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Resumo
Resenha de Giorgio Agamben, L’uso dei corpi. Homo Sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2014, 366p.


Autor(es)
Oswaldo Giacoia Junior Junior
é professor titular de filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor, dentre outras obras, de Nietzsche: o humano como memória e como promessa e de Heidegger urgente.


Notas

1.     As traduções são de minha autoria.


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 LEITURA

Por uma filosofia do abandono [L’uso dei corpi. Homo sacer]

Towards a philosophy of abandonment
Oswaldo Giacoia Junior Junior

Em O uso dos corpos, Agamben distende ao máximo e, em seguida, integra todos os fios da trama composta pelos oito volumes precedentes, vindos a lume ao longo de quase vinte anos de pesquisa, que deram corpo ao programa filosófico intitulado Homo Sacer, cujo aspecto ele tinha comparado certa vez a um canteiro de obras. Na integração reflexiva de conceitos-guia de seu projeto - tais como uso, exigência, modo, forma de vida, inoperosidade, potêntia destituinte -, torna-se claro que a estrutura da exceção (de ex-capere, capturar-fora, ex-cluir), que havia sido minuciosamente analisada a propósito da vida nua em sua relação com o poder soberano, apresenta-se agora, no final do percurso, como coextensiva ao inteiro âmbito estrutural da arché (princípio, origem, fundamento), tanto da tradição jurídico-política como da própria ontologia.

 

A vida, assim como o ser, diz-se de muitos modos: como vida vegetativa, vida sensitiva, vida intelectiva. E aquilo que vale para a equivocidade do Ser, no campo da ontologia, repete-se naqueles da política, da ética e da linguagem; em todos eles, a estratégia é sempre a mesma: a exclusão includente: "Alguma coisa é dividida, excluída, repelida para o fundo e, justamente através dessa exclusão, torna-se incluída como arché e fundamento. É possível, de resto, que o mecanismo da exceção seja constitutivamente conexo com o evento da linguagem, que coincide com a antropogênese. Advindo, a linguagem exclui e separa de si o não linguístico e, no mesmo gesto, o inclui e captura como aquilo com o que a linguagem está sempre em relação. A ex-ceptio, a exclusão inclusiva do real pelo logos e no logos, é, portanto, a estrutura originária do evento da linguagem" (p. 334).

 

O dispositivo ontológico, na filosofia primeira de Aristóteles, a saber a divisão e separação do Ser em substância primeira e substância segunda, substância e atributos, substância e modos, obedece ao mesmo mecanismo ‘arcaico': nessa divisão, uma parte é rechaçada, excluída, expelida para trás e impelida para o fundo, como origem, para depois ser rearticulada e incluída como fundamento da outra. A exclusão includente separa a essência de sua realização no existente, a vida de sua forma, e a mesma estrutura perdura sob sintagmas como essência primeira/essência segunda, quod est/quid est; anitas/quiditas; zoé/bios (vida nua/vida politicamente qualificada); ato/potência; essência/existência; substância/atributo e modo; sujeito/predicado; mundo/linguagem; vivente/falante. Decisivo é, em todos eles, que tanto o ser como a vida serão interrogados, ao longo da história da filosofia ocidental, nas e pelas cisões e participações que os escandem.

 

Desse modo, no plano da ontologia, opera a mesma cisão que incide no campo religioso da ex-ceptio, que separa e sacraliza a vida dos homini sacer, excluindo-a do direito divino e humano; essa divisão opositiva é estruturalmente análoga daquela que exclui da esfera da ética e da política a zoé, enquanto mera vida, já que naquela esfera tem significação apenas a vida jurídico-politicamente qualificada como bios. Em ambos os casos, uma das partes só se mantém por referência ineludível àquele fundo originário produzido pela separação. Da mesma forma, o indizível (o real) é banido para fora do campo da possibilidade de enunciação (logos), que, no entanto, só se institui por referência a esse indizível presente por exclusão.

