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Resumo
Este trabalho visa dar visibilidade a um tipo de ser humano, que se apresenta ao mundo como diferente. Dá destaque àquele, dito deficiente, entendido como portador de déficit intelectual. Com frequência, ausentes da literatura psicológica e marginalizados socialmente apresentam-se como inexistentes. Essa reflexão nutre-se da experiência clínica psicanalítica, dos relatos dos pais de crianças, nascidas ou tornadas deficientes no nascimento, e denuncia um tipo de preconceito.


Palavras-chave
visibilidade; deficiente; diferença; resiliência.


Autor(es)
Paulina Ghertman Ghertman
é psicóloga, psicanalista, membro do Espaço Potencial Winnicott, membro efetivo do Departamento de Psicanálise e membro efetivo do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae.

Silvia Lobo Lobo
é socióloga, psicóloga, psicanalista, membro do Espaço Potencial Winnicott, membro efetivo do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise sp.


Referências bibliográficas

Artaud A. (1948). Pour en finir avec le jugement de Dieu. Paris: K éditeur.

Bordieu P. (2005). Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras.

Cyrulnik B. (2005). O murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Martins Fontes.

Deleuze G. (2011). Crítica e clínica. Trad. Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34.

____. (2011). A lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva.

Foucault M. (2013). O corpo utópico, as heterotopias. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições.

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Freyre G. (2000). Novo mundo nos Trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks.

Winnicott D. Obras escolhidas.





Abstract
This work aims to put on the spotlight a certain type of human being, which is presented to the world as different. It highlights, the one called deficient, understood as having an intellectual deficit. Absent from the psychological literature and socially marginalized, they are often presented as non-existent. This reflection is nourished by the psychoanalytic clinical experience and by reports of parents that have children born or turned disabled during birth and denounces a type of discrimination.


Keywords
visibility; deficient; difference; resilience.

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 TEXTO

O filho diferente: uma humanidade não reconhecida

The different child: an unrecognized humanity
Paulina Ghertman Ghertman
Silvia Lobo Lobo

Que sonhos sonhar para um filho diferente?
Que sonhos sonhar com um filho diferente?

 

Este trabalho traz uma questão contemporânea: a invisibilidade. Tem o propósito de dar destaque a um tipo de ser humano, diferente, dito especial ou também deficiente, que vem sendo mantido em uma espécie de neblina na literatura psicológica, como se não existisse; como se nele não houvesse uma mente, uma subjetividade a ser contemplada. Arremessado aos cuidados médicos, passa a ser descrito sem reconhecimento emocional e desinvestido em sua capacidade de desenvolvimento. E essa omissão não é a única. Lastimavelmente, pois vem no bojo de um fenômeno bastante disseminado que diz respeito ao rechaço da diferença na convivência humana. O horror, o ódio ao estranho, como nos assinalava Freud.

Dessa perspectiva, este trabalho não é sobre o deficiente, ainda que se fale dele. Este trabalho não trata da exceção, ainda que na superfície assim pareça. Este trabalho se refere ao preconceito em relação à diferença, em numerosas formas humanas em que pode se apresentar. Pretende chamar a atenção para um tipo de defesa psicológica usada tanto por quem pratica a discriminação como por quem a sofre e que se expressa no fenômeno da invisibilidade: não ver e não ser visto faz parte tanto da experiência daquele que discrimina como daquele que se sente discriminado. Ambos se utilizam do recurso de se tornarem ou tornarem o outro inexistente.

Tornar-se visível, nomeado pela cultura como existente, atende a algo sagrado, vitalmente buscado na convivência social. O desejo de ser reconhecido pelo outro é inseparável do humano, pois é somente através desse tipo de reconhecimento que o homem pode se constituir como pessoa. O reconhecimento da própria pessoa foi por milênios a posse mais zelosa, a mais significativa; e a existência de outros seres humanos importa e é necessária, antes de tudo, porque podem reconhecer.

