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Resumo
Nota?Participação no evento “2o tempo da Jornada da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae – tempo do Debate”, realizado no Instituto Sedes Sapientiae em outubro de 2008. Este texto, escrito em 2008, procede a uma análise dos acontecimentos que geraram as políticas de clínica e formação vigentes na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae. Na ocasião, catorze anos haviam transcorrido desde a implementação do “Novo Projeto da Clínica”, e doze da aprovação institucional do Projeto Clínico-Ético-Político. O trabalho aborda alguns vetores do processo de construção da Clínica: institucional, grupal, movimentos sociais, equipe estável, e formação. Ao publicá-lo, Percurso rende homenagem a um dos membros muito queridos e ativos do nosso Departamento, que nos deixou pouco antes de este número ser impresso.


Palavras-chave
clínica; ética; política; instituição; formação; grupos.


Autor(es)
Maria Angela Santa Cruz
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1.        H.B.C. Rodrigues, "As intervenções grupais - epistemologia ou história das práticas?", 1989 [mimeo].

2.        G.W. Sousa.

3.        J. Goldberg e F. Tenório.

4.        Apud História e Memória do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

5.        G. DeIeuze; M. Foucault, "Os intelectuais e o poder", p. 71.

6.        G. DeIeuze; M. Foucault, op. cit., p. 71.



Referências bibliográficas

Deleuze G.; Foucault M. (1979). Os intelectuais e o poder. In M. Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

Goldberg J.; Tenório F. (2006). História e Memória do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo: Narrativa Um.

Rodrigues H.B.C. (1989). As intervenções grupais - epistemologia ou história das práticas? [mimeo].





Abstract
This text, written in 2008, makes an analysis of the events that led to clinical policies and effective training at the Sedes Sapientiae Institute Clinic. Fourteen years have elapsed since the implementation of the “New Clinic Project”, and twelve of the institutional approval of the Clinical-Ethical-Political Project. The paper discusses some vectors in the process of building the Clinic: institutional, group, social movements, stable team, and training. With its publication, Percurso pays homage to one of the most beloved and active members of our Department, who left us just before this issue went to press.


Keywords
clinic; ethics; politics; institution; training; groups.

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 TEXTO

Políticas de clínica e políticas de formação

Clinical policies and training policies
Maria Angela Santa Cruz

A análise que se segue é uma visada, dentre outras, dos acontecimentos que geraram as políticas de clínica e de formação atualmente vigentes na Clínica do Sedes.

 

Há 12 anos, neste mesmo auditório, um coletivo composto por vários membros da comunidade Sedes - membros da diretoria, professores, alunos, ex-alunos, membros de departamento, trabalhadores da Clínica, funcionários - debateu, votou e aprovou, em regime de assembleia, o Projeto Clínico-Ético-Político da Clínica Psicológica do lnstituto Sedes Sapientiae.

 

Momento instituinte de uma outra clínica, diversa daquela que se praticava majoritariamente, cujo paradigma era o da clínica-escola - paradigma determinante de um funcionamento de clínica mais voltado para o aluno do que para o paciente -, esse momento fervilhante modificou radicalmente tanto as práticas clínicas como seus efeitos sobre a formação.

 

Momento somente possível pelo movimento coletivo que se instaurou neste Instituto a partir do ano de 1992, quando se formou uma equipe de membros da comunidade Sedes, de diferentes inserções e pertinências, para elaborar um projeto para a Clínica do Sedes, projeto que acabou sendo implantado em 1994. A avaliação realizada após um ano de sua implantação, no entanto, apontou os mesmos problemas nevrálgicos em relação aos quais tantos colegas haviam se empenhado para modificar: a clínica continuava sendo feita, em sua maior parte, por alunos que não tinham nenhum ligação com o projeto de clínica, sem lugar de inserção, apenas vinculados aos diferentes cursos que, por sua vez, viam na Clínica, basicamente, a possibilidade de prática clínica principalmente para aqueles alunos que não tivessem ainda esta experiência; em relação aos pacientes, atendidos como se estivessem em consultórios privados, sem um dispositivo de referência que pudesse acompanhar seu percurso institucional, muitos deles viraram Phds em teorias psicológicas - "Já fiz terapia reichiana, psicodramática, psicanalítica, agora quero experimentar a junguiana"; ou então, aquelas situações - muitas - em que vários membros de uma mesma família eram atendidos na Clínica, sem que os terapeutas sequer soubessem da existência dos demais atendimentos, restando o eterno ponto cego, entre outros, da função que a Clínica desempenhava para aquela família; ou ainda, testemunha essa repetição, os mais de 200 prontuários de pacientes que herdamos desse modo de funcionamento, quando implantamos outra organização e funcionamento de clínica, já na vigência do Projeto Clínico-Ético-Político, pacientes em geral graves, que sistematicamente sobravam por serem considerados muito difíceis para alunos em formação.

