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Resumo
O artigo traz o sonho como um ato psíquico, que busca a satisfação de um desejo através do trabalho conjunto do processo primário e secundário, tendo como principal momento a elaboração onírica. A partir do trabalho de Freud, destacam-se momentos de resistência na produção do sonho, desde a produção do desejo onírico até a fala do analisante na sessão.


Palavras-chave
sonho; desejo; resistência; elaboração onírica; psicanálise.


Autor(es)
Luciana Ferraz Ferraz.
é psicóloga formada pela unisinos, psicoterapeuta de orientação psicanalítica do esipp. Psicanalista membro associado do cepdepa.

Luísa Puricelli Pires Pires
é psicóloga formada pela pucrs, psicanalista membro associado do cepdepa.


Notas

1.        S. Freud, "Revisão da teoria dos sonhos", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 22, p. 18.

2.        M. Schur, Freud: vida e agonia, uma biografia, vol. 1.

3.        S. Freud, "A interpretação dos sonhos II", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 5.

4.        S. Freud, Revisão...

5.        S. Freud, "A dissecção da personalidade psíquica" in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 22, p. 78.

6.        S. Freud, op. cit., p. 80.

7.        S. Freud, "Conferência xviii: Fixação em traumas - o inconsciente" in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 16, p. 292.

8.        S. Freud, "O ego e o id", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 19.

9.        S. Freud, "Sobre o narcisismo: uma introdução", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 14, p. 98.

10.     S. Freud, A dissecção..., p. 70.

11.     S. Freud, Revisão..., p. 25.

12.     S. Freud, op. cit., p. 29.

13.     Consciente, pré-consciente e até mesmo inconsciente.

14.     S. Freud, "Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 14.

15.     Funcionamento, não estrutura.

16.     S. Freud, Revisão..., p. 30.

17.     S. Freud, "Projeto para uma psicologia científica" in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 1.

18.     Falamos de uma resistência obscura, primordial, que parece prover do contato do Ego com o Id, e que, embora não postulada de forma categórica por Freud em 1933, possibilita essa interlocução.

19.     S. Freud, Revisão..., p. 24.

20.     S. Freud, op. cit., p. 30.

21.     S. Freud, A dissecção..., p. 80.

22.     S. Freud, "Ansiedade e vida instintual", in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 22, p. 92.

23.     S. Freud, Revisão..., p. 22.

24.     S. Freud, op. cit., p. 22.

25.     S. Freud, op. cit.



Referências bibliográficas

Freud S. (1895/2006). Projeto para uma psicologia científica. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 1.

____. (1900/2006). A interpretação dos sonhos II. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 5.

____. (1914/2006). Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 14.

____. (1917/2006). Fixação em traumas - o inconsciente. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 16.

____. (1917/2006). Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 14.

____. (1923/2006). O ego e o id. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 19.

____. (1933a/2006). Revisão da teoria dos sonhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 22.

____. (1933b/2006). A dissecção da personalidade psíquica. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 22.

____. (1933c/2006). Ansiedade e vida instintual. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 22.

Schur M. (1981). Freud: vida e agonia, uma biografia. Rio de Janeiro: Imago, vol. 1.





Abstract
The article considers the dream as a psychic act, which searches the satisfaction of a desire through a joint work of the primary and secondary processes, which together constitute the dream- -work. Following Freud’s indications, the authors pinpoint the moments of resistance in the production of a dream, from the conception of a dream-wish to the speech of a patient in session.


Keywords
dream; desire; resistance; dream-work; psychoanalysis

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 TEXTO

Sonhos, para que te quero?

Dreams, what are they for?
Luciana Ferraz Ferraz.
Luísa Puricelli Pires Pires

A teoria e a técnica de interpretar os sonhos foram temas de extrema importância para o criador da Psicanálise, de forma que Freud se dedicou fortemente a eles até o final de sua obra. Devido à longevidade desse tópico, iniciado em 1900, pareceu-nos interessante esta retomada da teoria dos sonhos, em que aprofundamos a questão da resistência psíquica inserida no recalque, a qual se expressa enigmaticamente no sonho e se repete no processo analítico.

