que, tomando para si a tragédia, possibilitam a ressignificação da experiência. Ora, "mancha de sangue não sai", e, por isso, deve ser sentida, chorada. Daí a água, como em um batismo, aludir ao renascimento.

 

Segundo Walter Salles, o menino Pacu é o cordeiro sacrificial que lava, com seu sangue, o pecado dos outros. Límpido, sem máscaras, o menino é o único que consegue ver além das cercas que definem o mundo dos Breves. É o único que, de alguma forma, domina a palavra, e a usa para se projetar no território dos sonhos e da imaginação[16].

 

Em Abril despedaçado, não há a crença de que transformações possam ocorrer rapidamente. A comunicação entre o início e o fim apresenta uma noção de futuro enquanto renascimento ainda (e sempre) em aberto, e que só se vislumbra concretamente após o despedaçamento derradeiro - ruptura do futuro do presente, a morte do menino: Pacu veste as roupas do irmão, confunde o assassino e morre em seu lugar - diferentemente do livro, em que a estrutura circular é mantida e a história termina exatamente onde começou, só que tendo Gorj como vítima. Walter não teria sido capaz de levar o filme adiante se não conseguisse romper o círculo da violência[17].

 

Mas, embora o círculo da violência seja rompido, não há um amortecimento do caráter trágico, e a perspectiva crítica não se perde. Nessa direção, o filme talvez se aproxime da crítica ideológica proposta por Horkheimer e Adorno[18], diferenciando-se da noção marxista de ideologia.

 

Ideologia, da perspectiva de Marx, são ideias descoladas da realidade que se prestam a explicá-la a fim de atender a interesses específicos, de modo a alimentar as relações de poder. Como crítica à naturalização desses interesses, no materialismo histórico de Marx e Engels, a realidade é tomada historicamente (práxis) e, nessa medida, tem-se "a possibilidade de que atores sociais diferenciados, capazes de perceber as assimetrias vigentes no próprio sistema, ajam e pensem de modo a rever as próprias condições de vida"[19].

 

Em Horkheimer e Adorno[20], no entanto, as ideologias não perdem sua força se apenas forem reveladas, pois "a ideologia e a realidade correm uma para outra". Ou seja, a ideologia, desse ponto de vista, não é apenas um envoltório mas a imagem mesma do mundo.

 

Nesse caso, Walter Salles parece perguntar, como os frankfurtianos, em formulação de Olgária Matos: "como romper o ciclo fatal de uma história que se naturalizou, perdeu seu papel humano, e de uma natureza que se artificializou e se tornou fantasmal, irreconhecível e estranha ao homem que nela vive?"[21]. Hipótese que é reforçada ao se considerar uma afirmação do próprio Walter Salles: "A realidade atingiu um estágio em que não há ficção que possa chegar a seus pés"[22].

 

Portanto, não há a crença de que a realidade possa se transformar rapidamente. Em Abril despedaçado, a violência - banalizada - não liberta; aprisiona, e é a reflexão sobre a sua repetição o meio para se atingir o destino. É verdade que só se atinge esse estágio após o sacrifício do menino, mas não é a violência em si mesma que traz mudanças em caráter imediato. Pelo contrário, na figura do velho patriarca da família rival e do seu neto, que mata o menino por engano, a violência é desorganizadora - despedaçadora - da história: "Em terra de cego, quem tem um olho só todo o mundo acha que é doido", diz o menino[23].

 

Ou seja, a violência no filme de Walter Salles não é propriamente o meio para a transformação, mas em seu estado-limite - o sacrifício do menino - talvez seja uma espécie de fim inevitável. O meio para a transformação é a ressignificação da violência.

 

Em Abril despedaçado o destino se constrói por meio de transformações e do embate geracional nelas compreendido, delineando-se, por meio da reflexão e ressignificação da travessia. Entre a falta (do sertão) e a plenitude (do mar), fica a lição de que esquecer é criar.


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