 

Passados 14 anos da implementação do "Novo Projeto da Clínica" e 12 da aprovação institucional do Projeto Clínico-Ético-Político, o que mudou?

 

Muita coisa mudou. Processo de mudança difícil, doloroso, que teve muitas baixas: vários colegas ficaram pelo caminho, razão ainda de tristeza e mal-estar, colegas valorosos, cujo trabalho incansável, persistente e corajoso foi imprescindível como condição de possibilidade da mudança. Gostaria de nomear ao menos duas, dentre essas colegas, guerreiras com diferentes formas e instrumentos de luta, mas igualmente imprescindíveis na revolução que se operou nesta Clínica: M. de Lourdes Trassi Teixeira e Cleusa Pavan. Homenagens ou agradecimentos pessoais não cumpririam a função que a própria efetivação da mudança de paradigma de clínica pode cumprir: o reconhecimento que importa pelo trabalho e investimento realizados só pode vir do próprio trabalho - difícil aprendizagem!

 

Pois não só de sofrimento e perdas se fez este segmento do percurso: afirmávamos, no Projeto de 1996, que queríamos construir uma Clínica que pudesse ser um laboratório quente de experimentações de práticas, que pudesse funcionar como um equipamento de Saúde Mental, conectado com as problemáticas e lutas desse campo. E falar em Saúde Mental é, antes de mais nada, falar de um bem e de um direito universais: é uma questão pública. Queríamos uma Clínica que reconhecesse no social sua condição de possibilidade, seu ponto de partida e não seu horizonte: toda clínica é uma prática social, construída historicamente. E, como prática social, queríamos resgatar sua potência de invenção diante dos desafios que as subjetividades contemporâneas nos colocam. Queríamos uma Clínica distinta, mas não separada da Política, por assumir-se poderoso instrumento de intervenção nos modos hegemônicos de produção de subjetividade.

 

E o que a Clínica passou a ser? Vocês poderão testemunhar um pouco da riqueza, multiplicidade e força que a clínica da Clínica pode produzir e continua produzindo, através dos diversos e variados trabalhos que serão apresentados ao longo desta jornada.

 

Mas agora, vejamos, ainda que parcial e rapidamente, alguns vetores do processo de construção desta Clínica que puderam ir se consolidando ao longo desses anos, tempo de criação, tempo de incontáveis acontecimentos, embates de forças, conflitos, experimentações, derivas.

 

O vetor institucional

O termo instituição tem várias conceituações, a depender dos momentos sócio-históricos dos quais esta ou aquela conceituação fez sua emergência. Pessoalmente, prefiro a conceituação de instituição tal como definida pela análise institucional francesa, cujos atores/autores de referência mais conhecidos são Lourau, Lapassade, Guattari, e que operaram uma importante distinção entre instituição e estabelecimento/organização. Na feliz definição de Heliana Conde Rodrigues[1], a partir do chamado institucionalismo anti-institucional, "instituições [...] são criações históricas de práticas e discursos que instauram campos de real, assim como monopólios de legitimidade: criança/pedagogia; doença mental/psiquiatria; saúde/medicina".