 

A partir de "Revisão da Teoria dos Sonhos" de 1933, de Freud, deparamos com alguns questionamentos que estimularam a escrita deste trabalho. Destacamos quatro eixos de estudo, buscando discorrer sobre as seguintes questões: Onde o sonho é produzido? Como ocorre a conciliação entre os sistemas consciente/pré-consciente e inconsciente, e as instâncias Ego, Id e Superego? Como podemos pensar o conceito de resistência no sonho? E quando essa resistência opera?

 

Sabendo que a tarefa de discorrer sobre os sonhos é, ao mesmo tempo, aprofundar a metapsicologia psicanalítica e sua pedreira, as perguntas acima servem enquanto norteadoras da estrutura dada ao trabalho e não necessariamente se dispõem a serem respondidas, fechadas. Visamos, acima de tudo, a estimular o debate acerca dos sonhos, inclusive tendo como base o que Freud logo coloca em xeque em 1933: a posição dos analistas de acharem que têm "nada mais a dizer acerca dos sonhos"[1].

 

O sonho é um ato psíquico

Foi através do trabalho do sonho que Sigmund Freud desenvolveu sua compreensão acerca dos processos do sistema inconsciente, podendo, assim, diferenciá-lo do funcionamento consciente. Esta descoberta abriu as portas para o entendimento do sintoma neurótico, com o qual teve o primeiro contato direto no Hospital Salpêtrière em Paris, onde iniciou seus estudos com Charcot, em 1885.

 

Ali, Freud pôde perceber a veracidade das causas inconscientes que se evidenciavam nos sintomas das mulheres histéricas internadas. Durante os anos seguintes, iniciaria sua autoanálise, compartilhada de forma íntima com o amigo Fliess, e escreveria o trabalho mais longo de sua obra, "A Interpretação dos Sonhos", de 1900.

 

Esse percurso de mais de dez anos está firmado nas cartas e nos textos que produziu, os quais articulam as surpresas e persistências de uma postura altamente investigativa. Percebendo que as manifestações físicas das analisantes tinham origem em traumas que haviam sido esquecidos, dedicou-se a estudar os processos inconscientes. Começou a indagar-se sobre a grande influência que essas forças poderiam ter sobre as atitudes cotidianas dos indivíduos como nos atos falhos, chistes e sonhos. Concluiu que essas formações inconscientes tinham relação entre si, de forma que suas interpretações acerca dos sintomas das analisantes podiam ser confirmadas através dos sonhos destas[2].

 

Se havia uma linguagem onírica própria, portanto, restava-lhe saber compreendê-la. Freud[3] logo percebeu que tudo aquilo que o analisante falava em análise tinha relação com seu mundo inconsciente. Quando, enfim, adotou a prerrogativa de que o inconsciente contém uma organização desorganizada aos olhos da vida racional, uma movimentação única e uma maneira própria de se manifestar, passou a pedir aos analisantes que falassem tudo o que lhes viesse à cabeça. Qual não foi, então, seu estranhamento quando se evidenciou uma resistência à livre associação de ideias, através de esquecimentos, autocríticas e sentimentos de vergonha ou nojo, que impediam a comunicação?

 

A partir dessas situações, a teoria dos sonhos de 1900 passou a ser também uma forma de comprovar suas pesquisas clínicas. Ali começou a descrever questões importantes da Psicanálise, como o mecanismo do recalque, a regressão pulsional a fases anteriores do desenvolvimento, a formação de compromisso e os destinos das representações psíquicas. Aprofundando técnica e teoria, Freud voltou a escrever sobre os sonhos algumas vezes até 1933, quando afirmou que, para trabalhar o sonho do qual o analisante fala em análise, seria necessário ter como premissa que, assim como a construção de fantasias e sintomas, todo sonho é um ato psíquico, sendo, por isso, tão importante quanto qualquer outra comunicação do analisante.