Nessa reflexão há a intenção de fazer o reconhecimento emocional de crianças e seus pais, que desde muito pequenas defrontam-se com preconceitos que interferem negativamente nos tratamentos e nas oportunidades de vida. Sobreviver em uma condição ora de inexistência, ora de arbítrio e rechaço impõe resiliência àqueles que conseguem enfrentá-la. A constatação da existência desse tipo especial de humanidade se dá através da observação clínica psicanalítica e encontra ilustração nos relatos das experiências dos pais de crianças com sequelas do nascimento ou as tendo sofrido muito precocemente na vida. A observação dessas famílias torna possível afirmar que a resiliência se faz possível em função do afeto que as manteve unidas, da capacidade de darem sentido emocional ao que foi sendo vivido e do acompanhamento psicanalítico.

Esse trabalho traz uma denúncia e fala de sonhos possíveis de serem sonhados.

Uma história

Era Natal. Fora uma gestação como tantas outras e semelhante àquela que Paula vivera havia dois anos, quando nascera o primeiro filho. Os sinais do início do trabalho de parto se fizeram notar no tempo esperado e com alegria e ansiedade ela confiante entregou-se à experiência do parto, sem nenhuma suspeita de que uma armadilha se preparava: o obstetra substituto, não escolhido e inapto, decide utilizar-se de um fórceps e em seu manuseio se distrai, se irresponsabiliza e mutila irremediavelmente um bebê que nasceria são e capaz. E, a partir desse momento, o diagnóstico médico condenava Sergio a uma vida vegetativa e de curta duração.

Ao lado desse primeiro erro, em sequência assustadora, outros erros se somaram que exigiram de Paula e Walter, como pais, coragem e determinação para enfrentá-los, revertê-los e, no decorrer do tempo, impedi-los. Deles se exigiu, também, sagacidade para detectar incompetência e desistência de alguns especialistas que procuraram, e nesse processo adquiriram conhecimentos e habilidades que os ajudaram a mobilizar recursos e capacidades insuspeitadas na tentativa de limitar a mutilação física e existencial que sobre o bebê se abatera. Passaram-se 46 anos.

Os pais

Para uma mulher, gestar um bebê implica uma dupla gestação. De um lado, um embrião é contido no corpo da mãe e irrigado de cuidados e alimentos necessários a sua transformação em um ser com condições de nascimento. De outro, na medida em que no decorrer dos meses o bebê de uma promessa torna-se um fato, a gestação reverbera no imaginário materno e suscita desejos, expectativas, imagens e planos. Promove sonhos, alguns docemente encantados, outros terroríficos.

Pensar a maternidade exige considerar duas relações indissociáveis: a da mãe com seu bebê e a da mãe consigo mesma. Para uma mulher, a experiência de deparar com a própria gravidez pode marcar um momento existencial no qual o medo e o alívio encontram-se de forma inusitada. Ao olhar seu bebê, a mãe o vê e se vê; verifica a integridade de seu mundo subjetivo, certifica-se da qualidade dos objetos internos, mas também se aproxima das fantasias de punição pela rivalidade, inveja e sedução vividas nas relações primeiras e busca os indícios de castigo do que foi por ela sentido e transgredido secretamente. Por isso, ao olhar seu bebê, a mãe se encanta e teme.

O que dizer, então, daquelas que, ao darem à luz seus bebês, não podem tê-los de imediato nos braços e ao lhes serem devolvidos os percebem diferentes e os recebem marcados com o estigma de deficientes, especiais ou prejudicados para a vida de um ou outro modo?

Mulheres para as quais o nascimento de seus bebês surge como um acidente, trágico em suas consequências reais e repercussões simbólicas, na medida em que emocionalmente confirma a fantasia da impossibilidade da restauração dos danos edípicos infantis. A apreensão que cerca toda gravidez, do que pode não dar certo, se efetiva e permanece como perigo iminente, apesar de já ter acontecido. Medo sempre atualizado a cada vez que algo crítico no que diz respeito à saúde do filho acontece, vivência inesgotável do colapso do nascimento, da ruptura dos inícios somada ao perigo real das reincidências. E de novo, de novo, sem descanso a ameaça de morte se apresenta.

