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Resumo
Resenha de Mara Selaibe e Andréa Carvalho (orgs.), Psicanálise entrevista, vol. 2, São Paulo, Estação Liberdade, 2015, 354 p.


Autor(es)
Maria Lucia Homem
é psicanalista, com pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie, e pela FFLCHUSP. É professora nas áreas de Psicanálise, Cinema e Comunicação da FAAP e da PUC. Participou com capítulos nos livros Leitores e leituras de Clarice Lispector (Hedra, 2004) e Estranhas Travessias (Edifieo, 2004), entre outros.

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 LEITURA

Psicanálise viva [Psicanálise entrevista, vol. 2]

Living Psychoanalysis
Maria Lucia Homem

Resenha de Mara Selaibe e Andréa Carvalho (orgs.), Psicanálise entrevista, vol. 2,
São Paulo, Estação Liberdade, 2015, 354 p.

 

"Tudo o que podemos fazer frente a essa inescapável derrota chamada vida é tentar compreendê-la". Bauman colhe essa pérola de Cervantes, no Dom Quixote e, assim como vários outros entrevistados, explicita a matéria última de nosso trabalho: o debruçar incessante sobre o enigma da vida. A psicanálise está aí para isso, e, como nos mostra este livro, se confirma hoje como uma das mais potentes ferramentas modernas para dar conta do impossível da tarefa.

Psicanálise entrevista é uma obra de fôlego, em vários sentidos. Estamos diante de 750 páginas que percorrem de forma visceral os últimos 70 anos de história da psicanálise - que, pelo seu próprio estatuto, não tem como não esbarrar em outros campos das ciências humanas, como filosofia, antropologia, teoria social e da cultura. Foram sons tocados pouco a pouco ao longo de 25 anos de existência da Revista Percurso, que agora se congregam em uma sinfonia, na mais que bem-vinda iniciativa de reunir essas tonalidades em espaço único, dividido em dois volumes. Como sabemos desde a publicação do volume 1, em 2014, percorremos 36 entrevistas de 32 vozes autorais - quatro das quais reaparecem no volume 2 em outros momentos de sua produção. Ou seja, estamos diante de uma complexa rede de testemunhos vivos de metade do tempo de vida da ainda jovem psicanálise, com seus 120 anos.

E fôlego também no sentido de um sopro de novos ares sobre um campo em contínua construção. O quadro que se desenha diante de nós revela uma surpresa: esta jovem já está numa posição de maturidade. Madura para fazer e poder ler uma história, para atuar e escutar diferenças, operar a crítica, a si e ao mundo, para fazer proposições e discutir métodos. Revela-se mais viva que nunca, e com grandes chances de sobreviver diante das turbulências do futuro.

Como? Fazendo o que tem feito até aqui e que esta soma de relatos não deixa dúvidas: trabalhando. O inconsciente trabalha - afinal, é trabalhador incansável. E lá vamos nós atrás dele (quase sempre depois, après-coup), buscando colher as brasas e esboçar desenhos, interpretações, composições. E falamos, deciframos, escrevemos, criamos. Todos os personagens do livro são trabalhadores sérios. Incluem-se aí, dignos de nota, o acurado trabalho dos entrevistadores, dos editores do vasto material colhido, as organizadoras dos volumes e os autores dos panorâmicos prefácio e posfácio. Só temos a agradecer a oportunidade de saborear esse fruto lapidado.

Antes de entrar nas falas propriamente ditas, uma última observação. A textura do livro é delicada: beira sempre, salvo raras exceções, a costura entre uma história de vida e um percurso intelectual, formando assim um oscilante amálgama entre o pessoal e o conceitual. Leitura, portanto, além de rica, sempre saborosa. Não há momento de tédio na obra - embora longa e densa, é sempre instigante.

Neste volume 2, assim como no primeiro, alguns campos são inevitavelmente percorridos. Vou recortar essa multiplicidade e organizá-la a partir de quatro entradas: a prática, chamada clínica; a política, dentro e fora do campo analítico; a cultura, o contemporâneo, a sociedade; a ciência e o embate epistemológico aí em jogo.

A prática analítica

A partir de uma obra densa e plural como a freudiana, não haveria como não se delinear vários fios e por vezes conflitantes tramas conceituais que irão debater ao longo do tempo. A natureza do psíquico, a formação do sujeito, o mapa metapsicológico, os direcionamentos técnicos, enfim, o ordenamento formal e a prática que aí dialetiza estarão continuamente em discussão. Psicanálise entrevista nos dá um panorama amplo dessas vozes em conversação. Teoria, prática, escolas desdobram-se.

