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Resumo
Realização?Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Thiago Majolo e Vera Zimmermann


Autor(es)
Bárbara de Souza Conte Conte
é psicanalista; membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica; coordenadora do Projeto sig/Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia/Ministério da Justiça membro da Comissão de Direitos Humanos e do Coletivo ampliado do Conselho Federal de Psicologia.

Lilia Moritz Schwarcz Schwarcz
é professora titular no Departamento de Antropologia da usp e Global Scholar at Princeton University. É autora de vários livros como O espetáculo das raças, As barbas do imperador (prêmio Jabuti); O sol do Brasil (prêmio Jabuti); Brasil: uma biografia. Foi também curadora de uma série de exposições, dentre as quais: Um olhar sobre o Brasil e Histórias Mestiças. Atualmente é curadora adjunta do masp na área de histórias e narrativas.

Maria Lúcia da Silva Silva
é psicóloga, psicanalista, especializada em trabalhos em grupos com recorte de gênero e raça. É diretora-presidente do Instituto amma Psique e Negritude; Coordenadora Geral da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) e empreendedora social da Ashoka.

Noemi Moritz Kon
(Noni) é psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e autora de Freud e seu Duplo. Reflexões entre Psicanálise e Arte (Edusp/Fapesp, 1996), A Viagem: da Literatura à Psicanálise (Companhia das Letras, 2006), organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant (Companhia das Letras, 2009) e co-organizadora com Cristiane Curi Abud e Maria Lúcia da Silva de O racismo e no negro no Brasil: questões para a psicanálise (Perspectiva, 2017). Docente no curso "Conflito e Sintoma: Clínica Psicanalítica" do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



Notas

1.     S. Freud, (1915), De guerra y muerte. Temas de actualidad, Obras Completas, v. 14, Buenos Aires, Amorrortu.

2.     J. Derrida, Mal de Arquivo: Uma impressão freudiana, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.

3.     Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

4.     S. Freud (1929), El malestar en la cultura, Obras Completas, v. 21, Buenos Aires, Amorrortu.

5.     S. Freud (1932), Por qué la guerra, Obras Completas, v. 22, Buenos Aires, Amorrortu.

6.     N. Elias, O Processo Civilizador, v. 1, Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

7.     Matéria veiculada dia 13/08/2015 no site do Conselho Federal de Psicologia.

8.     G. Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, Rio de Janeiro, Editora 34, 2010.

9.     M.-R. Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the past: Power and the production of history, Boston, Beacon Press, 1995, p. 82.

10.   Vide www.slavevoyages.org.

11.   I. Carone; M.A.S. Bento (orgs.), Patologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil, Petrópolis, Vozes, 2002.

12.   A carne, Compositor: Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette.

13.   R. Mezan, Psicanálise, Judaísmo: ressonâncias, Rio de Janeiro, Imago, 1995, Série Psicologia Psicanalítica.

14.   Entrevista com J. Guinzburg, Linguagem e experiência na questão da representação, Revista Brasileira de Psicanálise, v. 47, n. 1, p. 17-26, 2013.

15.   Madame Satã (2002), filme de Karim Aïnouz.

16.   Vale a pena conhecer o manual produzido pelo IPEA (Instituto de Política Econômica Aplicada), Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>.

17.   Alguns ótimos textos, exceção ao que parece ser regra, como os de Neusa Santos Souza, Jurandir Freire Costa, foram disponibilizados no site do Departamento de Psicanálise, como Textos introdutórios, ao evento O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (2012), http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=07.08.63. Vale conhecer, ainda, a íntegra da tese de doutorado de Isildinha Nogueira Baptista, mencionada no texto de abertura dessa seção Debates, Significações do corpo negro (ipusp, 1988) acessível pelo link http://psicologiaecorpo.com.br/pdf/Isildinha%20Baptista%20Nogueira-Significacoes%20do%20Corpo%20Negro-1.pdf. São muitas as contribuições de Fúlvia Rosemberg; o portal Geledes disponibiliza uma bela entrevista com ela acessível em http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/cotas-para-negros/12853-fulvia-rosemberg-e-preciso-mais-negros-na-universidade-para-ampliar-seu-espaco-social

18.   M. Foucault, A ordem do discurso, São Paulo, Loyola, 1996, p. 10-11.

19.   S. Freud, O mal-estar na civilização (1929-1930), São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 60-61, Trad. Paulo César de Souza. ([...]quando então se pergunta: "o que farão os sovietes após liquidarem seus burgueses"?).

20.   Nunca é demais relembrar Marilena Chauí em "O discurso competente": "[...] O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram pré-determinados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência". M. Chauí, O discurso competente, in: Cultura e democracia, o discurso competente e outras falas, São Paulo, Moderna, 1981, p. 7.

21.   M. Selaibe; A.  Carvalho (orgs.), Psicanálise entrevista, São Paulo, Estação Liberdade, 2014.

22.   Muito instigante o artigo de Enrique Carpintero, "El discurso racista de invisibilización de los afroargentinos", no qual apresenta o processo que procurou tornar invisíveis negros e indígenas na história oficial Argentina. In: E. Carpintero, Revista Topia, n. 74, ago. 2015, disponível em: .