Por essa razão, para algumas mulheres a experiência da maternidade afigura-se pesada demais para ser vivida com prazer, imersas em ocupações reais de cuidados com seus bebês, sem os quais a sobrevivência é posta em risco. Somado a isso, responsáveis pela tarefa vital de reconfiguração dos planos que as tinham alimentado durante toda a gestação. O presente se impõe. O futuro... desaparece.

As mães sobre as quais falamos, frequentemente, ficaram a reboque, cabendo aos pais, eventualmente, erguerem-se em luta, dentro e fora de si, com mais presteza, ainda que também com dor. A força com que se apresentam nesse momento, talvez, se nutra do fato de que homens não são levados a pensar desde pequenos em serem pais; não são estimulados por meio de bonecas e das brincadeiras de casinha - que ainda predominam - a pensarem no casamento e na família como um destino. Sonham com carros, aviões, guerras, combates, guitarras, heróis e só muito mais tardiamente, com as heroínas, identificados com os personagens das mesmas histórias encantadas que embalam príncipes e princesas.

Assim a seu tempo, homens também sonham com o nascimento de seus filhos, consolidam-se e reconfiguram-se como humanos por meio dessa experiência, mas sua subjetividade não está à prova.

Ser pai vem com a prova da potência, da capacidade masculina de ser capaz e fértil. Homens orgulham-se do tamanho de sua prole, como testemunho de virilidade e da cumplicidade amorosa de mulheres que a eles se entregaram. Contudo, a experiência de paternidade também traz consigo sentimentos ambivalentes que se expressam através do medo da responsabilidade sobre a provisão da família, da alegria pela existência do bebê e do cansaço como sinal do esforço em arcar com um filho, ou mais um filho, como sobrepeso. A vivência da paternidade desafia os homens em sua história presente tendo como pano de fundo as exigências da cultura e a experiência passada na vivência familiar.

Ainda hoje, o nascimento de um menino representa um forte estímulo na autoestima masculina, na medida em que permite usufruir da perspectiva da continuidade do nome que designa aquele clã, a chance de manter viva a ancestralidade.

Desse modo, esperou Walter por Sergio no dia de seu nascimento. E foi sobre ele, e não só sobre a mãe, que se abateu o golpe da fatalidade. De uma só tacada viveu o sequestro do outro herdeiro, o roubo do futuro com mais um filho a representá-lo. Naquele primeiro momento, teve diante de si apenas o vazio. O bebê nascera, estava vivo, mas o sentimento era que o perdera, pois não poderia reconhecê-lo como pai, não poderia saber de seu amor.

Na tristeza desse momento de profunda desesperança, Walter e Paula seguiram sozinhos por um tempo que não sabiam prever, resilientes a esperar que diminuísse o impacto do trauma que acabavam de viver, até que o tempo futuro pudesse se apresentar novamente para ambos.

Na vivência dessa dor o casal se deu conta de que há momentos na vida em que o amor mede forças com o ódio e quase perde. A revolta com o acontecido, o sentimento de injustiça, de não ser merecedor de um dano de tal grandeza, a necessidade de culpar, atacar, se vingar, postos a serviço de se livrar da profunda tristeza, da inconformidade e da impotência para qualquer reação... A desistência, o silêncio e a solidão se apresentam como únicas defesas. Surge um corte profundo entre o que fora e o que agora é.

É possível, porém, que o amor subjacente ao ódio venha a emergir na cumplicidade que conforta, buscado pela dor que necessita ser compartilhada: em um resgate da força necessária para a reconstrução dos planos. Os casais ouvidos sabiam que o envelhecimento dos filhos com deficiências se daria precocemente, e a maior preocupação residia nas próprias mortes, no próprio desaparecimento, premidos pela necessidade de proteger do desamparo esses nascidos na diferença, na deficiência de recursos. O desalento inicial permitiu que esses homens e mulheres, pais de bebês nascidos quase mortos ou muito prejudicados para a vida, se unissem em torno das mesmas perguntas:

- O que fazer com o que tinham planejado? Como quebrar paradigmas há tanto tidos como apropriados e naturais? Que sonhos poderiam sonhar?