Diferente dos primórdios, a prática analítica se faz hoje dentro e fora dos consultórios, perpassando as instituições de saúde, saúde mental, educação, acolhimento social. Clínica, não esqueçamos, vem do grego klinein, inclinar-se em direção a. Poder inclinar-se e escutar um outro humano, que carrega seu sofrimento e pede ajuda para elaborar uma pergunta. Esse o cerne de nossa prática. A "escuta de viés analítico" parece estar em toda a parte. E a psicanálise, afinal, não deixa de ser "a mãe de todas as terapias centradas na fala". Como diz Hornstein, deveríamos dizer não à rigidez técnica e sim ao rigor teórico.

Vários dos entrevistados foram afinando os termos conceituais a fim de dar conta de sua prática e, em última instância, interrogar-se sobre sua finalidade e seu fim. Laplanche, ao mesmo tempo profundamente influenciado por Lacan e um de seus grandes críticos, reitera a ideia de um inconsciente sexual e do objeto da psicanálise, que "trata do sexual". Nesse sentido, propõe uma distinção de dois movimentos centrais, a implantação da mensagem - "o enigmático enquanto comprometido pelo sexual" - e sua tradução.

Rassial dirá que a prática analítica visa ao "destacamento do sinthoma" - sinthoma como o fio que sustenta o conjunto - a fim de "perdê-lo de vista". E ele aponta um problema crucial: "muitas vezes tornar-se analista é uma tentativa de preservar o sinthoma", justamente não deixá-lo ir e não viver "a depressão necessária ao fim da análise". Também Chnaiderman explicita o alvo da clínica: propiciar "processos de semiotização, de circulação de sentidos, de cadeias de sentido onde seja possível fluir, criar, inventar e produzir caminhos inusitados". Enfim, os analistas não deixam de interrogar seus fazeres, tendo sempre como pano de fundo uma pergunta sobre o como e o para onde seguir.

A política e a psique

Um outro aspecto recorrente nestas entrevistas é a política, tanto no que tange à política interna das associações entre os pares, quanto às relações da psicanálise com as diversas instâncias do jogo social, como a universidade, os conselhos, as escolas, a medicina, as lógicas assistenciais, as mídias, o Estado. Aqui temos um ponto delicado, talvez desde sempre. As relações com a pólis e com o outro, tão semelhante e ao mesmo tempo tão dessemelhante, nunca foram harmônicas.

Discutem-se as variadas formas - divergentes na estrutura - de se operar a lenta e intrincada formação dos psicanalistas,assim como discute-se a transmissão do saber acumulado pela psicanálise tanto às outras gerações quanto à cultura de forma mais ampla, para além do universo psicanalítico. Transmitir ao outro: ato que pode transitar no fio da navalha entre poder e generosidade. Como diz Zygouris, o crucial da posição analítica tem a ver com "uma posição subjetiva específica, a única que permite não abusar de um saber conferido como um poder sobre o outro". Transmitir algo a alguém resvala em poder doar aquela centelha de fascínio daquilo que um dia nos encantou. Poder ofertar ao outro algo dos mistérios da lida com o inconsciente, com o sofrimento e com o humano. Seguindo a palavra de Mannoni, trata-se, no final das contas, de construir um lugar para viver. Um lugar a partir do qual viver, olhar e propor laços. A formação caminha pari passu com esse pêndulo da transmissão.

No entanto, temos um problema, e grande parte dos entrevistados reitera esse ponto. Com a psicanálise vendo seu território estreitado e perdendo claramente espaço para outros sistemas de pensamento - mais ou menos ideologizados, mais ou menos biologizantes - como não se perguntar sobre as práticas em jogo? Como não questionar as formas e políticas da transmissão? Como ressituar o tripé da formação hoje?

Os conflitos intestinos (adjetivo inescapável) entre as chamadas escolas focaram sobretudo os enquadramentos do setting analítico e a rigidez de um quadro que não poderia estar em nenhum lugar além da prática privada. No entanto, o próprio estreitamento do mercado para a psicanálise e a formação mais eclética e vasta das novas gerações têm, ao longo das últimas décadas, empurrado a práxis analítica para fora dessas fronteiras. Diversos entrevistados sustentam um discurso para além da ortodoxia. Ponto que Penot pinça para dizer que parte da crise da psicanálise atual deve-se justamente a uma repetição incessante, uma não renovação. Schneider critica claramente a "religiosidade" presente na psicanálise e convida a uma posição "entre-dois" do pensamento. Chaim formula um "imperativo ético" que vai nessa direção: desconfiar de si e de tudo permanentemente.

