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Resumo
Resenha de Jassanan Amoroso Dias Pastore, O trágico: Schopenhauer e Freud, São Paulo, Primavera Editorial, 2015, 370 p.


Autor(es)
Rafael Rocha Daud Daud
é psicanalista, membro do Fórum do Campo LacanianO– sp, bacharel em Direito pela usp, mestre em Psicologia Social pela PUCSP.

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 LEITURA

O trágico como inconciliável contradição [O trágico: Schopenhauer e Freud]

The tragic as irreconcilable contradiction
Rafael Rocha Daud Daud

A tragédia grega parece nunca ter deixado de estar entre os temas mais relevantes para a compreensão do pensamento ocidental. A filosofia de Schopenhauer, em contrapartida, nunca foi canônica, incidindo sobre ela a espessa sombra do grande filósofo dos sistemas, Hegel. Neste livro da psicanalista Jassanan Amoroso Dias Pastore, aquelas duas potentes perspectivas são tomadas como o fiel para uma balança com que medir a psicanálise, que é, afinal, sua meta.

 

Não terá no entanto a psicanálise valido-se suficientemente do tema do trágico? Não está nosso destino entrelaçado com o do Rei Édipo desde que Freud colocou, no centro dos adoecimentos neuróticos, os impulsos transgressores do incesto e do parricídio como substrato comum do inconsciente humano? Será possível ainda dizer algo de relevante sobre este tema? E quanto a Schopenhauer, haverá algo que ainda não foi repisado a respeito de sua relação com a teoria freudiana?

 

Jassanan Pastore prova que sim, em ambos os casos, e mostra por quê.

 

Cabe notar, antes de tudo, que a filiação de Freud à filosofia schopenhaueriana tem sido grandemente despercebida. Anatol Rosenfeld, por exemplo, chega a dizer que Freud teria ‘recalcado' edipianamente a poderosa influência do seu pai espiritual" (p. 309), Schopenhauer. Entretanto, como a autora faz notar, são inúmeras as passagens na obra freudiana em que Schopenhauer comparece, ora como um personagem com quem Freud tende a se identificar, ora como aquele que antecipa, no campo da filosofia, as duas descobertas mais caras realizadas pela psicanálise: a existência do inconsciente e a importância da sexualidade para a psique humana. Conquanto Freud faça a ressalva de que o filósofo aborda esses temas senão in abtracto, tendo restado a ele próprio a responsabilidade de prová-los em sua clínica, nem por isso reconhece menos seu pioneirismo. O famoso chiste freudiano segundo o qual ele deva mais uma vez "a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida" (p. 315) poderia referir-se a vários dos conceitos que, conforme demonstra a autora, já se achavam sob a pena de Schopenhauer, embora refira-se especificamente à teoria do recalque, a qual Freud parece tardiamente encontrar, em perfeita paridade com seu próprio conceito, na obra máxima de Schopen­hauer, O mundo como vontade e representação

 

Terá Rosenfeld ignorado essa referência, como tantas outras, para formular seu julgamento sobre o recalque de Freud? Certo é que, em caso positivo, não terá sido o único. Poucos autores têm atentado para essa filiação, embora ela salte como autoevidente depois que a autora nos guia através das várias passagens em que a figura de Schopenhauer é convocada no texto freudiano. Até mesmo Nietzsche é mais frequentemente lembrado como antecipador das teorias freudianas, muito embora sua própria filosofia finque raízes na obra de Schopenhauer. Sendo assim, poderíamos arriscar o palpite inverso ao de Rosenfeld: terá sido talvez não o recalque de Freud a ocultar sua filiação à filosofia de Schopenhauer, mas a própria psicanálise, sofrendo de um recalque ao modo obsessivo, preservando o fato histórico mas não sua significação, que tem ignorado a importância dessa filosofia para o ofício psicanalítico mesmo, importância que o próprio Freud nunca negou? Será então o resgate desse significado o breve e certeiro resultado que o livro de Jassanan Pastore alcança.