A luta pela reconstrução

Muito cedo ficou claro a esses pais que dar voz ao acontecido, falar do que estava sendo vivido era uma forma de se ajudarem a si mesmos. Aos poucos, foram descobrindo que era também uma forma de ajudar outros, envolvidos em desafios semelhantes e aturdidos quanto ao que fazer. A limitação não estava apenas nas crianças tidas como especiais, deficientes ou diferentes, mas atingia, sobretudo, os profissionais que delas se aproximavam. Grande era a desinformação.

Em função de ser essa a situação, pensaram que ir contra a corrente e não se ater a diagnósticos apresentavam-se como estratégias interessantes. A partir daí foi possível buscar no que a comunidade oferecia as parcerias confiáveis que, com o tempo, se constituíram em um grupo de confiança, com pais, amigos e profissionais voltados a contribuir para o desenvolvimento de crianças que apresentavam dificuldades, que tiveram seu desenvolvimento motor lesado, mas mantinham-se íntegras intelectual e afetivamente. Cabia aos adultos que as cercavam aventurar-se a descobrir quais outras possibilidades de desenvolvimento poderiam ser buscadas e até onde essas crianças poderiam ir.

Pouco a pouco - e cada uma a seu modo - essas crianças, de modo surpreendente, reagiam aos cuidados que recebiam e manifestavam apego às pessoas a sua volta. Elas se desenvolviam e a limitação intelectual que apresentavam não afetava sua capacidade de criar e despertar vínculos. Uma das mães lembra uma ocasião às vésperas do Natal, em que pergunta ao filho qual presente gostaria de ganhar, ao que prontamente ele responde: um amigo!

Respostas como essa criavam uma espécie de blindagem em torno dessas crianças, que as protegia da irritação e do desânimo que, por vezes, se abatia sobre os mais próximos, frente à teimosia e à atenção por elas demandadas.

A partir da grande vontade de existir manifestavam, de modo evidente, recursos de interesse, sensibilidade, atenção e capacidade de memória que, frequentemente, não são levados em conta na descrição convencional que recebem, em virtude da valorização social do desempenho intelectual e da representação caricatural que o diferente, tido como deficiente, sofre com frequência.

Algumas dessas crianças submetidas ao teste de Rorschach receberam no laudo a confirmação de que eram dotadas de inteligência e capacidade de aprendizagem, ainda que não fosse possível saber até onde seriam capazes de avançar.

Esse documento apenas reafirmou aquilo que as pessoas que com elas conviviam já observavam e estimulou a disposição desses pais em oferecer-lhes tudo que fosse possível e estivesse ao alcance em uma rotina diária de cuidados. O trabalho de profissionais nas áreas de fonoaudiologia, terapia ocupacional, neurologia e a quem mais pudessem recorrer em muito ajudou nesse processo.

Fundamental foi a confiança no ambiente e a percepção dessas crianças de que havia uma aposta nelas. Cada novo gesto, cada possibilidade descoberta por elas eram comemorados e compartilhados. Compartilhar é poder estar junto nos acertos, erros e intervalos, sendo estes os períodos mais difíceis, onde nada parece acontecer. Walter e Paula, acompanhados, não punham em dúvida a possibilidade de evolução. Por onde essa convicção passava, em que se nutria, não sabiam explicar. Confiavam simplesmente que ela se daria, em seu tempo, em seu ritmo. E assim se deu. Sergio falou aos seis anos, e de posse dessa conquista passou a falar ininterruptamente. Paula lembra um momento em que, exausta, pede ao filho que fique por alguns minutos calado. Ele a olha incrédulo e diz: "Mas mãe, é tão gostoso conseguir falar!".

A partir das conquistas, a comunicação dessas crianças se expande e abre espaço para a explicitação de urgências:

- Mamãe, quero isso... isso... isso...

- Mamãe, eu também quero aquilo...

O "também" se referia aos irmãos, aos primos, aos amigos, fontes de inspiração. Através deles configuravam desejos, proezas, conquistas da normalidade às quais sonhavam aceder.