 

Avulta no livro o conceito de uso, que Agamben contrapõe ao de propriedade, cuja ascendência na história política e cultural do Ocidente mal pode ser exagerada. Uso remete a uma relação performativa consigo mesmo, mediada pelas coisas - em última instância, com o mundo -, na e pela qual um sujeito se constitui como tal pelo processo de utilização, como quem se faz usuário/usufrutuário. O uso é a fruição da coisa, pela qual quem dela faz uso realiza sua potência operante na relação de fruição. Assim, por exemplo, ao fazer uso do martelo, quem martela atualiza a operação essencial própria do martelo (e que constitui tal utensílio como aquilo que ele é), ou seja, martelar; mas performa também sua própria potência de sujeito-martelante, ou seja, constitui a si mesmo como sujeito capaz de martelar.

 

Em termos de Agamben, fazer uso implica, portanto, realizar integralmente uma potência sempre presente tanto na coisa quanto no próprio sujeito, independentemente de sua efetivação pontual e concreta. O martelo permanece integralmente martelo independentemente de qualquer martelada, sua realidade não se constitui no hiato entre a potência e o ato (dynamis e energeia, possibilidade de ser e ser-em-ato), senão que é indistinguível de um hábito (héxis) - de um modo de ser, de um uso constante, permanente ou habitual, que é atualizado pelo sujeito que martela e que, ao fazer dele esse uso habitual, constitui-se a si mesmo, nessa relação com a coisa e com seu ‘logos prático', como um sujeito martelante. Tal sujeito (assim como o martelo) não é uma substância (uma res ou sujeito metafísico) preexistente ao ato, senão que se constitui (devém sujeito) nessa mesma relação, no processo pela qual se efetiva, ao modificar-se a si mesmo, ao realizar-se como uma forma de vida.

 

Potência habitual - a possibilidade permanente de fazer uso - é o correspondente prático da ontologia modal que atravessa de ponta a ponta, como um fio vermelho, todas as partes da obra. Por ela, uma ontologia dos modos vem contestar a hegemonia tradicionalmente conferida à ontologia substancial, modulando adverbialmente o léxico substantivo da filosofia primeira em sua forma tradicional; correlativamente, a categoria de uso vem derrogar o primado ontológico do dispositivo teológico-jurídico-político da propriedade, assim como a potência destituinte desativa o binômio poder constituinte/poder constituído, e a inoperosidade destitui de seu poder o privilégio ontológico da obra e do ser-em-ato. Obra que, até então, na qualidade de produto final, resultado e telos (fim), gozava de mais realidade e plenitude ôntica do que a potência, que somente na obra e no ato alcançava sua perfeição. O ponto de partida para tanto é proporcionado por uma retomada hermenêutica original do tratamento dado por Aristóteles à figura do escravo na antiguidade clássica. Firmemente ancorado na Política de Aristóteles (1254 b), Agamben leva às últimas consequências a definição do escravo como o ser cuja obra é o uso do corpo - portanto um homem cuja obra (ergon) e cuja função própria consiste no uso que faz do corpo.

 

Nos estudos sobre a escravidão no mundo antigo, historiadores, filósofos e juristas obstinaram-se num singular anacronismo: tomaram como referencial para compreender a escravidão o modelo da organização do trabalho, sem dar-se conta de que o campo conceitual dos antigos tinha um perfil inteiramente distinto do nosso, no interior do qual jamais se considera a atividade humana e seus produtos do ponto de vista do processo laboral e sua produtividade (por exemplo, segundo a quantidade de trabalho nele empregada), mas do ponto de vista das características próprias da obra produzida, razão pela qual pode-se dizer que a antiguidade desconhece um conceito de trabalho distinto da obra que produz. É justamente por causa disso que somos incapazes de outra reação senão a de estupor diante do fato histórico da escravidão e do que nos parece ser sua justificação filosófica nos textos clássicos.

 

Agamben se propõe a atuar na contracorrente dessa tendência: ele leva a efeito uma arqueologia da escravidão e da figura do escravo na antiguidade como o dispositivo cujo desmantelamento permite trazer à luz a captura, pelo direito, de uma figura do agir humano, que ainda não foi suficientemente experimentada, e que só pode sê-lo mediante a desativação da primazia conferida à propriedade e à produção. Explorando a ressonância entre os termos propriedade, direito e ação (actio), Agamben mostra que, em nossa tradição, foi sempre a esfera jurídico-religiosa que forneceu à política suas matrizes fundamentais. Uma das hipóteses de sua pesquisa, escreve Agamben, é justamente "recolocando em questão a centralidade da ação e do fazer para a política, aquela de tentar (provare) pensar o uso como categoria política fundamental" (p. 223).