 

Conforme essa definição, toda e qualquer clínica pode ser considerada como uma instituição, incluindo aquela praticada em consultórios privados. Foi exatamente com este operador conceitual que conseguimos colocar em análise, em 1995 - tempo de avaliação - as instituições da Doença Mental, da Saúde Mental, da formação, do sujeito, do indivíduo, do dinheiro.

 

Com este operador pudemos começar a problematizar, e abrir para análise, quais têm sido nossas práticas e discursos, que campos de real vêm instaurando? Legitimados socialmente como profissionais psi, quais as relações que estabelecemos com o objeto de nossas práticas? Foram questões como essas que nos levaram a um movimento de desconstrução da concepção naturalizada e dicotômica quanto ao objeto de nossas práticas - o paciente, o sujeito - para afirmar uma direção de trabalho que nos colocasse a nós e aqueles que nos procuram no mesmo plano: trabalharmos com a subjetividade e seus modos de produção. Ao intervir no processo de produção, intervenção necessariamente feita no encontro de corpos, entramos todos - terapeutas e pacientes - em processos de diferenciação.

 

Mas se muitas vezes o uso do termo institucional em nosso cotidiano de trabalho refere-se ao estabelecimento Clínica de Serviços do Sedes, importa neste momento ressaltar os usos que apontam para a configuração de novas realidades na Clínica, já que indicam a inclusão de elementos anteriormente negados ou simplesmente desconhecidos; ou ainda elementos que só puderam se tornar visíveis e dizíveis a partir da efetivação das práticas:

 

a dimensão pública da clínica, em contraste com as práticas privadas e privatizantes da existência;

sua dimensão coletiva, em contraste com práticas individualizantes;

sua dimensão processual, que garante certo grau de flexibilidade na organização do serviço, possibilitando sua reorganização de tempos em tempos, a partir de um fazer clínico que incita a invenção de novas práticas e novos dispositivos.

 

A inclusão dessas dimensões, possível a partir de variadas e múltiplas experimentações clínicas, vem operando modificações nas próprias práticas, que só um exame mais exaustivo poderia evidenciar.

 

O que neste momento se pode dizer é sobre a direção dessas mudanças: cada vez mais se fala em Clínica Ampliada. E aqui também essa expressão - consagrada em alguns setores da Saúde como a inclusão do sujeito, sua singularidade, sua inserção sócio-econômico-política[2], ou da Saúde Mental como o cuidado com todas as dimensões da pessoa e não apenas de seu sofrimento "psíquico"[3] - essa expressão na Clínica do Sedes vem sendo usada para designar como clínicas uma série de intervenções historicamente heterogêneas às chamadas psicoterapias: uma intervenção em uma escola de uma criança ou adolescente na Clínica; um mural feito por um paciente e exposto à interatividade com todos no saguão de espera; uma indicação de trabalho; uma gratuidade concedida pela Assistente Social; uma rede construída para a inclusão de uma criança dita "especial" em uma classe regular; uma rede de acompanhamento construída internamente à Clínica, composta por vários agentes institucionais - psicoterapeuta, psicopedagoga, psiquiatra, assistente social; um, dois, dez, mil telefonemas para aquele adolescente em situação de extrema vulnerabilidade social; a construção de parcerias e de redes de acompanhamento daquele adolescente, daquela família, daquela criança, redes e parcerias diversas - com o PSF, com equipamentos públicos de saúde, de educação, de lazer, de cultura, etc.

 

Exemplos analisadores da abertura para o reconhecimento da heterogeneidade e multiplicidade dos componentes de subjetivação - vacina, não garantidora, dos riscos, sempre presentes, de "psicologização" da existência. A abertura para esse reconhecimento e a coragem de assumir outras formas de cuidado, para além daqueles prescritos por esta ou aquela linha teórica, vem fortalecendo uma política de clínica, prenunciada no Projeto Clínico-Ético-Político, mas que só a efetivação das práticas pode ir concretizando.

 

Uma clínica-klinikós, que tradicionalmente se definia como aquela que se debruça sobre o leito de um paciente/passivo, e que nossa prática clínica vem transformando em uma clínica de cuidado e de acolhimento, onde terapeuta e paciente estão ambos convocados a se responsabilizar pela potência possível daquele encontro.

