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Resumo
Considerando a grande incidência atual de pacientes nomeados como estados-limite, seja na clínica psicanalítica ou em instituições de saúde mental, busco neste trabalho compreender como se constituem os continentes do Eu – membrana que nos pacientes estados-limite estaria mal constituída, porosa. Para tanto, lanço mão de algumas contribuições na obra de Freud, bem como em obras de autores pós-freudianos, em especial Didier Anzieu e seu livro O Eu-pele. Uma vinheta clínica serve como ilustração ao final.


Palavras-chave
estados-limite; constituição do Eu; Eu-pele; continentes do Eu.


Autor(es)
Bruno Espósito
é psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva (Unicamp), psicólogo do Centro de Referência da Infância e da Adolescência (cria-Unifesp).


Notas

1.     M. Mannoni, "O divã de Procusto".

2.     S. Carné, "Os envelopes psíquicos e a clínica psicomotora", p. 10.

3.     D. Anzieu, O Eu-pele, p. 11.

4.     Neste trabalho, refiro-me sempre ao Eu enquanto instância psíquica (ego, na tradução da Ed. Imago), e não como self (a totalidade da personalidade). O Eu enquanto instância psíquica, como veremos, é trabalhado por Freud em textos como "Projeto de psicologia" (1895) e "O Eu e o Isso" (1923).

5.     André Green, por exemplo, dedica-se em um de seus artigos a examinar passo a passo as diferenças e semelhanças entre estados-limite e histeria, ciente de que na teoria e especialmente na clínica essa distinção não se dá com clareza. Cf. A. Green, "Histeria y estados límite: quiasmo".

6.     H. Lerner, "La clínica psicoanalítica convulsionada".

7.     A. Green, "Génesis y situación de los estados límites".

8.     D. Gurfinkel , "A psicanálise do fronteiriço: André Green, entre Freud e Winnicott".

9.     C. Bollas, "O desejo borderline", p. 7.

10.   L. Hornstein, Proyecto terapeutico: de Piera Aulagnier al psicoanálisis actual.

11.   S. Freud, "Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos".

12.   O. Mannoni, "A adolescência é analisável?", p. 33.

13.   S. Freud, "Proyecto de psicología".

14.   S. Freud, "Proyecto de psicología".

15.   S. Freud, "Más alla del principio de placer".

16.   S. Bleichmar, Psicoanálisis extramuros: puesta a prueba frente a lo traumático.

17.   S. Freud, "El yo y el ello".

18.   J. Laplanche e J.-P. Pontalis, Vocabulário de psicanálise.

19.   S. Freud, El yo y el ello, p. 27-28.

20.   S. Freud, El yo y el ello, p. 27-28, grifo meu.

21.   D. Anzieu, op. cit.

22.   D. Anzieu, op. cit., p. 10.

23.   D. Anzieu, op. cit., p. 15.

24.   I. Fontes, "A construção silenciosa do ego corporal", p. 85.

25.   D. Anzieu, op. cit.

26.   I. Fontes, op. cit.

27.   H. Lerner, op. cit.

28.   W. Ranña, "Desafios à integração psicossomática na infância e a clínica da constituição da subjetividade: a privação, o excesso e a exclusão", p. 177.

29.   D. Gurfinkel, op. cit.



Referências bibliográficas

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____. (1923/1989). El yo y el ello. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, v. 19.

____. (1925/1989). Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, v. 19.

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Abstract
Considering the high incidence of patients currently named as borderline, whether in the psychoanalytic clinic or at mental health institutions, I seek in this work to understand how the continents of the I are constituted – membrane that would be ill-formed, porous, in borderline patients. For this, I look for some contributions in the work of Freud, such as post-Freudians, especially Didier Anzieu and his book The I-skin. A clinical vignette serves as an illustration at the end.


Keywords
borderline; constitution of the I; I skin; continents of I.