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 DEBATE

Racismo, este estranho familiar

Racism, this uncanny thing
Bárbara de Souza Conte Conte
Lilia Moritz Schwarcz Schwarcz
Maria Lúcia da Silva Silva
Noemi Moritz Kon

Se o fenômeno de "estranhamento", constitutivo do psiquismo humano, pode produzir uma sensação de alívio ao psicanalista que trabalha com patologias dos primórdios do psiquismo por balizar um resultado de movimentação psíquica em direção à saúde mental, também pode causar-lhe repúdio se deslocar seu olhar para certos movimentos sociais que transformam o mesmo fenômeno em exclusão ao outro semelhante.

 

Dentre as várias manifestações deste fenômeno que pode ser uma das vias de se entender o preconceito, estaria o racismo, que em nossa cultura brasileira assume facetas particulares e mostra que o latente existente no "homem cordial" pode surpreender os desavisados que fazem a leitura apenas do conteúdo manifesto. Sérgio Buarque, que tomou o termo emprestado do escritor Ribeiro Couto para definir uma característica típica do povo brasileiro, mostra que essa cordialidade tem a ver com "coração", não com bondade ou tampouco com polidez, fingimento ou hipocrisia. Tal "ética de fundo emotivo" nos levaria a traduzir o mundo a partir dos laços primordiais vividos no convívio familiar sem sermos atravessados pelas instituições, pelos rituais ou pelas tradições sociais. Ou seja, a esfera dos "contratos primários", dos laços de sangue e de coração que permeiam a vida doméstica forneceria o modelo de qualquer composição social entre nós.

 

Historicamente, veremos que a experiência da escravidão no Brasil é responsável por várias facetas da cultura e da sociedade brasileira e, mesmo após seu término oficial, suas marcas persistem de forma profunda. Na arquitetura social contemporânea, a divisão entre "área de serviço" e "área social" insiste simbolicamente na separação entre a casa grande e a senzala. Podemos encontrar na língua palavras e expressões como "denegrir", "a coisa está preta" e "passado negro", que atestam como as atitudes racistas estão incorporadas às estruturas sociais mesmo que inconscientemente. Negros são abordados pela polícia em número muito maior do que os brancos e já são considerados suspeitos a priori, não só pela polícia, mas pelo resto da população em geral.

 

No livro Brasil: Uma biografia, Lilia Schwartz e Heloisa Sterling mostram como aqui convivem duas realidades diversas: de um lado um país profundamente mestiçado em suas crenças e costumes, de outro o local de um racismo invisível e de uma hierarquia arraigada na intimidade. Um silêncio que ajuda a desmobilizar a sociedade e "naturalizar" as desigualdades. Se no cotidiano brasileiro paira o silenciamento das diferenças e discriminações, sobre a nossa história é possível detectar uma tentativa de branqueamento da população, positivada pelos próprios negros. Neusa dos Santos, ao entrevistar pessoas negras para a sua dissertação de mestrado, compilou inúmeros relatos de pessoas cujas famílias aconselhavam o casamento com pessoas brancas a fim de "branquear" e "melhorar" a raça. O velamento da discriminação esconde sua violência e contribui para negativar a identidade do negro. Resta-lhe ansiar ideais brancos que produzem identificações de um Ideal de Ego branco, incompatível com seu corpo, que passa a ser um perseguidor (Costa, 1984).

 

Em sua tese de doutorado, Isildinha Batista Nogueira (1998) vai além ao afirmar que a experiência de discriminação se manifesta para a criança negra muito antes de esta sofrer qualquer experiência social de discriminação. A criança negra viveria uma particularidade ao reconhecer-se durante o estádio do espelho, pois, simultaneamente ao fascínio que a experiência produz, haveria uma repulsa à imagem por não coincidir com o desejo da mãe, atravessado que está pelo ideal de brancura. Nogueira apoia sua tese na teorização do psicanalista Sami-Ali, para quem o horror que a criança manifesta diante do rosto estranho faz parte da experiência da alteridade, quando a criança se dá conta de que há outros rostos, diferentes do rosto da mãe, o que abre a possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, um rosto estranho. É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si, garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe, se vê afetada pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no estranho.

 

Um "estranhamento" que se perpetua nas relações entre domésticas e patrões no âmbito de muitas famílias brasileiras, unidos e separados pelos laços cordiais, que abarcam sentimentos ambíguos de forma indistinta e de difícil formalização ou contenção. Tensão belamente retratada no recém-lançado filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert.

 

A seção Debates da Revista Percurso convida alguns interlocutores a enriquecer o debate sobre esse tema.