Nessas ocasiões, a fala do pai ou da mãe era fundamental, para assinalar uma e muitas outras vezes, da maneira possível, as dificuldades motoras que as poriam em risco e que as impediam de dirigir bicicleta, carro e o que quer que se movimentasse e exigisse equilíbrio, agilidade, destreza. Outras vezes, porém, essas crianças eram alertadas, ensinadas e lhes era permitido o risco, a ousadia. Experiências que também aos pais assustavam. Desse modo, as crianças tiveram acesso aos prazeres possíveis e avançaram em confiança e autonomia.

E os que as acompanharam, todos eles aprenderam que há uma capacidade humana de colocar o corpo a serviço dos desejos. Algumas delas, constituídas por um corpo biônico - lesionado, transplantado, artificialmente suspenso -, atestaram não conhecer o adoecimento da vontade no afã incansável de fazer parte, de fazer frente, de pertencerem. Determinação que as tirava do lugar da inércia e as punha em movimento.

O corpo revelado: uma licença filosófica

Nessa reflexão interessa considerar o esforço despendido para atingir o estado em que o corpo seja capaz de nascer de novo, biológica ou psicologicamente. Corpo que a todos se apresenta desde o início da vida, como um bem e um fardo, a ser carregado e do qual padecemos, sem que o tenhamos inventado ou escolhido. Corpo humano, socialmente esculpido ao longo da história a ferro e fogo para ser um corpo de civilização.

Nessa perspectiva, o corpo deficiente aparece como uma transgressão à ordem institucionalizada, corpo que se desvencilha de um modelo organizado, funcional, otimizado, a serviço da produção, ao prazer do trabalho. O corpo deficiente que não obedeceu ao desejo de esquadrinhamento, que, indisciplinado, não atendeu ao poder regulador que silencia e uniformiza os corpos. Se fez existente, fora das regras.

Artaud, Foucault, Deleuze e outros autores malditos falam-nos desse corpo, dito normal, essa espécie de instância elementar por onde incidem todos os poderes. Dizem-nos como é necessário livrar-se dessa organização, desse corpo já dado, e conquistar um estado de nascer sempre, de engendrar um corpo desconhecido, não disciplinado pelas instituições.

Em 1947, Artaud escreve um programa intitulado "Para dar fim ao programa de Deus", onde expõe e denuncia o que está prescrito como sendo o que se deve e o que não se deve, o que é o mal e o que é o bem, o que deve ser a vida e o que não deve ser a vida. Fala contra o corpo com órgãos, onde as funções são determinadas de modo tal para que prevaleça um sentido de organização.

Essas crianças, deficientes eficientes, com um corpo indisciplinado, sem órgãos, sem organização, com cérebros lesionados, rins transplantados, colunas suspensas por hastes, bacias equilibradas com placas, apresentam uma vitalidade que pede passagem na urgência dos limites a serem removidos, trocados de lugar, como se dissessem:

 

- É preciso acabar com o sistema de julgamento - familiar, pedagógico, médico, psiquiátrico -, tribunal ao qual somos incessantemente submetidas. É preciso acabar com essa obsessão em julgar as pessoas a partir de certa normalidade, pô-las em processos, categorizá-las, arrasá-las, impedi-las!

 

Proposta de um corpo deficiente não mais submetido ao cronômetro - modalidade pós-moderna - do tempo e que se abre para outra experiência. Não mais o tempo do relógio, mas outra vibração, outras intensidades, outras velocidades, outros devires. Noções que Deleuze mobiliza para pensar esse novo corpo e sua potência própria, pois, para os diferentes, deficientes, o modo dos sentidos é outro: a pele vê, o olho toca, e a escuta se dá pelos ossos. São outras experimentações, uma multissensorialidade.

Artaud, ao falar sobre o peso de sentir o próprio corpo, o peso do sistema de juízo, reivindica o direito de nascer com liberdade e, desse modo, expressa a mesma reivindicação dos diferentes. Batalha intensa contra poderes e saberes que defendem certa gênese como exclusiva e, desse modo, incitam ao comprometimento com uma guerra contra uma espécie de biopolítica, que toma a vida como objeto. Nesse grito, em forma de blasfêmia, reivindica a destruição dessa lógica, onde tudo funciona e precisa funcionar; regra sem direito à dúvida, à contestação, sob o risco de descartes, de abortos, de invisibilidade.