 

Nesse contexto, compreende-se que a moção pulsional inconsciente é a responsável pela formação do sonho; é ela quem encontra nos restos diurnos as condições necessárias para driblar a censura e, assim, conseguir sua satisfação. Isso é possível porque os restos diurnos, que estão no pré-consciente, não apresentam ameaça ao equilíbrio psíquico, já que seus conteúdos estão associativamente distantes dos mais primitivos, relacionados em sua origem ao incesto e ao parricídio. Utilizando-se dos restos diurnos, o sonho alcança a satisfação por via alucinatória, podendo ser lembrado ou não pela consciência após acordar. Nessa perspectiva, dizemos que um sonho possui um conteúdo latente por detrás do conteúdo manifesto e que evidencia o cumprimento de um desejo inconsciente[4].

 

O sonho é a satisfação de um desejo

Descrevendo minuciosamente o início da vida psíquica, podemos compreender os mecanismos conceituados por Freud como processo primário e secundário, relacionando-os posteriormente ao trabalho do sonho.

 

Freud nos apresenta o Id como uma parte muito obscura e livre de contradição, que exerce uma pressão constante, visando sempre à descarga. É um conceito muito aproximado do de pulsão: "aberto, no seu extremo, a influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades instintuais que nele encontram expressão psíquica"[5].

 

Enquanto é puro Id, o bebê vivencia um primeiro momento de investimento em si, sendo inicialmente necessária uma simbiose com a mãe que se doa totalmente ao filho, não exigindo ser reconhecida como outro. Dessa forma, o bebê alucina as vivências de satisfação que obteve na companhia do objeto de amor, tentando unificar suas percepções internas e buscar a satisfação de modo solitário, deleitando-se com a simples descarga das energias acumuladas. Com o objetivo principal de se desfazer da angústia que o acomete pela fome e pela falta do objeto, a tentativa é obter um prazer autoerótico que mantenha a homeostase, um equilíbrio econômico entre o Eu e o não-Eu.

 

Esse momento não pode durar para sempre e, em seguida, o bebê é invadido pelo desamparo, ocasionado pelas sensações físicas e perceptivas precariamente estabilizadas. Não sendo possível viver sem o outro - primeiramente devido à dependência fisiológica e, após, a uma dependência de afeto - o mecanismo inicial de autossatisfação falha, e o infante sente a incidência da morte. Ao se encontrar com a mãe que o alimenta, no retorno, o bebê começa a formar representações das pessoas que o circundam, assim como de si próprio. Dessa forma, o teste de realidade vai impondo a percepção do externo, e a busca pelo objeto se torna imprescindível, atualizando o desejo que não pode mais se realizar como antes.

 

Devido às transformações libidinais, o Ego não pode mais ser indiferenciado, o que aumenta a importância do objeto, assim como o desejo de satisfazer as expectativas (conscientes e inconscientes) deste. Passado algum tempo, o objeto demonstra que possui outros ideais e não oferta mais a mesma doação à criança, impelindo-a a buscar fazer parte desse universo.

 

A relação com o mundo externo tornou-se o fator decisivo para o Ego; este assumiu a tarefa de representar o mundo externo perante o Id - o que é uma sorte para o Id que não poderia escapar a destruição se, em seus cegos intentos que visam à satisfação de seus instintos, não atentasse para esse poder externo supremo[6].

 

Nesse contexto onde o objeto não é totalizante e infiltra uma falta, o sujeito vai poder lançar mão de um novo mecanismo que incrementa seu desenvolvimento: o recalque. Como uma barreira, a resistência empregada pelo Ego opera na fluidez das pulsões e seus derivados, interditando as representações que antes circulavam abertamente em busca de satisfação, não mais permitindo as ações que realizavam o desejo.

 

De posse dessa defesa, porém, o Ego atua apenas em algumas representações daqueles desejos inconscientes, deixando um espaço livre para a movimentação das forças do Id. O Ego "não é senhor nem mesmo em sua própria casa"[7]. Ele cumpre o papel de conciliador entre as instâncias psíquicas, tentando satisfazer as exigências do Id e do Superego, realizando alguns desejos, sob o comando de algumas regras. Freud[8] afirma, devido a esse movimento psíquico, que o ser humano é ao mesmo tempo mais irracional do que gostaria de acreditar e mais moralista do que poderia admitir.