 

bárbara de souza conte

A violência e a memória serão o eixo de minha contribuição a este debate. Violência descrita por Freud em duas teses sobre a guerra, a de que os impulsos primitivos, selvagens e malignos da humanidade não desaparecem no indivíduo, mas permanecem no inconsciente; e ao afirmar que nosso intelecto é débil e dependente, joguete e instrumento de nossas inclinações pulsionais e afetos, e que todos nos vemos forçados a atuar inteligente ou tontamente segundo o que nos ordenam nossas atitudes emocionais e resistências internas. (Carta de Freud ao Dr. Frederik van Eeden [médico patologista e literato] em 28 de dezembro de 1914)[1]

 

Fica marcada assim a ligação da pulsão de morte com a guerra pelo caminho da destrutividade, inerente ao homem. Jacques Derrida (2001) denomina a pulsão de morte como mal de arquivo, como a pulsão destruidora dos próprios arquivos. Situo nesse cruzamento o ponto a debater: a memória como contrapartida do mal de arquivo, da destrutividade. O arquivo teria lugar na falta originária e estrutural da chamada memória: "não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade"[2]. Consignar evoca necessariamente ao outro como aquele com quem se estabelece algo, a quem se confia, a quem se consagra algo e se recomenda[3].Não há arquivo sem exterior que assegure a possibilidade de memorização, da reprodução da compulsão de repetição. Por isso a força da pulsão estaria sempre a serviço da vida e da morte, da memória e do mal de arquivo.

 

A memória pode ser pensada emduas concepções: uma histórica, dos acontecimentos, e outra arqueológica, inconsciente, desde onde se produzem as cenas imaginárias da experiência. A memória consciente dos fatos não coincide com a memória inconsciente do vivido, o que nos faz pensar com Freud[4] que "nada do que se produziu alguma vez desaparece", ou seja, o inconsciente produz incessantemente. Mas, para que a compulsão de repetição se torne memória, história, ela precisa da exterioridade, da alteridade do outro que proporciona o suporte ao desamparo, o olhar constitutivo e o interdito imposto pela lei que vale para todos.

 

Repetições na trajetória do homem para se distanciar da barbárie, do ato soberano de matar, que liga a guerra com a morte e ressalta a necessária condição de admitir a finitude. Volto a insistir, vale para todos.

 

Freud irá afirmar sua posição às vésperas de outra guerra, em 1932 em correspondência com Einstein sobre (Porquê a Guerra)[5] em que acrescenta ensinamentos a respeito da destrutividade inerente ao homem: "não se trata de eliminar a inclinação dos homens para agredir; pode-se tentar desviá-la o bastante para que não deva encontrar sua expressão na guerra" (p. 195). Neste texto abre outras vias para a contenção da destrutividade humana, através dos "vínculos que se tem com um objeto de amor, ainda que sem metas sexuais e as identificações". Os vínculos de amor que permitem que Eros predomine sobre Tânatos requerem renúncia das pulsões destrutivas por amor ao outro e transposição de metas sexuais em não sexuais na sublimação.

 

Mas o processo civilizatório deve fazer frente; tem vigência frente à vida, exige que a lei se imponha a fim de barrar e controlar a agressão do homem frente a si e ao outro. Por seu lado a lei é também um ato de violência, ao impor uma obrigatória suspensão da ação, que só é admitida quando há renúncia, delegação de poder, amor, identificação e sublimação.

 

Nesse sentido a transformação da barbárie em civilização exige a aceitação da própria morte e a renúncia ao incesto e ao ato de matar. A cultura cumpre, dessa forma, a necessária transformação das formas de prazer. Coincido neste ponto com Norbert Elias[6], sociólogo alemão do século XX, quando distingue civilização e cultura, apontando que a primeira refere-se "à sociedade ocidental naquilo que constitui o caráter especial e de orgulho: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica" (p. 23) marcando um movimento incessante "para frente", enquanto a cultura "expressa a individualidade de um povo, a identidade de um grupo, suas fronteiras" (p. 24). Cultura delimita, dá ênfase às diferenças nacionais e à identidade particular de grupos em uma incessante constituição de suas fronteiras.

 

A cultura de um povo, de um país, coloca o olhar na memória de sua história, na busca de conhecê-la e discuti-la à luz dos efeitos do vivido. Visa alargar os horizontes ao se debruçar sobre a constituição em suas diferenças. Não à toa, esse é o tema de nosso tempo: como lidar com o estrangeiro que adentra os limites das fronteiras.

 

Nessa perspectiva indagamos a respeito de como pensar a destrutividade de nossos dias sem abrir os arquivos que elucidam a origem de nossa cultura. Como a violência contra os negros, o genocídio dos índios e o terror de estado permanecem desconhecidos e causam efeitos para nosso povo? Como aqueles que promovem a tortura e desaparecimentos forçados não são responsabilizados e permanecem impunes? Como um país desconhece sua história e sua memória?

 

Ao não tomar conhecimento da história de outro tempo, o sujeito deixa de reconhecer como os estados de exceção e de excessos se repetem na vida atual. Cala-se a história em sua necessária temporalidade. Surge o terror e o medo. Terror de Estado que se reproduz na violência de Estado em um Estado democrático de direito. História oficial que encobre o conhecimento da história vivida que se tornou calada nas escolas duas gerações interferindo na arqueologia da memória. Há pessoas que afirmam que vivemos em uma ditadura!!! Desconhecem ou não querem saber de outra versão da história. Não é à toa que a sessão de cinema de um final de semana de outubro do filme Orestes, de Rodrigo Siqueira, em Porto Alegre, tinha apenas duas pessoas. Um filme que trata de maneira original e contundente a conexão entre a violência da ditadura e a violência de hoje, a partir da trilogia grega de Ésquilo, que em Oréstia aborda a questão da justiça frente a um crime cometido.