 

E também uma clínica-clinamen, a clínica do desvio, aquela que se diferencia da histórica vocação adaptativa das práticas psi, possibilitando a produção de processos de subjetivação em que a autonomia, a singularização, a desalienação e a ampliação e fortalecimento da potência de vida sejam os guias éticos das diferentes práticas.

 

O vetor grupal

São múltiplas as concepções e práticas grupais que vêm ocorrendo na Clínica. Ainda que não haja um consenso sobre elas, vem se fortalecendo entre nós a ideia-ferramenta de que grupo é um dispositivo.

 

Como dispositivo, a prática grupal está disseminada na maioria das atividades da Clínica: nas reuniões da equipe de contratados, nas equipes clínicas, nos projetos. E se essa já era uma prática frequente nos primórdios do Projeto Clínico-Ético-Político, prática que justamente possibilitou seu engendramento, o dispositivo grupal como ferramenta de trabalho terapêutico só veio se consolidando na Clínica nos últimos 8 anos. Não que antes não houvesse trabalhos clínicos importantes sendo realizados através do dispositivo grupal: as recepções das pessoas que procuram o serviço da Clínica vêm sendo realizadas em grupo desde o Projeto de 94, com a antiga equipe de triagem; recepções que foram se modificando quanto a sua proposta - o Projeto de 96 propunha a função de escuta e análise da demanda para estas. Dentre os trabalhos que serão apresentados nesta Jornada, haverá a oportunidade de conhecer os modos de recepção que atualmente vêm sendo praticados na Clínica. Desde 97, vários grupos terapêuticos se formaram e funcionaram. Mas a direção clínica mais clara para que a equipe de contratados privilegiasse o trabalho grupal na atenção só se efetivou a partir do ano 2000. E a profusão e variedade de grupos clínicos que se criou a partir dessa política de clínica engendraram práticas clínicas produtoras de efeitos ainda não detidamente avaliados nas várias instituições que atravessam a Clínica: na instituição da formação, na instituição Psicologia ou Psicanálise, na instituição do dinheiro, na instituição da psicoterapia.

 

A maior visibilidade das dimensões anteriormente referidas - a dimensão pública, a dimensão coletiva e a dimensão processual - só tem podido emergir e se configurar como questões pelos efeitos que a multiplicidade das práticas clínicas grupais vem produzindo.

 

O vetor intercessor movimentos sociais

Ainda que todo instituído tenda ao fechamento e à reprodução de seus modos de funcionamento, a abertura e sintonia que este equipamento coletivo continuar tendo com alguns movimentos sociais permite um gradiente de transversalidade que vem funcionando como um poderoso vetor de oxigenação e produção de forças instituintes.

 

Destaca-se particularmente o movimento da reforma psiquiátrica brasileira, ou ainda, o movimento da luta antimanicomial e o movimento pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Para além da participação mais ativa e direta de alguns dos trabalhadores da Clínica em um ou outro movimento, importa aqui marcar os efeitos dessas intercessões tanto nas práticas e nas discussões clínicas como sua função de disparadores de diversas articulações com polos desses movimentos.

 

Ainda que não seja possível fazer uma análise exaustiva e minuciosa dos efeitos deste intercessor nas práticas e discussões clínicas, neste momento, pesquisa que fica aqui indicada como relevante para o campo da Saúde Mental, gostaria de ressaltar dois grandes efeitos-movimentos que vêm atravessando nosso cotidiano institucional:

 

o movimento, ainda incipiente, contra o vagalhão da medicalização social, atualização poderosa das tecnologias do biopoder no contemporâneo;

 

o movimento, ainda fragmentário, de luta pela efetivação do ECA naquilo que avança na concretização dos direitos das crianças e dos adolescentes.