 

Retomar o conceito de uso é também, par e passo, liberar o conceito de ação/agir para novos usos, desastivar o sequestro do mesmo pelo dispositivo jurídico-estatal da propriedade. É nesse sentido que podemos compreender como destruir e criar se identificam, e como reapropriar-se do ‘uso dos corpos' significa tornar inoperante sua sacralização (separação) em termos de propriedade, abrir espaço para a dimensão criativa de novos usos, pelos quais aquele que deles faz uso modifica a si mesmo, afeta a si mesmo, em certo sentido, constitui-se como sujeito nessa própria relação. Isso mostra que as virtualidades emancipatórias não são aquilo que há de se manifestar no final dos tempos, mas encontram-se soterradas entre os escombros deixados à margem pela marcha triunfal do progresso, e que só podem ser resgatadas, em sua ilatência, do ponto de vista da tradição dos oprimidos.

 

O livro marca também o abandono do projeto Homo Sacer, mas sob a condição de compreendermos abandonar como o único gesto consequente que se segue à plena realização de uma obra de poesia ou de pensamento. Com efeito, logo no exórdio, Agamben observa que tais obras não podem ser concluídas, mas somente abandonadas, e, eventualmente, continuadas por outros. "Ocorre, de fato, recolocar decididamente em questão o lugar comum segundo o qual constitui boa regra que uma pesquisa comece com uma pars destruens e se conclua com uma pars construens, e, além disso, que as duas partes sejam substancial e formalmente distintas. Em uma pesquisa filosófica, não somente a pars destruens não pode ser separada da pars construens, mas esta coincide em todos os pontos, sem resíduos, com a primeira. Uma teoria que, na medida do possível, tenha liberado o campo dos erros, com isso exauriu sua razão de ser, e não pode pretender subsistir enquanto separada da prática. A arché que a arqueologia traz à luz não é homogênea aos pressupostos que ela neutralizou: ela dá-se unicamente na perempção daqueles (nel loro cadere). A sua obra é a inoperosidade daqueles" (p. 10) [1].

 

Não estamos em face, portanto, nem de um início, nem de uma conclusão, nem construção nem destruição, nem teoria nem prática, mas daqueles limiares nos quais e pelos quais Agamben se obstina em transitar: nas soleiras de indistinção entre pretensas oposições absolutas, cinzentas zonas opacas, atopias paradoxais, sobretudo efeitos de indiscernibilidade entre conceitos fundamentais firmemente enraizados no tecido histórico da tradição, como ato e potência, produtor e produto, obra e operação. Assim como uma teoria que traz à luz, que desvela, o campo dos erros que se obstina em investigar, ao mesmo tempo que o exibe, também o libera para o uso reflexivo e crítico, e, com isso, torna-se prática, transfigurando-se; assim também a realização de uma obra transmuda-se tanto em sua completude como em seu abandono, em inoperosidade da obra - num exemplo performático daquilo que Agamben, ao longo de todo projeto, tematiza por meio do conceito de desativação, destituição.

 

Em O uso dos corpos, ao mesmo tempo que revisita as categorias nucleares dos livros anteriormente publicados, Agamben atualiza sua arqueogenealogia, para debruçar-se sobre temas como a técnica, as redes de comunicação, os artefatos tecnológicos, o estatuto ontológico e biopolítico das multidões, para detectar nesses fenômenos os efeitos persistentes de sua origem epocal, cujas raízes estão plantadas no dispositivo metafísico que a filosofia de Aristóteles legou para nossa tradição, marcando-a indelevelmente. Agamben mostra que é somente na extemporaneidade - isto é, no afastamento e na recusa de coincidir ponto por ponto com o seu tempo e com as demandas de sua época - que o pensamento torna-se efetivamente contemporâneo, a saber, afeta a si mesmo, de modo a tornar-se capaz de perceber e enunciar aquilo que o constitui essencialmente em seu próprio ser adventício. Nesse sentido, só pode ser contemporâneo o pensamento que apreende a atualização permanente da potência arcaica subjacente a ele, originária, e talvez esta definição de pensamento seja a justa e adequada explicação do significado do conceito problemático de uso habitual, uma das chaves para a compreensão do livro.