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 TEXTO

Superfície do corpo, continentes do eu: sobre o Eu poroso dos pacientes estados-limite

Body surface, continents of the self: on the porous ego of borderline patients
Bruno Espósito

A clínica diante da problemática
dos continentes psíquicos

 

A clínica, mais especificamente a clínica em instituições, coloca-nos diante de quadros psicopatológicos que dificilmente poderiam ser incluídos em uma nosografia tradicional - embora já se encontrem no texto freudiano bases fundamentais para compreender esses funcionamentos psíquicos. Trata-se de casos graves e de difícil manejo, como as organizações psicossomáticas, nas quais o mundo afetivo e simbólico está congelado, os estados-limite, em que os afetos escoam pelo ato e estabelecem uma permanente dependência emocional, ou ainda as personalidades narcísicas.

A não ser que os coloquemos num divã de Procusto[1], temos que reconhecer as severas diferenças entre esses pacientes e uma organização neurótica típica, pois se, por um lado, as neuroses seguem existindo e em grande prevalência nos consultórios, nos tempos de Freud elas "roubavam a cena", mobilizando o campo da clínica, do social e da estética, e acabaram servindo como um modelo paradigmático do funcionamento psíquico. Por outro lado, se tentarmos entender esses pacientes como psicóticos, tampouco temos a garantia de uma base metapsicológica que fundamente um manejo clínico satisfatório.

Tratarei aqui, mais especificamente, de algumas questões introduzidas na psicanálise contemporânea a partir do estudo e tratamento dos estados-limite. Na medida em que diferentes psicanalistas se debruçaram sobre essa temática, sem a intenção de enquadrá-la numa nosografia previamente construída, não só a técnica analítica avançou, como também se tornou possível olhar para a metapsicologia enfatizando aspectos da constituição psíquica além dos que habitualmente são considerados.

Segundo Carné[2], "durante muito tempo, os psicanalistas se preocuparam mais com os conteúdos do que com os continentes do psiquismo"; estamos mais habituados a abordar os conteúdos psíquicos, sejam eles relativos ao Eu, como o conjunto das identificações e as lembranças conscientes, relativos ao Supereu, como seus imperativos e a auto-observação, ou relativos ao Isso, enquanto instância das representações mais arcaicas e da pulsionalidade. Embora a tópica fique claramente demarcada apenas do ponto de vista conceitual, visto que as diferentes instâncias psíquicas estão sempre dinamicamente inter-relacionadas, nossa prática clínica e nossos modelos teóricos tendem a enfatizar os conteúdos que povoam os diferentes espaços psíquicos, tais como representações, pensamentos e afetos.

No entanto, como afirma Anzieu[3], "um conteúdo não poderia existir sem relação a um continente", e cada vez mais nos defrontamos na clínica com a problemática das barreiras, dos limites, que quando não estão satisfatoriamente estabelecidos no psiquismo trazem consequências graves à organização psíquica. Se em uma neurose dita "clássica" trata-se, em análise, de atenuar as barreiras defensivas - o recalque - para que o conteúdo inconsciente venha à tona e seja reintegrado à cadeia associativa, nos estados-limite trata-se de construir fronteiras, instaurar limites psíquicos.

Meu interesse neste trabalho, portanto, diz respeito aos limites, continentes, membranas, fronteiras, ou seja, os limites entre o eu e o outro, entre interno e externo, entre as instâncias psíquicas e, principalmente, como se constituem os limites do Eu[4].

Pacientes estados-limite

Grosso modo, a categoria estados-limite vem sendo usada na psicanálise para designar uma classe de pacientes, cada vez mais presente na clínica, que tem como principal característica a oscilação abrupta entre extremos: do vazio ao transbordamento dos afetos, da passividade à impulsividade e agressividade, da impotência absoluta a uma onipotência defensiva, do isolamento à dependência fusional, da idealização à desconsideração do outro. A ansiedade os invade e eles não dispõem de recursos para nomeá-la ou contê-la. São intolerantes a frustrações, mesmo que pequenas, e em geral muito suscetíveis às mudanças no seu entorno. Costumam lançar mão de defesas variadas para lidar com a angústia ou o vazio: dissociações, atuações, fobias, adições, projeções maciças, e aparecem também condutas fetichistas ou masoquistas. Adotam frequentemente um discurso narcisista, autorreferente e autoengrandecedor, quando na realidade o sentimento de si está profundamente abalado.