E em quais instâncias se realizam esses debates, com seus conflitos e alianças? Nos territórios políticos e institucionais possíveis, os mais variados. E a psicanálise não pode se furtar a eles, a ocupar esses espaços e a ofertar falas no grande debate. Como aponta Rassial, "mesmo havendo uma briga permanente com a psicologia cognitiva, penso que a universidade é um lugar muito importante em relação ao risco de medicalização da psicanálise".

Mas estamos longe de uma unanimidade em relação ao debate político em toda a sua magnitude. E aqui os psicanalistas cometem os maiores equívocos. Segundo Roudinesco, brigam entre si em vez de montar uma aliança e focar no inimigo externo - grosso modo, as neurociências e as práticas medicamentosas. A psicanálise vai perdendo terreno para essas práticas - de certa forma, a serem criticadas - e muito por se fechar em seu próprio pequeno narcisismo. Roudinesco propõe inclusive uma estratégia na guerra global: a Europa (que agora se amplia com os países centrais, aliás, berço da psicanálise) deveria se unir com a América Latina e combater tais ideologias, em última instância, de um biologicismo e puritanismo anglo-saxão que não têm relação direta com a matriz de sustentação psicanalítica.

A cultura semeada hoje

Os psicanalistas, sejam eles mais teóricos ou mais clínicos, trabalham com seres concretos envoltos em um caldo simbólico próprio de uma época e de um lugar. Ou seja, não há como não levar em conta o tempo e o espaço em que essa prática se dá, assim como as formações sociais e culturais que aí se apresentam.

Grande parte das entrevistas versa sobre leituras da sociedade contemporânea na qual vivemos nós e nossos analisantes. E que de certa forma nos produzem e produzem nossos sintomas. Uma sociedade normativa, padronizante, da instauração do controle e do mesmo, como diz Zygouris. Ou nas palavras de Rassial: o sujeito pós-moderno - aquele que se produz com a falência da modernidade cartesiana em xeque com a Shoá, o extermínio via racionalidade - é o sujeito em estado-limite. Vemos surgir os contornos de uma subjetividade diferente da moderna, cujo drama central é a "inconsistência do Outro". Para dar conta dessa inconsistência, Madre Cristina aponta um mandamento: "nunca dissociar a psicologia da política"; e mesmo um telos: "o mundo tem que sair do sistema capitalista e procurar um modelo de socialismo". Modelo em que não prioritariamente o objeto, o capital, regule os processos, mas em que os seres, os humanos forjem o pacto. Viés humanista de base que, como sabemos, esteve no cerne da formação dos cursos de Psicologia em São Paulo e na fundação do Sedes.

Bauman caminha nessa mesma direção, de questionamento radical da mercadoria. Faz uma crítica da "sociedade confessional" em que vivemos, na qual os limites entre público e privado tendem a um apagamento e, assim, ativam um maquinário social e psíquico que engendra vidas para consumo, envoltas em macroestruturas de mercantilização. O que está presente também na fala de Kehl: vivemos numa sociedade em que "o fetiche da mercadoria faz a lógica da vida social". Mecanismo que se amplia cada vez mais, uma vez que "o modo como essa convocação de consumo vai sendo feita é uma espécie de convite à perversão".

Além de formas específicas de trânsito pulsional e de gozo perverso, outras categorias metapsicológicas são convocadas. Por exemplo, Kupfer fala de um narcisismo instrumental, diferente do estádio do espelho, uma vez que estamos no âmbito de uma formação discursiva que se refere a "um narcisismo que não inclui o outro, não relacional".

E Bauman aponta, ainda, para um outro ponto chave que ele nomeia o triunfo de Thanatos: "já não mais restrito ao último momento para o qual a vida implacavelmente leva, ele agora conquista e coloniza toda a vida". Isso altera nossa clínica? Não há como imaginar que não.

As ciências

Um outro tópico que perpassa várias das conversações de Psicanálise entrevista é a discussão sobre seu estatuto enquanto sistema prático-teórico, assim como a relação com outras ciências. Nesse sentido, não há como não buscar definir um campo que contemple objeto, métodos, objetivos e funções.