 

Abalado pelas exigências de ideais que lhe foram impostos pela cultura e pelo narcisismo dos pais, o Ego dividiu a si mesmo, agindo ora como sujeito, ora como objeto. Perdeu muito de sua glória, pois, ao recalcar, começou a ser criticado não apenas pelos objetos de amor, mas por aquele ideal introjetado, ainda mais imperativo; perdeu aquele sentimento de plenitude que um dia lhe proporcionou sentir-se e ser visto como "sua majestade, o bebê"[9].

 

O Superego é "o veículo do ideal de Ego, pelo qual o Ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição maior ele se esforça em cumprir"[10], resultado da imagem que o indivíduo tinha de seus pais quando criança. Toda vez que esse ideal força uma repetição, desejando retornar ao passado onde tudo podia fazer e ser, o Superego exerce também uma função narcísica, novamente expressando o desejo de ser grande.

 

Nessa perspectiva, as produções inconscientes têm sempre um desejo pulsional cumprido através de uma formação de compromisso entre instâncias, sistemas e representações, oferecendo um destino ao conflito. No sonho, esse processo também conjectura Ego, Id e Superego, mas tem um adendo especial, pois tenta obter a satisfação por via alucinatória. Tendo em vista que é permitido sonhar o que acordado lhe é proibido, o sonho configura-se como uma "inofensiva psicose"[11], porque não atua na realidade externa, nem rompe com os vínculos feitos na vida de vigília.

 

Retornando ao princípio de prazer, conforme ocorria no início da vida anímica, o sonho em si é uma realização de desejo, quando, através dele, se descarregam forças pulsionais primitivas, próprias do processo primário - uma repetição das satisfações mais incivilizadas que tiveram de se tornar inconscientes.

 

Como um acréscimo, o sonho representa a tentativa de satisfação de um desejo sexual infantil recalcado, que está disfarçado na elaboração onírica através de um trabalho conjunto, um compromisso do processo primário e secundário e que pode vir a ser reconhecido através da análise.

 

O essencial é a elaboração onírica

O Ego consciente necessita dormir, e o inconsciente deseja manifestar-se. A libido disponível no processo faz uma regressão a um estado narcísico em que a satisfação se dá através da imagem, como no início da vida psíquica, e alcança a realização do desejo inconsciente.

 

No processo do sonho, há um primeiro momento de procura dos materiais da vida de vigília que possam servir à elaboração do sonho. Estes são os restos diurnos, que possibilitam vinculações com as experiências vividas pelo Ego e os materiais recalcados, formando, assim, um desejo onírico. Percepções que, muitas vezes, passaram despercebidas à consciência formam combinações inusitadas que constituem o conteúdo subliminar do sonho, aquilo que parece não ter sentido e provoca as mais diferentes reações emocionais.

 

A participação do Id no sonho refere-se ao fornecimento de capital energético. Sua pressão agita os conteúdos guardados tão intensamente, que o Ego não vê outra saída senão forçar o trânsito contrário ao da ação, a fim de proteger a integridade do sujeito. O caminho inverso ao ato leva o psiquismo a um mergulho profundo; um processo de regressão é incitado, e tudo passa a ser produzido a partir das leis do inconsciente, de forma que o aparelho psíquico solta as amarras que havia construído no recalque.

 

Essa regressão ao mais primitivo inicia-se a partir do Ego recalcado, sede das representações-palavra, passando pelas representações-coisa até as marcas mnêmicas, como se a história da constituição psíquica do sujeito fosse contada de frente para trás. Liberando as forças pulsionais, que estão em forma de imagem, o Ego retoma uma comunicação direta com o Id, permitindo que a energia psíquica se aproxime também do campo perceptivo - tela onde um filme sem palavras será projetado - ali deixando uma impressão marcante.

 

Este investimento maciço nas imagens mnêmicas caracteriza a atuação do processo psíquico primário. Através da condensação e do deslocamento, as cargas de investimento são transferidas entre os diversos conteúdos, unificando-os e desmembrando-os continuamente, até que, por exemplo, um conteúdo simples apresente uma intensidade e importância elevadas ao sonhante, enquanto um mais complexo passe despercebido pela censura, como se não fosse relevante. Essa dinâmica imprime o que Freud caracterizou como a "intensidade sensorial"[12] tão característica dos sonhos, oferecendo a sensação de realidade própria do sonho. Dessa forma, a satisfação do desejo obtém um grande reforço provindo da força inconsciente, tornando-se ainda mais viva.