 

Assim é que o questionamento do reducionismo das questões da subjetividade contemporânea a uma questão médica ou medicamentosa vem nos colocando novos desafios na clínica com uma população que chega cada vez mais com diagnósticos prêt-à-porter - síndrome do pânico, depressão, transtorno bipolar, TDAH, dislexia, e outros tantos -, em geral medicada, muitas vezes hiper-medicada, cronificada a céu aberto pelas novas tecnologias do biopoder. É claro que sempre corremos o risco de, ao tentar lidar diferentemente, não conseguir de fato desinstitucionalizar a suposta doença mental e seu correlato especialista, supostamente apto a lidar com ela pela legitimação social a ele conferida, e acabar institucionalizando novamente através de outras formas de reducionismo psicológico ou psicanalítico. Mas a tensão da clínica, para aqueles que se colocam disponíveis para serem por ela afetados, não dá muito sossego para as respostas produzidas diante desses desafios, respostas sempre provisórias.

 

Já aí se abre uma série de trilhas no vasto campo da defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Trilhas abertas diretamente nas práticas: é espantosa a quantidade de crianças e adolescentes que chegam medicados no Sedes, convocando-nos a inventar novas formas de intervenção para a desconstrução dessa situação; trilhas abertas na busca de parcerias, na elaboração de projetos, na participação em congressos, em manifestações públicas, na participação em grupos de resistência; trilhas abertas para intervenções na instituição da educação, seja através de trabalhos concretos na frente de batalha da educação inclusiva, seja nas diversas intervenções pontuais em escolas públicas.

 

Na intercessão com o movimento de defesa e afirmação dos direitos das crianças e dos adolescentes, abre-se também um amplo campo de invenção de dispositivos e de intervenções a partir de uma população atendida pela clínica, que tem seus direitos mais elementares sistematicamente violados: desde o direito a uma alimentação, moradia, educação, lazer dignos até o direito a falar de si próprio.

 

O vetor equipe estável da Clínica

Afirmava-se no Projeto Clínico-Ético-Político a importância de se montar uma equipe de profissionais contratados que pudesse responder e ser referência, no tempo, pelos incontáveis trabalhos clínicos realizados na Clínica. Falava-se em uma equipe estável: não se trata de estabilidade dos profissionais contratados, mas de uma equipe que, além de não estar premida no trabalho por um tipo de rotatividade a que alunos ou estagiários estão submetidos, pudesse fazer frente aos efeitos da rotatividade no trabalho clínico dos estagiários.

 

Equipe inicialmente concursada, sua configuração também vem se modificando no tempo, resposta a inúmeras injunções clínicas, políticas, institucionais, econômicas.

 

Equipe que vem ganhando consistência como equipe de alguns anos para cá, não sem embates - e talvez esteja aí a riqueza e força dessa equipe: a possibilidade de existir sem a necessidade de um suposto consenso idealizado, uma harmonia paradisíaca; a possibilidade de caber algum grau de dissenso e de poder fazê-lo trabalhar.

 

Equipe que tem inúmeras funções e atribuições na clínica: pensar e repensar sistematicamente o serviço - fluxo, recepção, organização institucional; realizar práticas clínicas, muitas delas em grupos; coordenar equipes clínicas.

 

Uma aposta fundamental feita durante a construção do Projeto clínico-ético-político é que todos os profissionais contratados, tivessem ou não função de coordenação de trabalhos ou de organização de serviços, estivessem também na atenção direta aos usuários. Faz enorme diferença coordenar e discutir uma clínica da qual se participa ativamente em sua efetivação e uma clínica conhecida apenas pelos relatos de quem está no front de batalha. O reconhecimento e a assunção coletiva da inseparabilidade da atenção e da gestão em uma clínica que se quer clínica-clinamen, clínica que produza diferenciação, singularidade e multiplicidade, são direções de uma política de clínica que vem se construindo com a intercessão de movimentos sociais que resultaram na construção de um SUS, por exemplo, ou mesmo da PNH, ou ainda na atual Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde - mesmo que esta intercessão não se explicite: estamos inexoravelmente conectados com as produções sociais de nosso tempo, queiramos ou não, saibamos ou não.

 

E a produção clínica que vem se realizando na Clínica nestes últimos 11 anos - sim, 11 porque apenas em 1997 conseguimos efetivar de fato a implementação do Projeto clínico-ético-político - tem sido de uma riqueza, de uma inventividade e de uma potência de produção e transformação próprios a uma Clínica viva.