Na relação transferencial, o analista muitas vezes é tomado pelo paciente, preocupa-se com ele mesmo fora das sessões, aos finais de semana, ou seja, o "leva para casa"; em alguns momentos sua própria capacidade de associar, de rememorar, de pensar pelo paciente parece ser deletada, sucumbindo ao vazio ou ao afeto extremado e inominável. No próprio setting analítico o paciente estado-limite tende a se "esparramar", tornando difícil para o analista, por exemplo, manejar os horários, o início e o término das sessões.

Vale ressaltar que, do ponto de vista do afeto, fica marcada a alternância entre a incontinência e o vazio. Ora o afeto se esparrama, se descarrega violentamente obedecendo ao processo primário, ora parece simplesmente não existir, lançando o sujeito na absoluta perda de sentido, como se não houvesse investimento no próprio Eu ou no mundo. Além da dificuldade de suportar os momentos de acting out ao lado desses pacientes, marcados por muita intensidade e destrutividade, quando a maré amansa o trabalho analítico é igualmente desafiador: no vazio é tão difícil conectar-se ao paciente quanto separar-se dele. A economia narcísica dos estados-limite está muito alterada, de modo que é difícil criar um espaço de comunicação acolhedora e qualquer separação - como o término da sessão ou férias - é vivida duramente como um abandono.

Do ponto de vista da sexualidade e do amor, são pacientes que tendem a relacionar-se com o outro na tentativa de restabelecer um equilíbrio narcísico e vivenciar uma situação de dependência emocional, algo muito distante de uma escolha objetal atravessada pela castração. Dessa maneira, são relacionamentos que podem apresentar características próximas às perversões, e são permeados por uma instabilidade e intensidade extremas.

São pacientes, portanto, que levam ao limite a própria existência, a relação com o outro e a própria relação analítica. Não raramente fazem tentativas de suicídio, colocam-se em risco, apegam-se maciçamente e em seguida rompem com seus relacionamentos fraternos ou amorosos, e estão sujeitos à reação terapêutica negativa devido ao masoquismo e à dificuldade de processar um cuidado afetivo a uma justa distância.

No âmbito da psicopatologia, os estados-limite começaram a ser conceituados pela psicanálise e psiquiatria dinâmica em torno de 1940 nos Estados Unidos, e somente a partir de meados de 1950 na Europa, portanto algo recente se compararmos ao estudo de afecções consagradas como a histeria, a neurose obsessiva e diferentes tipos de psicose. Vale ressaltar que o processo que envolveu sua definição e classificação esteve sempre sujeito a disputas e polêmicas, dentre elas a dificuldade de discernir essa categoria, à primeira vista, de outras patologias. No meio analítico, especificamente, discute-se com frequência a fronteira que os estados-limite fazem com a psicose e a histeria grave[5].

Muitas das primeiras categorizações situavam esses pacientes próximos aos quadros psicóticos: personalidade pré-esquizofrênica, esquizofrenia pseudoneurótica, esquizofrenia ambulatorial e estruturas esquizoides da personalidade foram algumas das definições correspondentes ao que hoje entendemos como estados-limite. Essas definições sucumbiram diante da constatação de que a esquizofrenia nunca se instalava definitivamente, embora pudessem ocorrer episódios psicóticos. Passou-se a dar atenção ao fato de que a instabilidade psíquica dos estados-limite não é o prenúncio de uma ruptura psicótica, mas a própria condição da doença; eles seriam "estavelmente instáveis", como postulou Schmiderberg em 1947[6].

A ideia de limite passou a ganhar força na definição dessa patologia, e o termo borderline começou a ser utilizado com frequência. Ainda assim, o limite faz dupla referência: à fronteira entre neurose e psicose, à qual esses pacientes tenderiam a atravessar nos dois sentidos, e em última instância o que definiria se o paciente é um "border neurótico" ou "border psicótico" seria a gravidade do quadro; por outro lado, limite diz respeito aos limites do aparelho psíquico, limite na relação com o outro, limite da possibilidade de conter e representar os afetos. É nesse sentido que os estados-limite não seriam nem neuróticos nem psicóticos, embora apresentem sintomas associados a ambos, mas sim uma categoria independente, onde o que falha é a construção de fronteiras psíquicas, especialmente os continentes do Eu, perturbando gravemente a intermediação entre as instâncias psíquicas e as relações intersubjetivas.