 

No entanto, as dificuldades aqui são várias. Como definir o objeto que nos inquieta, nos move, nos instiga? Sobre o qual nos debruçamos sem cessar? Podemos nomeá-lo como o inconsciente? Sim. De forma mais etimológica, psique. Com toda a carga transcendental que ele carrega - a alma, os gregos. Sabendo disso, podemos responder sim. Subjetividade? Termo muito usado hoje. Sujeito que subverte algo da racionalidade moderna e é atravessado, e mesmo habitado, pelo inconsciente e pelas pulsões? Sim. Que se enlaçam com linguagens? Também.

Para além da questão do objeto, como toda discussão epistêmica, devemos ainda definir os termos da abordagem desse objeto, as metodologias. E aqui mais discussões e embates se delineiam. Como conhecer o psiquismo? E, num outro nível da práxis, como tratá-lo? Além de bordejar continuamente essas indagações, os entrevistados tecem novas formulações sobre a trama conceitual que sustenta o campo analítico. Como Bollas, que propõe a "pulsão de destino", com sua "urgência de se autoarticular" e mais, que a "implacabilidade é vital para a realização do idioma do self". Temos também a canadense-britânica Anne Alvarez, que, a partir de seu trabalho com crianças com problemas graves, propõe uma derivação metodológica clínica, que ela nomeia reclamation - o ato de, em determinados casos e situações, convocar o paciente, como se pudéssemos lançar uma seta a fim de fazer movimentar as águas estagnadas de determinados núcleos inconscientes que lutam para se manter fechados. Outra contribuição interessante é a proposta de Nasio que, na esteira de seu mestre Lacan, e no entanto diferenciando-se dele, advoga o conceito de forclusão local e a derivação de um "sujeito folhado". Poderíamos citar ainda a função fraterna nomeada por Kehl, o sujeito em estado-limite de Rassial, a transferência subjetal de Penot, o inconsciente fugaz e o ato lúcido de Menezes... Inúmeros são os deslocamentos conceituais, e por vezes criações, que vêm surgindo na seara analítica. Como em qualquer disciplina, seu saber é dinâmico.

O que nos faz retornar para o início da discusão. Do que, afinal, se ocupa um psicanalista? Essa a primeira e não menor dificuldade do campo psicanalítico, e talvez motivo principal de ele ser um campo particularmente complexo. Seu objeto é inefável. Mas, se não fosse, estaríamos talvez na esgrima de ciências ditas duras. Estamos no campo das ciências moles talvez? Uma ciência humana, sem dúvida, mantendo o rigor tanto do termo ciência quanto humano, para além dos paradigmas humanistas de origem renascentista, e aquém ou além das metodologias positivistas do século XIX, que aliás nortearam a fundação do campo psicanalítico, como sabemos e estudamos muito bem.

Estaríamos então na tiara de uma ciência humana social? Ciência social aplicada? De certa forma sim: estamos no domínio do humano e de um psiquismo que não tem como não se constituir no amparo e embate com o outro, isto é, pelos sócios. Alguns entrevistados enveredam por essa trilha. Tanto definindo-a pela negativa - a psicanálise não é "nem arte nem ciência", nem medicina nem religião - quanto situando-a como uma "ciência conjuntural" (Zygouris). De qualquer maneira, vários autores parecem estar em consonância com dois pontos essenciais: a necessidade de ir além da causalidade racional clássica e a construção de uma nova abordagem para a velha dicotomia corpo-alma - quer usemos subjetividade, espírito ou mente, quer priorizemos matrizes latinas, germânicas ou anglo-saxãs.

Enfim, seria legítimo perguntar, depois deste longo e riquíssimo percurso, como e quando a psicanálise poderia se autorizar a se constituir como uma ciência aplicada contingente e a se estabelecer com um corpus, um manancial teórico, metodológico e técnico relativamente autônomo, embora em diálogo transdisciplinar com campos afins. Para além de personalismos, ortodoxias e sacralizações, para além dos pais ou dos pares. Não precisamos adorar Copérnico, Kepler ou Newton, mas saber afinal se a terra gira ou não, e como, em volta do quê. Por quanto tempo e carregando que tipo de animais, talvez seja pedir demais para saber. Mas a psicanálise teria algo a dizer nessa fissura. Como marcado no início, ela ainda tem muita vida para viver.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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