 

O vetor formação - as equipes clínicas

A Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, desde sua criação em 1948, sempre teve como um de seus objetivos a formação de psicólogos clínicos conectados com as problemáticas políticas e sociais de seu tempo, ainda em tempos em que a Psicologia sequer era reconhecida como profissão no Brasil[4].

 

Não é o caso de recontar toda a história dessa Clínica, seus modos de funcionamento, produções e vicissitudes. O caso é contar como temos conseguido sustentar esta que é uma parte fundante desta Clínica - sua função de formação.

 

O movimento coletivo, que aconteceu no Sedes de 1992 a 1994 e que resultou no "Novo Projeto de Clínica" implantado em 1994, visava entre outras proposições à transformação daquela que se caracterizava como uma clínica-escola, com sua lógica própria de funcionamento como qualquer outra clínica-escola, em uma clínica de serviços. A avaliação coletiva desse projeto realizada em 1995, no entanto, demonstrou que se reproduzia na prática justamente o modo de funcionamento que se pretendia modificar, produtor de atividades clínicas privatizadas, segmentadas e confinadas à tríade aluno-terapeuta/paciente/supervisor. Finda a formação do aluno em seu curso, o destino desse paciente era muito incerto. Dizíamos à época que a Clínica parecia uma terra de ninguém. É claro que o risco de transformar a Clínica em uma Clínica de alguém - de uma pessoa, um curso, um departamento - o risco de esta colocação engendrar movimentos de apropriações privadas e territorializações de poder sempre esteve presente, e sempre estará.

 

Os dispositivos criados, no entanto, para transformar essa Clínica em uma legítima clínica de serviços da cidade de São Paulo vêm mostrando, ao contrário, o caráter público e coletivo de seu trabalho, com a direção política que tais dispositivos consigam efetivar, e com uma responsabilidade ética sobre ela assumida coletivamente.

 

O dispositivo equipe estável da Clínica, com todos os profissionais que dele fazem parte contratados pelo Instituto, vem funcionando exatamente como garantia tanto do caráter público da clínica como do compromisso ético com seus trabalhos.

 

Um outro dispositivo, criado para fazer funcionar mais especificamente o vetor formação, foi o dispositivo equipes clínicas. Trata-se de grupos de trabalho, compostos por um coordenador - profissional da equipe estável - e um número variável de terapeutas-estagiários (em torno de 10), que se reúnem por duas horas semanais, cuja tarefa é discutir e encaminhar pacientes que precisem de atendimento, em geral provenientes das recepções grupais realizadas mensalmente, e acompanhar os processos psicoterápicos deles.

 

Esse dispositivo foi construído com os seguintes objetivos:

 

funcionar como espaço de inserção e pertinência para o terapeuta-estagiário;

funcionar como referência dos pacientes em atendimento - seria a memória viva, conforme a feliz expressão de uma terapeuta estagiária, do percurso clínico-institucional dos pacientes;

funcionar como um espaço permanente de discussão das práticas clínico-institucionais.

 

Atualmente são oito as equipes clínicas que operam na Clínica.

 

Os terapeutas-estagiários são profissionais formados, oriundos dos vários cursos de especialização ofertados no Sedes. Esses cursos, por sua vez, vêm se caracterizando historicamente como cursos de especialização em determinadas linhas teóricas do campo da Psicologia - Gestalt, Reich, Psicodrama, Jung, ou do campo da Psicanálise - dois cursos de formação de psicanalistas, Psicanálise de Criança, Psicossomática - ou ainda cursos voltados a profissionais que trabalhem com segmentos específicos da população, com ferramentas teóricas variadas - é o caso do curso de Adolescência e Juventude na Contemporaneidade. Há ainda terapeutas-estagiários que podem vir de dois cursos de aperfeiçoamento, ligados aos dois departamentos de psicanálise existentes no Sedes. Semestralmente, há uma seleção compartilhada entre Clínica e cursos daqueles alunos que poderão fazer estágio na Clínica. Há também um curso de especialização em psicopedagogia, cujo projeto de estágio pode ser realizado na Clínica, sendo que os alunos desse curso podem ser psicólogos ou pedagogos.