 

O material inconsciente foi primeiramente satisfeito quando fez uso de disfarces (retirados das percepções[13] que obteve durante o dia) e se aproximou da percepção, mostrando a ela, digamos assim, como ele gostaria que as coisas fossem feitas. Ao exercer essa pressão libidinal, a energia pulsional ativou outros grupos psíquicos, que foram se misturando ao conteúdo mais primitivo. Esta movimentação é possível porque, ao dormir, a motilidade do corpo está impedida, abrandando a censura, embora esta nunca fique totalmente inoperante.

 

Nesse entendimento, Freud[14] deixa clara a ação conjunta do pré-consciente e do inconsciente para que a formação do sonho ocorra, pois um oferece o caminho e o outro, a força. O conteúdo reprimido não obedece ao desejo de dormir que parte do Ego, permanece ativo como esteve na infância do sujeito, tendo certo grau de independência do Ego, podendo, assim, investir nos restos diurnos a partir do Id. Com esse retorno ao narcisismo, entendemos que essa formação de compromisso do sonho ocorra no inconsciente, na tela de percepção do Ego.

 

Tendo uma ação igualmente importante do Id e do Superego na produção do sonho, o Ego necessita investir o ideal construído através da relação com o meio externo. Se esse ideal representado no sonho foi criado com base em poucos modelos, intensamente opressores e controladores, podemos pensar em um Ego sem forças para se contrapor às ordens do Superego. Nesse contexto, há uma falha na proteção do Ego, que, com pouca plasticidade nas identificações, cede à pulsão de morte e realiza os sonhos punitivos.

 

O Superego também pode estar vinculado à ação de censor do sonho, que critica as realizações de desejo incitadas pelo Id, contrariando e dificultando o trabalho interpretativo, e pode vir a despertar o consciente/pré-consciente - que de qualquer forma seria ativado quando chegasse a hora de acordar - antes de o sonho chegar ao fim.

 

Ao tomar conhecimento dessa movimentação no underground, o Ego consciente, que está adormecido, inicia um processo secundário de formação de um conteúdo manifesto, transcrição das representações, começando um movimento de progressão após a regressão. Por isso, dizemos que o sonho só é possível em um funcionamento neurótico[15], o qual construiu uma elasticidade psíquica que permite o trânsito entre as instâncias e o trabalho conjunto destas.

 

De fato, essa pressão de retomada só é possível quando há um Ego com reserva suficiente de investimento narcísico para empreender a energia necessária à inibição. Seria um Ego que considerou o mundo externo, que se relacionou com os objetos e empreendeu o recalque; um Ego que inibiu a ação do processo primário inúmeras vezes e, nesse ínterim, desenvolveu a capacidade de postergar e de pensar. Desse mesmo jeito, agora no sonho, a inibição por parte do Ego serve para prolongar o tempo percorrido entre a percepção e a ação; é o tempo do despertar do sonho, em que, também, há um trabalho a ser feito para completar o sonhar.

 

A tela estava preenchida de imagens e, conforme essa produção foi se tornando investida demais, um trabalho de edição se fez necessário. Representações do inconsciente recalcado compareceram, porém necessitavam que as lacunas fossem preenchidas e as sequências caracterizadas, situando uma elaboração secundária,

 

[...] que poderia ser descrita como uma atividade racionalizadora e que, pelo menos, provê o sonho de uma aparência externa homogênea que não pode corresponder ao seu conteúdo verdadeiro. [A elaboração secundária] Também pode, contudo, estar omitida ou apenas estar expressa em grau muito modesto - caso em que o sonho exibirá ostensivamente todas as suas fendas e rachaduras[16].

 

As resistências do sonho

Descrevemos a movimentação dos restos diurnos, o trabalho de conexão entre os conteúdos que agrupam um desejo onírico e o processo de regressão, propostos por Freud em 1917, como os três importantes momentos na formação onírica.