 

Como não fazer a ligação do crescente número de assassinatos de jovens negros no Brasil e a violência frente ao racismo e à pobreza? De acordo com o Mapa da Violência de 2014, 56 mil pessoas foram assassinadas em 2012, sendo 30 mil jovens entre 15 e 29 anos e destes 77% jovens negros. O mesmo relatório aponta também a relação entre o número de mortos e o despreparo dos agentes policiais nas abordagens realizadas[7].

 

A história é subjetiva e coletiva e supõe que o reconhecimento do próprio sujeito traz em si a alteridade que o coloca frente ao outro em si. Quando a alteridade/exterioridade não se retranscreve, há um não sabido, um não dito. O efeito é traumático, e não dá lugar à transformação da compulsão de repetição. A destrutividade se impõe. A lei não opera como força de renúncia.

 

Georges Didi- Hubermann[8], filósofo francês, ao falar do jogo do carretel freudiano, diz que "a criança vê, no estupor da espera do fundo da ausência que a racha ao meio, algo a olha. Uma imagem. Fica exposta a um olhar transformador. Um objeto agido sobre ele, ritmicamente agido. O vai e vem de algo perdido e de algo que resta" (p. 79). Imagem de que algo é perdido e de que algo resta. Resta como inassimilável e como marca, resta como traço do outro em mim que faz laço indissolúvel com a exterioridade, com o social, com a cultura. Como desmentir essa imagem que coloca todos os sujeitos ligados a outros sujeitos e submetidos à mesma lei? Como desmentir que há uma assimetria a ser superada através de renúncias pulsionais e de transformação dos ideais, ilusão do ser único e imortal? O desmentido de nosso tempo continua sendo a não aceitação da diferença, sob a forma de "incapacidade do indivíduo em renunciar ao egoísmo e à vantagem pessoal em troca da prioridade do bem comum" (Freud, 1929). Aí se inscreve o racismo, como uma das formas de intolerância ao diferente. Daí advêm a violência de estado e as lutas diárias por políticas de não repetição.

 

lilia moritz schwarcz

Último país a abolir a escravidão mercantil no Ocidente, o Brasil recebeu 40% das populações africanas que saíram compulsoriamente da África, rumo às Américas, gerando a maior diáspora humana conhecida desde Roma. O Brasil também financiou o mais persistente, longo e enraizado sistema escravocrata, uma vez que não existia local do território que não contasse com mão de obra cativa. E, de tão disseminada, a instituição deixou de ser privilégio de grandes senhores. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, comerciantes, pequenos lavradores e até libertos possuíam escravos. Por essas e por outras é que a escravidão foi mais que um sistema econômico: foi uma linguagem que moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia estrita.

 

Mas não há como apenas jogar a culpa no passado. É sempre boa ideia anotar como o presente anda lotado de passado. O Brasil é ainda campeão em desigualdade social e pratica um racismo silencioso, adscrito ao outro, mas igualmente perverso. Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres e sobretudo as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior pública, ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. Raça e teorias raciais são conceitos implementados após o final do sistema escravocrata, mas ainda funcionam como um "plus", diante dos dados que apontam um modelo geral de gaps sociais, e elevados.

 

Também subsiste uma consciência culpada acerca do passado e que leva a um profundo silêncio sobre a questão. No Hino da República, criado um ano e meio após a abolição - em 1891 - os brasileiros cantam orgulhosos (e talvez sem notar): "nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país". A escravidão mal acabara e já ninguém "acreditava" que ela havia existido? Sabemos que história, como mostra Walter Benjamin, é operação de lembrar, mas também de esquecer, e esse, durante muito tempo, foi quase um "não tema" no país. Outro exemplo: em pesquisa nacional feita pela Universidade de São Paulo, no ano do centenário da abolição da escravidão, em 1988, quando perguntados se tinham preconceito, 97% dos respondentes disseram que não. Já quando indagados se conheciam quem tivesse preconceito, 99% alegou que sim, e, além do mais, apontou para amigos e parentes próximos. Por isso mesmo a conclusão informal da pesquisa era que "todo brasileiro se sentia uma ilha de democracia racial cercado de racistas por todos os lados". O problema é jogado para o "outro", e assim se liquidam culpas e ambivalências.

 

É certo que desde os anos 1980, com o recrudescimento do movimento negro, das políticas de ações afirmativas e do avanço das investigações sobre o tema da escravidão e das teorias raciais, anda mais difícil negar o preconceito. Porém, ainda hoje no país, e para usarmos os termos do historiador Trouillot, impera uma espécie de "indizível", quando o tema retoma o passado escravocrata e práticas de racismo presentes atualmente. Essas interrogações continuam a dialogar com o conceito de impensável definido por Michel Trouillot, em sua análise sobre o silêncio que paira acerca da revolução no Haiti. Segundo ele: "O impensável é aquilo que alguém não consegue conceber entre a gama de alternativas possíveis, aquilo que perverte todas as respostas porque desafia os termos nos quais as questões foram feitas"[9]. Pois bem, brasileiros não têm lidado bem com "essas suas questões", e por isso tratam do tema no presente ora como ausência, ora como uma questão "naturalizada" e, sendo assim, resolvida. Em censo étnico realizado na USP, muitas respostas vinham com o enunciado "não tenho esse problema". Ora, quem anuncia "não ter" é justamente aquele que o tem e se nega a vocalizar a contradição. Portanto, interessa reter como continuamos a produzir, e ressignificar no presente, estruturas que vêm do passado.