 

Então, são os alunos desses diferentes cursos que compõem as equipes clínicas, equipes heterogêneas, híbridas, tanto no sentido do tipo da especialização teórica à qual estão ligados, como no sentido de serem pessoas com as mais variadas experiências profissionais e pessoais.

 

Os coordenadores das equipes, por sua vez, também compõem um grupo bastante heterogêneo, apesar de sua formação nominal ser basicamente em psicanálise e em psicodrama: dos oito coordenadores de equipe, cinco são psicanalistas e três são psicodramatistas.

 

Bem, o que se passa quando o terapeuta-estagiário chega em uma equipe clínica? Ele, que chega em geral muito marcadamente em uma posição de aluno, efeito subjetivo produzido invariavelmente pela instituição da formação, vive um certo estranhamento inicial: inserido em um grupo de trabalho já em funcionamento, com terapeutas estagiários em momentos diferentes de seu estágio, defronta-se com um grupo de terapeutas, em geral bastante envolvidos com a tarefa de discutir a clínica que se pratica, colocando em análise permanente as próprias implicações. Mas como um psicanalista em formação pode discutir a clínica com um reichiano em formação, um psicodramatista, um gestaltista, ou qualquer outro profissional que não tenha a mesma orientação teórica? E aqui é onde a heterogênese pode operar sua potência de criação. Aqui é onde a opção da Clínica por uma direção política na qual a formação seja um dos efeitos das práticas clínico-institucionais faz toda a diferença. Diferença que desconstrói, pela experiência, qualquer perspectiva de formação que use a clínica como palco de aplicação de teorias.

 

No espaço-tempo vivo dos encontros que se produzem nas equipes, se efetiva a conhecida máxima deleuziana: "uma teoria é uma caixa de ferramentas"[5]. E por ser tomada como ferramenta é que se pode, nos embates clínicos, usá-la como Proust, citado por Deleuze[6], diz de seus livros: "tratem meus livros (minhas teorias) como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate".

 

E é justamente essa convocação que se produz nos encontros clínico-institucionais das equipes clínicas para cada terapeuta, em cada encontro singular com um outro que lhe demanda cuidado. A própria concepção dominante de conhecimento fica assim subvertida: nos encontros clínicos terapeuta-paciente, terapeutas-estagiários/terapeuta coordenador, opera-se um processo de transformação subjetiva onde todos estão inapelavelmente implicados, sendo um de seus efeitos a produção de conhecimento.

 

As relações de poder que fazem parte da instituição formação, onde historicamente a figura do professor é aquela que detém o saber e a figura do aluno é aquela de quem não sabe, acabam infantilizando os sujeitos em posição de aluno. Nas equipes clínicas, ao longo de dois anos de estágio - tempo mais adequado - o terapeuta, ao poder exercitar seu pensamento a partir dos embates clínico-institucionais, tem a possibilidade de sair de uma posição infantilizada e configurar para si outras posições subjetivas de maior autonomia.

 

E aqui novamente a importância da não separação entre gestão e atenção: nas equipes clínicas, existem funções diferenciadas, dissimétricas, entre coordenador e terapeutas-estagiários, mas o modo como o terapeuta-estagiário vai efetivamente conduzir os processos terapêuticos sob sua responsabilidade, ainda que debatidos em equipe, será, de fato, de sua responsabilidade.

 

O atravessamento desse vetor formação - com os quatro outros - o institucional, o grupal, os movimentos sociais, a equipe estável da Clínica - produz infinitas possibilidades de conexão, fazendo do processo de formação nas equipes uma aventura muitas vezes angustiante, porém alegre, uma aventura em conexão com os desafios do mundo contemporâneo, uma aventura acompanhada, já que coletiva.

 

Retomando a questão inicial, o que mudou? Talvez agora vocês tenham alguns elementos para poder respondê-la.


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