Finalizando, Winnicott nos legou um dos conceitos mais valiosos da teoria psicanalítica: "a mãe suficientemente boa". Concepção que cria um divisor de águas frente à conceituação já estabelecida em torno da mãe boa e da mãe má. Contudo, ainda que aparentemente simples, essa nova perspectiva de maternidade traz uma complexidade de entendimento em suas várias facetas.

Apresenta uma mãe sábia, justa, perseverante, mas capaz de desalento diante de seus excessos e faltas. Mãe que talvez possa ser pensada como aquela que se beneficiou de um mundo que teve a psicanálise como patrimônio e o movimento feminista como pano de fundo. Mãe sem medo de amar e capaz de correr os riscos que o amor comporta; mãe que perdoou os pais que teve e incluiu a infância em sua linha do tempo, sem idealização ou amargura, e aceitou o destino em seu percurso incognoscível. Mãe que comporta a falibilidade e ganha humanidade no direito à hesitação, ao cansaço e ao erro. A suficiência materna diz respeito à experiência da maternidade quando vivida por uma mulher real em seu melhor desempenho. Aquele possível.

Podemos pensar que esse tipo de amor implica uma entrega que enfrenta os riscos da decepção e da recusa, da retribuição e do encantamento, fantasmas a serem encarados sem cálculos, sem medidas. Entrega amorosa vivida sem boias ou sistemas de segurança, que torna possível se apaixonar.

No rosto dos pais que acompanhamos, como bichos de muitos olhos, apareceram os dizeres: - Filho, por favor, viva! Os corpos femininos e masculinos, que na diferença acolheram suas crianças e se repartiram com elas, ecoaram o mesmo clamor. Crianças espelhadas que entenderam e na luta pela sobrevivência física e psíquica responderam ao apelo, sendo esse o melhor e mais fundamental alimento que as manteve no decorrer dos anos. Hoje, muitas delas adultas, refletem, duvidam, namoram, discutem, discordam, invejam, se compadecem, se culpam, se arrependem, se entristecem, sentem ciúmes, agradecem. Emocionalmente inteiras.

Dizem que o amor é cego. Talvez isso não seja verdade; talvez amar apenas permita que se enxergue de forma diferente, de outro modo daquele do senso comum, que vê mais convencionalmente, guiado pelas semelhanças. Quem sabe? Amor seja o que aceita, comemora, reconhece. Amor que enraivece, desiste, se aborrece. Amor/Ódio conhecido pelos bons pais, bons amantes, bons psicanalistas.

Esse foi o amor que essas crianças receberam. Esse é o amor que elas, mais do que os nascidos não diferentes, não deficientes, demandarão dos que as cercam a vida toda. Filhos para sempre, solicitantes e reconhecidos no que são.

Assim, se o homem é aquele que sobrevive indefinidamente ao humano, que como o mágico da infância cria recursos insuspeitados diante das vicissitudes do viver, e se há sempre humanidade para além do inumano, onde da crueldade e desrespeito emergem possibilidades de conserto e recuperação; então, sonhar com uma ética coletiva é possível no limiar histórico em que nos encontramos. Ética aberta ao diferente, por abarcar o diverso sem, contudo, extinguir a diferença pela fusão, mas ao contrário, mantê-la em um equilíbrio instável de antagonismos, em justaposição. Um tipo de convivência que torne possível a existência visível e reconhecida de pessoas semelhantes e diferentes, estendendo as oportunidades de vida.

Há para todos um preço a pagar por poder, depois de nascido, nascer outra vez. A resiliência não traz garantia de felicidade, mas, como já foi dito, é uma estratégia de luta contra a infelicidade, que permite obter prazer em viver, apesar do murmúrio dos fantasmas que dão sinais no fundo da memória. Sem descanso.


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