 

Sabemos que o próprio ato de sonhar exerce uma função de descarga, ao retornar à época primitiva de nossas vidas a fim de satisfazer o desejo por todos os meios possíveis. A partir desses preceitos, identificamos possíveis resistências no processo, que se configuram: 1) como um trabalho de Ego na elaboração onírica, que incrementa inconscientemente a satisfação pulsional; 2) reorganizações racionalizadoras próprias da elaboração secundária, que permitem um trânsito maior dos conteúdos formulados no sonho; e 3) rodeios que dificultam o relato do sonho ao analista e que se imbricam na relação transferencial.

 

No primeiro momento do sonho, os conteúdos ainda estão se ativando mutuamente e abandonam a resistência erigida ao conteúdo primitivo, retornando à sua antiga forma de atuação. O efeito dessa superprodução mnêmica livre de resistência leva o processo psíquico primário a agir de modo indiscriminado, de forma que a junção de conteúdos parece totalmente desconexa, inclusive para a pessoa que produziu o sonho. Podemos dizer que essa parte do sonhar nunca é lembrada, apenas representada nos momentos seguintes com mais ou menos disfarces. Seria a pura expressão do Id, o umbigo do sonho.

 

Durante o processo de regressão, esses conteúdos inconscientes que tentam se ligar aos do pré-consciente utilizam-se fundamentalmente dos restos diurnos para montar um conteúdo manifesto que drible a censura entre estes dois sistemas, tonando-se, assim, os principais condutores do conteúdo latente.

 

No segundo momento do sonho, a regressão tem seguimento durante a ativação das imagens, quando o sujeito passa a realizar seus desejos de forma direta, através da satisfação alucinatória de desejo, sem considerar o princípio da realidade (daí as múltiplas possibilidades que há nos sonhos, como a mudança de localidade e de atributos físicos das personagens de forma abrupta, o reavivamento dos mortos e os acontecimentos fantásticos). Nesse processo de elaboração onírica, conforme descrito no ponto anterior, construído pelo primeiro e o segundo momento do sonho, o Ego consciente segue tratando os conteúdos latentes de forma displicente, sem infligir uma grande censura.

 

Assim, o material inconsciente percorre o universo psíquico através dos processos de condensação e deslocamento, formando substituições ao que fora recalcado e constituindo o desejo onírico, que sempre é único, embora se refira aos desejos primordiais do incesto e parricídio. Nesse início, a elaboração onírica é soberana, ainda muito distante do que virão a ser os conteúdos manifestos, modificações das experiências originais e recalcadas.

 

Freud propôs, desde o início de seu pensamento[17], que a mente humana busca aprender e facilitar a organização psíquica. Oferecer resistência à passagem dos conteúdos que invadem o psiquismo caracteriza-se tanto por um trabalho de aprendizagem quanto uma oposição ao novo, que, mais tarde, Freud denominaria de compulsão à repetição - aquele caminho intensamente repetido que impede o sujeito de fazer novas ligações. Ora, se, por um lado, guardar comidas na despensa de uma casa demonstra a previdência do dono, ocupar toda a casa com comidas torna impossível seu uso, além de impedir por ali o transitar.

 

Nessa perspectiva, entendemos que uma primeira resistência[18] já se manifesta nesse segundo momento da produção do sonho, ao incrementar com representações inconscientes a simples corrente de energia que ativara o funcionamento psíquico. Freud mesmo infere que "a resistência que encontramos no trabalho de interpretar os sonhos deve também ter compartilhado da origem destes", ou seja, em sua gênese e produção. O autor destaca que "essa pressão [da resistência], contudo, varia também de lugar para lugar, dentro de um mesmo sonho"[19].

 

Em seguida ao ato de sonhar, a percepção/consciência tenta se apoderar do que foi produzido, dando ordem e sentido ao sonho, construindo assim a elaboração secundária - em outras palavras, aquilo que é lembrado do sonho. Freud pondera que, quando o sonho é "apresentado perante a consciência como objeto de percepção"[20], uma segunda resistência atua entre o pré-consciente e o consciente, traçando mais uma barreira a ser vencida na construção do sonho. É nesse momento que o desejo onírico é organizado perante as exigências do consciente. As palavras começam a entrar em cena, e uma sensação de temporalidade é dada ao sonho, constituindo, dessa forma, o terceiro momento do sonhar.