 

Marca forte e renitente, a herança e a atualidade da escravidão no Brasil condicionam também a cultura, com o país se definindo a partir de uma linguagem complexa pautada em cores sociais. Nos classificamos em tons e meio tons e até hoje sabemos que quem enriquece, quase sempre, embranquece, sendo o contrário também verdadeiro. Se a fronteira de cor é de fato porosa entre nós, e brasileiros não se reconhecem por critérios biológicos estritos; se no país a inclusão cultural é uma realidade e se expressa em tantas manifestações que singularizam o país - a capoeira, o candomblé, o samba, o futebol -; se nossa música e nossa cultura são mestiças em sua origem e particularidade, não há como esquecer também dos tantos processos de exclusão social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes a ganhos estruturais no lazer, no emprego, na infraestrutura, nas taxas de nascimento, no afastamento sistemático de populações negras de clubes, teatros e restaurantes de elite (onde nem ao menos o garçom é negro) ou mesmo nas intimidações e "batidas" cotidianas da polícia, mestre na discriminação desse tipo de "régua de cor".

 

Cor no Brasil é linguagem, mas também reiteração do passado e certeza presente de hierarquia interna. Por aqui é possível "manipular e agenciar cores", assim como se muda de bairro. Até pouco tempo casar com alguém mais branco, melhorar de vida, ter um título superior ou subir na hierarquia de poder era sinônimo de "embranquecimento". É verdade, também, que essa situação vem sendo alterada, mas não a realidade de como se negociam cores a depender da situação em que se encontram os indivíduos: no trabalho, no lazer, diante da polícia. Na favela de Heliópolis, por exemplo, há um jogo de futebol que ocorre todo final de ano que se chama "Pretos x Brancos". A novidade do jogo, entretanto, é a maneira fluida como seus componentes trocam de time: ora jogam para o preto, ora para o branco a depender dessas variantes que acima apontávamos.

 

Até o censo nacional é classificado por cor. Brasileiros podem ser brancos, pretos, amarelos, até pouco tempo vermelhos (hoje, classificados como indígenas). Mas o critério mais revelador é o quinto termo: pardo. Difícil achar quem defina essa cor de forma definitiva. Por isso mesmo, pardo vira uma espécie de coringa do censo, um sonoro etc., um incômodo "nenhuma das anteriores". Pardo pode ser também categoria de acusação - ninguém se define como tal -, além de representar um escandaloso silêncio, ou a vontade de não dizer com todas as letras.

 

Ressonâncias também estão presentes na arquitetura brasileira que ainda guarda "instituições" como o elevador de serviço, com sua entrada separada (e sabemos que eles servem para a entrada de cargas, mas também para os "serviçais", em sua imensa maioria negros ou morenos), e o "quarto de empregada": em geral apartado da estrutura social da morada, e apenas conectado à cozinha e às áreas de serviço. Como se vê, paira no Brasil, ainda, um claro preconceito contra o trabalho - sobretudo manual - e todo tipo de "serviço", numa reiteração sonora dos tempos da escravidão. Não se passa impune por um sistema que supunha, como dizia o Padre Antonil, que os escravos "eram as mãos e os pés do Brasil". Por isso, talvez a maior "lembrança ativa" da força da sociedade escravocrata entre nós seja a violência. Padrões vindos do passado e recondicionados no presente fazem do Brasil um país marcado por uma sociabilidade violenta e hierarquizada, que vai desde os ambientes privados e íntimos, até nossa maneira de desrespeitar o espaço público, aos nossos elevados índices de criminalidade e taxas de mortalidade por crime e assassinato.

 

Claro está que não existem bons racismos; todos são igualmente perversos e carregados por todo tipo de sofrimento. Essas omissões e processos de humilhação coletivos representam grandes doses de constrangimentos, consolidados no país. Tudo funciona como se existissem lugares sociais rígidos, posições jamais questionadas pelo tempo e pela história. Essas são, justamente, as naturalizações que a sociedade prepara ou como a sociedade trapaceia com a natureza. A bastardia jurídica que grassou durante os tempos da escravidão - quando um liberto poderia ser facilmente reconduzido ao cativeiro por falta de "serventia", "por deslealdade" a seu antigo senhor ou ausência de documentos comprobatórios - encontra ainda conivência emocional, com o país lutando para entrar na linguagem dos direitos civis, e fazer valer o direito à diferença; à diferença na igualdade.

 

Assim, de tanto misturar cores, nomes, religiões e costumes, fizemos da mestiçagem uma espécie de representação nacional, por muito tempo consensual. De um lado, a mistura se consolidou a partir de práticas violentas, da entrada forçada de povos, culturas e experiências. Dados atuais apontam para a chegada de 3.800.000 africanos[10], que aportaram no território para trabalhar nas colônias agrícolas do continente americano, sob regime de escravidão. Hoje, com 60% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso país africano, depois da Nigéria. De outro lado, porém, é forçoso reconhecer como essa mesma mescla gerou uma sociedade definida por ­uniões, ritmos, artes, esportes, aromas, culinárias e literaturas mistas. Nossos vários rostos, nossas diferenciadas feições, nossas muitas maneiras de pensar e sentir o país são prova dessa mescla profunda que criou novas culturas, porque híbridas de tantas experiências.