 

Já se afirmou que, no livro em questão, Agamben se distancia de alguns de seus principais companheiros de viagem nas incursões anteriores, como, por exemplo, Carl Schmitt e Michel Foucault, e mesmo Walter Benjamin, que comparece apenas discretamente em O uso dos corpos. A meu ver, não é o que ocorre no gesto teórico que nos oferece este livro. Tanto é assim que o conceito de exceção, no sentido de Schmitt, permanece um operador onipresente no texto, assim como permanece "substancialmente exata", segundo Agamben, a tese de Foucault de acordo com a qual a aposta em jogo é hoje a vida, e a política tornou-se, portanto, biopolítica. Quanto a Walter Benjamin, permanece indispensável para a compreensão do conceito (messiânico) de forma-de-vida a tese de Benjamin sobre a justiça como não referente à boa vontade de um sujeito, mas a um ser e existir, a um estado do mundo ou estado de Deus.

 

Vale notar igualmente que é só com O uso dos corpos que se explicitam integralmente algumas das operações teóricas mais decisivas do projeto Homo Sacer, como, por exemplo, aquele de uma deposição da centralidade da diferença ontológica, tal como a tematiza o pensamento de Heidegger, deposição que se perfaz ao reconduzir a diferença ontológica àquela que pode ser efetivamente pensada como a instância ainda mais originária e radical: a instância da diferença, no interior da linguagem, entre o indizível e o enunciado, o que não pode ser dito, e, no entanto, é o pressuposto de toda predicação, o inarticulável de todo discurso e inapropriável por ele, o abismo entre linguagem e mundo, língua e fala, que só ele torna possível algo assim como o acesso a linguagem, o vir-a-ser de um ente que tem a linguagem e que, por isso, torna-se animal político.

 

É sobre tal pano de fundo que adquire sentido a diferença entre Ser e ente, que para Heidegger é o limiar da ontologia fundamental. Por causa disso, para Agamben, o esforço de Heidegger para apreender o ser como tempo - na medida em que se mantinha em perfeita coerência com o dispositivo ontológico de Aristóteles - estava destinado ao fracasso; por causa disso também é somente nos termos da ontologia modal levada a efeito em O uso dos corpos que "um confronto com a ontologia heideggeriana torna-se possível. Se a diferença entre essência e existência torna-se em Ser e tempo o problema crucial, no sentido de que ‘a essência do Ser-O-Aí jaz em sua existência, os caracteres deste ente não são concebidos, todavia, segundo o modelo da ontologia tradicional, como ‘propriedade' ou acidentes de uma essência, ‘mas sempre e somente como possíveis modos de ser' "(p. 226). O Ser-O-Aí não é, para Agamben, uma essência indiferente às suas modificações, mas unicamente o modo de ser de um ente que coincide integralmente consigo mesmo.

 

O livro se compõe de três partes cuja unidade é assegurada por limiares, os Intermezzo I e II, excursos, que, como um paradoxo proposital, reconduzem sempre ao mesmo núcleo pulsante da reflexão: o dispositivo ontológico que divide o ser e a vida no interior de si próprios. A primeira parte é dedicada, portanto, a uma refinada e erudita liberação do acesso contemporâneo a uma retomada da filosofia primeira, que, para Agamben, só pode tomar a forma de uma arqueologia que abre e redefine o espaço do agir e do pensar, o âmbito daquilo que podemos fazer e dizer. Pressuposto, para tanto, é reconstituir uma arqueogenealogia da ontologia, ou melhor, do que Agamben denomina de dispositivo ontológico aristotélico que funcionou por dois milênios como o a priori histórico do Ocidente.

 

 A segunda parte aprofunda a arqueologia da ontologia: mostra como e por meio de quais operações e dispositivos teóricos a dicção originária do ser - isto é, a articulação entre ser e linguagem, pela qual o dizer do ser é essencialmente plurívoco - e se produz sobre a base de um afastamento e um abismo intransponível entre ser e ser-dito, entre substância primeira e sujeito da predicação; é a mesma divisão e articulação que é repetida na dicção originária da vida como unidade fracionada na oposição entre vida e vivente. Se o Ser se diz de múltiplas formas, para o vivente, ser é viver, razão pela qual a equivocidade do Ser é transposta para a Vida como igualmente equívoca.