 

Entendemos que "o Ego controla os acessos à motilidade, sob as ordens do id; mas, entre uma necessidade e uma ação, interpôs uma protelação sob a forma de atividade de pensamento"[21], a partir das experiências que angariou com o mundo externo, e esse mesmo funcionamento ocorre na elaboração secundária.

 

Colocando em ação o princípio de prazer, o Ego percebe que a satisfação de uma exigência instintual emergente recriaria uma situação de perigo ainda viva na lembrança [inconsciente]. Essa catexia instintual deve, portanto, ser de algum modo suprimida, paralisada, inativada. Sabemos que o Ego consegue realizar tal tarefa, se é forte e se atraiu o impulso instintual em questão para a sua organização. Mas o que sucede no caso da repressão é o impulso instintual ainda pertencer ao id, e que o Ego se sente fraco. Então, o Ego se serve de uma técnica no fundo idêntica ao pensar normal[22].

 

Esse Ego fortalecido pela vivência narcísica junto aos pais é capaz de conjecturar vários interesses das diferentes instâncias. Porém, ao empreender o recalque, o Ego relegou um pouco de sua força, destinando os conteúdos interditados às leis de funcionamento do Id. O Ego mostra seu poder restante em sua atividade de pensamento, justamente onde inseriu organizações ao sonho e à vida.

 

Como um quarto momento do sonho, apresentamos o relato do sonho na sessão de análise. Muitas vezes, o conteúdo manifesto é repudiado e foge ao discurso do analisante enquanto este tenta contá-lo ao seu analista, principalmente quando as autocríticas engatilhadas pelo Superego infiltram-se nos temas correlacionados ao recalcado, escapando de serem pronunciadas. Se, durante o terceiro momento do sonho, as palavras se fixaram à produção onírica, enquanto uma resistência por parte do Ego, podemos entender também que elas retrataram sua participação na construção do sonho. E agora, nesse momento especial da análise, elas novamente cumprem uma dupla função.

 

Tanto em um esquecimento ou uma pausa, quanto em uma troca de palavras ou superprodução - os rodeios que o analisante produz no intuito inconsciente de não se aproximar do sonho - a terceira resistência se faz presente agora no relato do sonho em análise. A resistência que se mostrou na elaboração onírica e na elaboração secundária aparece agora in loco, atrapalhando a livre associação, deixando-nos certos de que, junto a esse emaranhado, está a transferência, a qual, quando trabalhada, abre novamente o discurso.

 

Ora, se "as associações ao sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes"[23], de modo que estes ocorrerão ao paciente a partir delas, será necessário pinçá-los e deslocá-los de um lugar a outro. O analista abre esse caminho ao que é inconsciente através de "explicações, transições e conexões"[24] que fazem referência à vida psíquica infantil do analisante, o que este viveu e, primordialmente, o que fantasiou do que viveu. O analista intervém a partir da ética de seu trabalho, tentando sempre permanecer fiel ao inconsciente e às associações que se fixaram livremente a ele.

 

Para isso, Freud[25] indica que devemos seguir ouvindo o detalhe do sonho, onde falta uma parte ou algo aparece como sendo insignificante. Ele lembra que, ainda que encontremos uma interpretação, devemos permitir a inevitável ambiguidade presente, exercendo apenas o papel daquele que completa, traduz e incita outros paradigmas dentro da gama de associações, sabendo também que nem todos os sonhos poderão ser interpretados. O tato do analista é fundamental nesse trabalho, pois o mesmo afeto que ficou livre no processo de recalcamento agora pode estar vinculado a apenas uma parte do sonho, mostrar-se de acordo com seu oposto ou ainda estar ausente - e deslocar-se em direção ao analista.

 

Em 1933, ao revisar a teoria dos sonhos, Freud volta a se questionar sobre a técnica de interpretação do sonho, salientando que o próprio ato de comunicar o sonho já é estar posto na transferência, visto que o analisante está, de certa forma, consciente da loucura expressa no sonhar e que produz associações ou interrompe seu discurso por diferentes sentimentos de resistência à análise. Nesse sentido, contar seu sonho em análise é expor seu inconsciente, trazendo sua vida íntima à tona e oferecendo-a ao analista, ainda que se resista a isso.


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