 

Esse é um país, portanto, que mistura de forma perversa inclusão cultural com exclusão social e que, a cada momento, mostra uma dessas faces, as quais, no limite, são basicamente a mesma. Diversidade expressa quiçá uma das grandes realidades desse país, totalmente marcado e condicionado pela separação, mas também da mistura que resulta desse processo longo de mestiçagem e de uma experiência profunda, dolorosa e persistente diante do sistema escravocrata. Se o país vai se afirmando no jogo da democracia - com as instituições fortalecidas, eleições realizadas nas urnas - ainda estamos apanhando nos valores republicanos; aqueles que lidam com o que é público e de todo. Desigualdade social é herança do passado, mas é também desafio do presente e de todos nós.

 

maria lúcia da silva

Nenhum valor é neutro, pois espelha as convicções e as crenças de um sistema particular - é uma significação já estabelecida. Não basta, assim, afirmar a evidência da multiplicidade humana. A percepção da diversidade vai além do mero registro da variedade das aparências, pois o olhar, ao mesmo tempo em que percebe, atribui um valor e, claro, determinada orientação de conduta. (Sodré, 1999)

 

Sodré nos mobiliza a reconhecer que todo encontro com o outro, diferente de mim, é atravessado por valor condicionado e conduta orientada. O lugar objetivo e subjetivo que cada pessoa ocupa em dada sociedade é determinante no estabelecimento das relações. As nossas crenças definem o olhar e as mútuas atitudes.

 

As representações que temos dos diferentes grupos sociais e que amparam o nosso comportamento estão baseadas em informações nem sempre acessíveis ou passíveis de serem decodificadas pelo senso comum, porém presentes em nossas sensações, sentimentos e impressões.

 

Vejamos a força da ideologia do branqueamento, magistralmente analisada por Carone (2002), um mecanismo forjado nos períodos pré e pós-abolicionistas para atender às necessidades, aos anseios, preocupações e medos das elites brancas, e que na atualidade ganha outra conotação - "é aos negros que se atribui o desejo de branquear ou de alcançar os privilégios da branquitude por inveja, imitação e falta de identidade étnica positiva" [11].

 

No momento em que a ideologia do branqueamento torna-se inviável e também não serve mais aos interesses de seus fundadores, torna-se uma patologia peculiar dos negros. Uma questão das elites do século XIX e início do XX passou a ser interpretada ideologicamente como um problema dos negros - como o desejo de branquear.

 

Signos, representações, possibilidades de leituras e compreensão, nem sempre essa conta fecha, mas os negros sabem o que significa ser "a carne mais barata do mercado"[12]. A música fala de um corpo inferiorizado, subalternizado, e expropriado das suas produções objetivas e subjetivas e de suas reinvenções cotidianas para se manter humano.

 

A construção da subjetividade tem como pano de fundo as condições e processos históricos sobre os quais se desenvolve a história pessoal e coletiva de um sujeito e de seu grupo de pertença; estrutura sob a qual repousa a base de acolhimento ou não do sujeito em seu processo de desenvolvimento. Nesse sentido, compreender de que forma o racismo, incrustado na cultura como elemento estruturador das relações na sociedade brasileira, incide sobre a vida psíquica do sujeito poderá balizar ações na direção de sua desconstrução.

 

Três pontos são importantes para essa reflexão. Primeiro, a transmissão de um padrão de humanidade assentado em valores e ideais caucasianos, ou, mais precisamente, de brasileiros(as) brancos(as), e a incorporação, pelos negros, de atributos negativos, ligados a uma condição de inferioridade.

 

O segundo refere-se às interdições no processo de identificação dos negros com seus pares e com sua história, produzindo desenraizamento e eliminando o sentimento de pertencimento racial, podendo levar a uma condição de solidão e isolamento profundos.

 

O terceiro, um tema pouco discutido, a desumanização do sujeito negro materializada pelo constante processo de usurpação de seus bens materiais e imateriais, inicialmente dos negros africanos, e seguidamente dos negros em toda diáspora.

 

O narcisismo, enquanto representação unificada de si mesmo, para o sujeito implica a apreensão de sua imagem corporal. Para Freud:

 

O eu é, antes de tudo, um eu corporal; não é tão só um ser de superfície, mas é, em si mesmo, a projeção de uma superfície. [...]

 

Pode ser considerado a projeção mental de uma superfície corporal. (O eu e o isso, 1923)

 

Assim, vale reafirmar que é no corpo, é nessa "projeção mental de uma superfície corporal" que o racismo incide. Trata-se de um corpo marcado pela sua história e que o "outro" sem nenhum respeito ou pudor se sente no direito de vilipendiar, de violar e de julgar negativamente. Um corpo que incita o outro a atacá-lo está exposto ao aniquilamento.

 

Mezan (1995) afirma que:

 

Para muitos negros, o fato de ser negro é vivido com muita dificuldade, já que foram introjetadas imagens negativas, produzidas pelos brancos, acerca do que "é" ser negro. Torna-se muito difícil conviver com um corpo tido como feio, um cabelo por definição "ruim", os lábios denominados como beiços, etc. Para que o trauma da discriminação possa ser assimilado, acomodações psíquicas devem ser feitas para que a vida se torne ao menos suportável[13].