 

A dicção do Ser e da Vida como relação, antes de tudo como relação predicativa entre substância e acidente, sujeito e predicado, causa e efeito, subsistência e inerência, principiou e mantém-se a partir do sem fundo de um irrelato pressuposto, que é condição de toda relação. Correspondentemente, a vida política - isto é, a vida qualificada pela forma - só pode instituir-se e manter-se, na história do Ocidente, a partir da exclusão e captura de um informe indiscernível: a vida nua - esta, por sua vez, é o efeito biopolítico da exclusão da vida natural da cidade e da política, de sua transformação de aposta em jogo nos cálculos e dispositivos do biopoder, mas que, por isso mesmo, é também o irrelato suporte de incidência da decisão soberana. É nesse contexto que encontram seu pleno desenvolvimento as teses de Agamben sobre a diferença entre sujeito e experiências de subjetivação ou devires-sujeito, que fazem pleno sentido no horizonte da tentativa de transvaloração do primado da substância na filosofia primeira em prol de uma ontologia da modalidade; um pensamento centrado fundamentalmente não no substantivo, mas no advérbio, no qual o modo exprime prima facie não ‘o que é', mas o ‘como é', e seu discurso funciona como elemento de desativação do dispositivo que separa a substância em primeira e segunda, em sujeito e predicado, essência e existência, para reuni-los numa unidade indiscernível e jamais ulteriormente separável entre ser em ato e potência; unidade na qual os modos são as formas de autoengendramento da substância, seu uso habitual de si mesma, que não coincide com nenhuma obra ou resultado final que dela possa ser separado como um opus, mas se identifica com a própria operação, com a persistência operativa da potência de operar, que não necessita mais ser pontualmente atuada, no sentido tradicional do ser-em-ato.

 

O Intermezzo II libera o acesso à plena explicitação do caminho traçado pelos volumes mais recentemente publicados do projeto Homo Sacer, cuja signatura pode ser firmada no conceito de forma-de-vida. Sobre o pressuposto de uma ontologia modal, Agamben coloca em questão a separação entre a vida e suas formas, que constituíra o ponto de partida da pesquisa, no livro O poder soberano e a vida nua (Homo Sacer I). Como se sabe, essencial aqui era a oposição entre vida nua e vida qualificada (zoé e bios), que constitui o limiar ontológico da biopolítica, tanto em sua origem quanto em sua forma atual: o estado de exceção permanente e a guerra civil legal. Na terceira parte de O uso dos corpos, a crítica da biopolítica e, com ela, a vertente messiânico-revolucionária do pensamento de Agamben tocam o extremo de sua exploração pensante da teologia política de Schmitt e Benjamin, mas também da genealogia foucaultiana da moral.

 

Agamben mostra aqui também que todo o percurso de Homo Sacer, até O uso dos corpos, constituiu uma imensa, metódica e paciente preparação para uma exegese absolutamente original do conceito de uso, herdado da tradição tanto paulina quanto franciscana. No enquadramento que é dado por Agamben ao conceito de uso, este não pode ser separado de uso habitual, assim como de forma de vida não se separa da inoperosidade - que desativa as categorias de propriedade, trabalho e produção, assim como abre o horizonte para um novo uso dos discursos e das obras de economia, direito, arte, religião e política. No mesmo compasso, a dialética entre poder constituinte e poder constituído, cuja alternância compulsoriamente repetida determina a captura do universo da política pelo Estado e pela forma direito (pelo contrato originário como matriz da inteligibilidade da política), é desativada pela ontologia modal, de modo que o constituinte deixa de ser absorvível e separado num poder constituído e passa a operar como uma potência destituinte, liberadora de novos usos para os corpos, as técnicas, as paisagens, os modos de vida.