 

Parece ser este o arrazoado por trás da escolha da autora em aproximar Schopenhauer e Freud não tanto por aquilo que já em Freud se revela, mas pelo tema do trágico. Ao fazer isso, não apenas se nos apresenta um parentesco entre os dois autores, mas principalmente um viés pelo qual a obra de ambos deve ser encarada, sob um matiz determinado que esse parentesco tem o condão de revelar.

 

Não é indiferente que se diga de Schopenhauer que era um filósofo pessimista ou trágico. De fato, é o seu pessimismo, o seu pendor para o ascetismo, sua negação da vida, em última instância, que o faz ser recusado por Nietzsche. Da mesma forma, não é por esse viés que é retomado por Freud, que, separando as pulsões psíquicas entre pulsões de vida, sexuais ou conservadoras do eu, e pulsões de morte e destruição, ao contrário do Schopenhauer pessimista, para quem há somente uma pulsão, a Vontade, da qual o mundo e a diversidade são tão somente a representação, faz permitir que se possa escolher uma vida que não seja inteiramente sofrimento, como acreditava o filósofo, fazendo com que assim outros tratamentos do mal-estar possam existir, que não o ascetismo. O Schopenhauer que Freud retoma, portanto, como revela Jassanan Pastore, é o Schopenhauer trágico.

 

É por essa razão que a autora dedica ainda mais páginas de seu livro do que a Schopenhauer ele mesmo, àquilo que nele fulgura, ou seja, o trágico. E o faz da melhor maneira possível, retomando, na arte e na filosofia grega, assim como na filosofia romana, com Lucrécio, precisamente esse elemento. Assim, ao tomar ainda mais uma vez a tragédia grega para exame do que se trata na investigação psicanalítica, o que a autora faz não é um exercício meramente revisionista, o que poderia ser o caso, considerando que o livro de que se trata é resultado de sua extensa pesquisa de mestrado, defendida em 2013. Em vez disso, a cuidadosa atenção despendida para com a tragédia grega e suas origens visa fazer ressaltar não o mito, não o caráter helênico, não o berço da cultura ocidental, mas o trágico. E assim o faz porque, como nota Vernant, citado pela autora, "não existe trágico na sociedade ateniense, existe trágico na tragédia" (p. 72).

 

A dificuldade que aí então enfrentamos é que o trágico não parece admitir definição, conforme atestam os diversos autores. O que a autora promove, consequentemente, e para isso serve-se dos vários posicionamentos entre os helenistas, é uma aproximação ao trágico, que nos dá enfim seu caráter e potência, e aí encontra o que deve ser-nos mais caro aos psicanalistas, de que é preciso não nos apartar e estar sempre à escuta em nossa clínica: se há algo que consiste no sentido do trágico, tal é a ambiguidade, a coexistência de sentimentos opostos, tais como a "inocência e culpabilidade, lucidez e cegueira, impureza e purificação, possessão e cura, loucura e saúde, etc.". O crime duplo de Édipo, personagem de Sófocles, lança-o diante dessa ambiguidade: "ao mesmo tempo em que é culpado, o herói trágico é inocente, visto não ter consciência de que matara o pai e desposara a própria mãe" (p. 94). Essa é a tonalidade de seu destino: passar "de um estado de felicidade para um estado de infortúnio". O trágico desse destino é o próprio movimento que o conduz na direção de saber quem ele é, filho e assassino de Laio, o que indica uma condição contraditória, inconciliável em si mesma. O trágico desse saber não se dá, portanto, meramente no nível do que se descobre, do que se vem a conhecer, mas na "tomada de consciência radicalmente problemática do homem - o homem como alguém que não pode ser definido, que não possui uma essência" (p. 83).

 

O livro de Jassanan Pastore vem assim como surpresa, não por sua autora, já que possui uma coerente trajetória como psicanalista e investigadora inquieta, mas pela novamente e sempre necessária advertência que nos faz contra a acomodação de sentidos com que, desavisados, tendemos a ordenar o caos de nossa existência, dentro e fora da clínica.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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