 

Jaime Ginzburg fala da necessidade de investigação sobre a grande dificuldade do Brasil em lidar com seu passado, com sua memória coletiva, com as representações ou a falta delas. E também

 

[...] do que aconteceu de pior no passado do país que cria impactos de fantasmagoria: são imagens do horror do passado que reaparecem como se fossem parte do presente, criando um efeito perturbador[14].

 

Esse efeito perturbador, fantasmático, se materializa no corpo negro, constantemente assaltado por uma realidade ameaçadora. O povo negro amedrontado, desgastado, chega ao limite de sua capacidade para suportar a pressão cotidiana que o expulsa continuamente da comunidade humana, colocando-o no lugar do despossuído.

 

Como entender os processos psíquicos vividos pelos negros considerando-se as intensas cargas pulsionais presentes no seu dia a dia?

 

Como acompanhar, do ponto de vista econômico, o destino de tamanha excitação?

 

Faz pensar muito a que(m) serve a perdurável recusa da nação brasileira a olhar para o seu passado escravocrata, marcado por sistemática violação e coisificação de corpos negros. Mesmo pós-escravização mantém-se até hoje todos os estereótipos e preconceitos criados no passado para legitimar a dominação de um grupo sobre outro, fazendo crer que negro é preguiçoso, pouco confiável, afeito à subalternidade e ao trabalho pesado, inferior intelectualmente e que não encontra o seu lugar porque não se esforça, não tem vontade própria e nem merecimento.

 

Desse passado escravocrata, o ônus fica ao povo negro, mantendo a população não negra omissa e isenta de qualquer responsabilidade, desfrutando de privilégios simbólicos e materiais, do fortalecimento dos laços da branquitude e do monopólio dos lugares sociais de poder.

 

A nossa ação tem rumo certo: a reparação psicossocial. E é isso que sustenta e revigora a nossa energia. Energia que demanda passagem, movimento e voz: Basta de adoecimento e sofrimento psíquicos causados pelo racismo!

 

noemi moritz kon

Por uma psicanálise brasileira

- Todo mundo pode entrar. Por que eu não posso?

- Porque você não é todo mundo.

Diálogo em Madame Satã[15]

 

O sistema escravocrata, pilar da economia colonial, que sequestrou e trouxe ao Brasil mais de 5,5 milhões de africanos, fundou e estruturou, desde nossa origem e em seus mais de trezentos anos de vigência, um estado de violência e exploração, que deixou marcas profundas em todos nós brasileiros, mas que recai discriminatoriamente sobre os mais de 70 milhões de cidadãos negros e pardos (que de acordo com o atual senso demográfico conformam 45% da população brasileira, a maior fora da África, o segundo maior contingente de afrodescendentes do mundo, número só inferior ao da Nigéria), estabelecendo uma condição inescapável e inaceitável de desigualdade e subjugação que arma nosso cotidiano público e doméstico e que é evidenciada, de maneira inequívoca, em todos os indicadores sociais: saúde, longevidade, salário, emprego, distribuição de renda, educação, moradia, segurança, justiça e direitos civis[16].

 

Apesar dos esforços das políticas governamentais e não governamentais implementadas desde a promulgação da Constituição de 1988 - apoiados nos resultados de inúmeras pesquisas históricas, sociológicas, políticas e econômicas que geraram as chamadas ações afirmativas -, ainda estamos longe, muito longe de alcançar a tão propalada democracia racial, mito fundador da sociedade brasileira.

 

* * *

 

Mas, e nós, psicanalistas brasileiros, o que teríamos a ver com tudo isso? Como poderíamos participar das reflexões e ações que se contrapõem à desigualdade e ao preconceito no país?

 

O tema da discriminação histórica oriunda de práticas econômicas e políticas (leia-se escravidão, semiescravidão, contratos precários de trabalho, trabalho informal) que até hoje configuram nossas relações, de mando e servidão, privilégios e prejuízos, oportunidades e segregação, riqueza e miséria e que dão a feição tão particular a nosso país - que transparece cinicamente na chamada cordialidade brasileira, ou ainda melhor, no "jeitinho brasileiro" -, não perpassariam também nossas convicções e práticas?

 

Ao prepararmos o evento "O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise", em 2012, no Departamento de Psicanálise, pudemos verificar, e lastimar, a escassa produção realizada por psicanalistas sobre esses dois temas tão brasileiros: desigualdade social e discriminação racial[17]. Aparentemente, tais questões não ocupam um lugar prioritário em nossa agenda de interesses [daí a importância dessa seção de Debates da Revista Percurso]. Quais seriam os motivos para tal? Estaríamos nós também submetidos aos mesmos processos que buscam tornar invisíveis homens e grupos sociais em nossa sociedade, como se estes não merecessem nossa atenção, como se conformassem uma classe secundária, a nosso serviço, e compartilharíamos, portanto, ainda que inconscientemente, de um ato de negação e, por conseguinte, de reiteração e aprofundamento da discriminação e de suas consequências, a suspeita e a humilhação, evidenciando uma vez mais o profundo mal-estar que regula nossas relações intersubjetivas, nos colocando bem aquém da civilização que supostamente desejaríamos construir?