 

"Propriamente moderno, nesse sentido", escreve Agamben, "não é tanto quem se contrapõe ao antigo quanto aquele que compreende que somente quando alguma coisa ‘fez seu tempo', ela torna-se verdadeiramente urgente e atual. Somente nesse ponto o ritmo do ser pode ser conhecido e apreendido (afferrato) como tal. Nós estamos hoje nessa extrema situação epocal, e, todavia, parece que os homens não chegam a tomar consciência e continuam a ser separados e divididos entre o velho e o novo, o passado e o presente. Arte, filosofia, religião, política fizeram o seu tempo, mas somente agora este aparece em sua plenitude, somente agora podemos alcançar uma nova vida" (p. 225).

 

É em relação a essa plenitude que Homo Sacer pode ser considerado como tendo feito o seu tempo, e portanto, ter-se realizado, a ponto de tornar-se inoperoso - isto é, de transmudar-se em sua própria prática, e, portanto, ter chegado ao ponto de poder ser abandonado pelo pensamento, com a condição de entender-se por pensamento uma forma de vida, ou melhor, uma experiência - experimentum - cujo objeto é a potência da vida e da inteligência humana, experimento orientado pela ideia de felicidade, somente possível politicamente, isto é, por meio da emancipação da ‘vida nua' de sua exclusão includente numa forma de vida dominada pelo Estado e seus aparelhos.

 

Repetindo a tese sobre o conceito de história, Agamben cita seletivamente Benjamin: "A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção em que vivemos' tornou-se a regra. Devemos chegar a um conceito de história que corresponda a este fato". A correspondência a ‘este fato' seria, portanto, aquele estado do mundo, que Benjamin considera inseparável do conceito de justiça, no qual é possível discernir messianicamente que ‘passam as coisas deste mundo': a vida nua, que era o fundamento oculto da soberania política, tornou-se agora, por toda parte, a forma de vida dominante.

 

A vida no estado de exceção tornou-se normal, é a vida nua que separa em todos os âmbitos as forma de vida de sua coesão numa forma de vida. À cisão marxiana entre o homem e o cidadão subpõe-se assim aquela entre a vida nua, portadora última e opaca da soberania, e as múltiplas formas de vida abstratamente recodificadas em identidades jurídico-sociais (o eleitor, o trabalhador dependente, o jornalista, o estudante, mas também o soropositivo, o travesti, a pornô-star, o ancião, os pais, a mulher), que, todas elas, repousam sob aquela (p. 267).

 

Se nós pensamos até hoje a política, nas pegadas de Aristóteles, como subsistente unicamente graças à divisão e à oposição entre vida e forma, entre vida nua e vida política, ou seja, mediante a separação da vida e de sua potência, cindindo a vida no interior de si mesma, trata-se agora, para Agamben, de pensar uma política das formas de vida, isto é, uma vida indivisível de sua forma, inseparável de sua potência. É isso que significa fazer uso dos corpos, desativar a arcaica divisão entre pensamento (alma, logos, linguagem) e corpo, mas também liberar o corpo - o corpo do mundo, o corpo político - para novos usos, isto é, fazer uso do que é absolutamente inapropriável em termos jurídicos, institucionais, estatais: o corpo próprio, a linguagem, a paisagem, como o lugar de nossa morada.

 

Agamben pode, portanto, abandonar Homo Sacer da única forma digna pela qual um pai pode abandonar seu filho, um pensador e poeta a sua obra: a-bandono, ou seja, liberação do bando, abolição do que fora banido, expulso e capturado sob a insígnia e sortilégio do poder soberano. Banida e bandida é a vida cuja morte não caracteriza homicídio nem sacrifício - essa figura do antigo direito romano e germânico, que nomeia, juntamente com o direito de vida e de morte, o programa filosófico de Agamben até agora, e sua arqueogenealogia do dispositivo ontológico e biopolítico do ocidente. Mas uma vez, e performaticamente, o início se entretece com o fim, o originário é potência operante, uso habitual, a política contemporânea é aquela a vir, desativação do natural, do necessário, do útil, estilística da existência, a vida como obra de arte, um fazer uso do inapropriável - em suma, relação ética, transformadora de si consigo mesmo, no exercício do pensar, no elemento da linguagem e da liberdade, destituição da dialética circular entre poder constituinte e poder constituído - uma potência destituinte.

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