 

Sabemos que a capacidade de discriminar é habilidade inata aos animais. Para o bebê humano, em seu desamparo, tal potência de vital importância só pode se desenvolver no âmbito da linguagem e, portanto, da alteridade. São elas que viabilizam ao infans distinguir as sensações e, assim, dar determinação ao caos profuso da experiência em que deparam o disperso sensível, nosso aparelho perceptivo e nossas forças pulsionais. Só mergulhados na linguagem, e ditos por ela através da presença de um outro cuidador, é que somos capazes de vivenciar aromas, sabores, toques, sons, formas e cores, impressões, que são o fundamento sensível do universo humano, universo que é ao mesmo tempo particular e compartilhado.

 

Da mesma maneira, é ainda essa potência para a discriminação que capacita cada um de nós a discernir - apoiando-se sempre no amparo oferecido por aqueles que nos recebem - e assim, também, diferenciar especificidades na diversidade de vivências afetivas de prazer/desprazer que nos atravessam constitutivamente: tenho fome, tenho sede, tenho frio, tenho dor, tenho sono, tenho desejo de presença, tenho medo.

 

É, portanto, a linguagem, sustentada na presença indispensável do outro, que configura e dá valor ao informe da experiência perceptiva e afetiva.

 

Mas, sabemos, também, que essa mesma linguagem que nos faculta a capacidade de distinguir e nomear percepções e afetos não o faz de forma neutra; enreda a experiência da imediatez dos sentidos e a organiza na ordem do discurso, na ordem do poder. Como na canção Comida, dos Titãs: "Bebida é água/ comida é pasto/ você tem sede de quê?/ você tem fome de quê?".

 

Como constituintes de nossas capacidades inatas e funcionais de estabelecer determinações e distinções na diversidade da experiência, a linguagem e a alteridade instituem uma pensabilidade, ou seja, um princípio de funcionamento mental que incide sobre tais habilidades e define, por sua vez, e desde sempre, nosso modo de querer e nosso modo de pensar, delimitando também o campo do que deve ser (ou não) pensado e do que deve ser (ou não) desejado. Temos sede e fome daquele objeto que foi estabelecido culturalmente, civilizatoriamente, como sendo o que deveria nos saciar; temos desprezo, aversão e ódio àquilo ou àquele que foi estabelecido culturalmente, civilizatoriamente, como sendo o que deveríamos evitar, diminuir ou exterminar. Esta é a brecha pela qual se insinua insidiosamente o preconceito - e no caso brasileiro o racismo antinegro -, entre a capacidade inata e necessária de discriminar e o estabelecimento no e pelo discurso de valores e ideologias que formatam nosso desejo e, por conseguinte, seus objetos de satisfação ou de repúdio.

 

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; [...] a história não cessa de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo[18].

 

Freud, em O mal-estar na civilização, expõe a dificuldade dos homens para renunciar à satisfação de seus impulsos agressivos e eróticos, enfatizando a artimanha adotada naquilo que ele irá descrever como "narcisismo das pequenas diferenças", pelo qual "sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade"[19].

 

Quem seriam, no Brasil, essas outras pessoas que estariam inclusas em nosso agrupamento cultural apenas para receber a carga de ódio que se necessita exteriorizar? Quem seriam, no Brasil, essas pessoas a quem é recusado ativamente o amor grupal?

 

Ora, a democracia racial brasileira, discurso instituído[20], hipócrita, dissimulado e enganador, é proferido por um Nós que exclui e segrega a maior parte de seus cidadãos. Confortavelmente instalados no interior da proteção da célula narcísica, nós (esse nós que sustenta, ainda que sem o saber, o discurso do poder) não somos mais capazes de discriminar o disparate que sustenta nosso pensar e agir, e nos aferramos, para escorar nossa passividade, nossa omissão, à suposta universalidade neutra e apolítica da ciência, nesse desconhecer mortífero, silencioso e lacunar que o discurso competente instaura e autoriza, e, assim, colaboramos, não para uma transformação, mas, bem ao contrário, para a manutenção desse estado de coisas.

 

Marcelo N. Viñar, por ocasião do lançamento do segundo volume de Psicanálise entrevista[21], republicação das entrevistas da Revista Percurso, ressaltou o valor daquele material para tornar evidente a existência de uma psicanálise latino-americana[22]. Penso que é mais do que hora de avançarmos em direção a uma psicanálise brasileira, que teria o dever de desenterrar, de tirar de sob os escombros do recalque, as marcas instituintes de nossa nação, facultando a narrativa das agruras específicas dessa nossa história sempre atual, abrindo espaço para a reflexão e metabolização das dores infligidas reiteradamente pela colonização e escravidão de nosso povo. Uma ação como essa, que deveria atravessar o cotidiano da clínica psicanalítica (pois não é mais admissível nem a ingenuidade, nem, tampouco, a indiferença), é digna e dignifica a psicanálise, essa disciplina tão sui generis, que postula, como bem maior, a ética do desejo, que, sob a Lei, enfrenta a tirania com a justiça e estabelece o valor de se levar sempre em conta o desejo do outro.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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