Atualmente, o enfoque maior se dá sobre a "cidadania própria" dos estados-limite no campo psicopatológico, ou seja, um funcionamento psíquico independente dos já conhecidos. Os estados-limite foram configurando-se como uma preocupação teórico-clínica específica, para além do limite entre neurose e psicose, e contribuíram para o enriquecimento da metapsicologia na atualidade através do esforço empreendido por diferentes analistas provindos de campos de pesquisa não necessariamente coincidentes.

Nos Estados Unidos, Otto Kernberg foi um dos pioneiros no que concerne à sistematização teórica e desbravando a clínica desses pacientes difíceis; Kernberg pensa os estados-limite à luz do narcisismo patológico e dos mecanismos primitivos a ele associados, baseado nos estudos prévios de Melanie Klein. Por ser também psiquiatra, Kernberg manteve um diálogo aberto entre psiquiatria e psicanálise, e seu nome é reconhecido até hoje nos dois campos pelas contribuições ao estudo dessa patologia.

André Green foi o principal responsável por introduzir a discussão sobre os estados-limite na França. Ao esforço de Green não faltaram resistências por parte dos analistas franceses da época, situação frente à qual ele não poupa críticas: para ele, vigorava na época um certo dogmatismo da corrente lacaniana, que tendia a olhar com desprezo qualquer teorização a respeito do Eu e suas patologias, pois isso seria tributário da ego psychology norte-americana - algo que Lacan confrontou com veemência. Esse preconceito, diz Green, implicou um atraso importante na teoria e clínica dos estados-limite na França, em relação às tradições norte-americana e anglo-saxã[7] .

No espaço intrapsíquico, Green entende que o Eu do paciente estado-limite se configura de modo poroso, ficando sujeito a violentas intrusões, quer seja das próprias excitações ou do contato com o outro. Green dá ênfase também à dissociação como mecanismo preponderante ao qual os fronteiriços estão sujeitos, impedindo a reunião e a articulação de conteúdos internos, ou seja, o trabalho de simbolização. O paciente estado-limite vive, portanto, sob a angústia do vazio e da desarticulação, quer seja no âmbito intrapsíquico, na relação com seu corpo e a ação, ou na relação com o outro.

A dissociação é tributária das falhas na relação com o cuidador (em especial a mãe), seja pelos aspectos intrusivos ou de distanciamento dela para com o bebê; essas falhas impediriam os processos de separação, simbolização e reunião dos conteúdos psíquicos, levando à dissociação. Nesse aspecto, Green é absolutamente fiel às formulações de Winnicott acerca da mãe-ambiente, da transicionalidade e do espaço potencial[8].

Christopher Bollas discute a gênese dos estados-limite também a partir da relação mãe-bebê, dando ênfase às tempestades emocionais que tanto caracterizam esses pacientes. Segundo o autor, no primeiro ano de vida introjeta-se no self um objeto primário, baseado nas relações com o cuidador e ao qual se recorre afetivamente ao longo da vida: o paciente estado-limite não introjeta essa relação de cuidado, mas sim a turbulência emocional em si mesma. Como regredir ao objeto primário é uma experiência de prazer, o borderline volta à turbulência e a atua na relação com o outro. "Seu objeto primário é menos uma possibilidade de introjeção - um fenômeno especular disponível para um desenvolvimento por revisões progressivas - e mais um efeito recorrente no self. Como o vento que sopra entre as árvores, é algo que se move através do self. Uma vez que qualquer emoção insinua a presença desse objeto, o borderline está sempre tentando buscá-lo através da amplificação de um sentimento comum, que assim se transforma em uma poderosa experiência emocional"[9].

Piera Aulagnier aborda aspectos da constituição psíquica que são absolutamente concernentes às patologias estados-limite. As dificuldades em se conformar uma identidade, um projeto identificatório e os entraves na historicização estão maciçamente presentes nesses pacientes: falhas que incidem diretamente no Eu e cuja possibilidade de construção se dá nas primeiras relações intersubjetivas[10]. Os estados-limite têm dificuldade de sustentar projetos, ver sentido neles, e de remeter-se à própria história de maneira integrativa. Seja olhando para o passado, presente ou futuro, não conseguem enxergar em si uma identidade que lhes dê sentimento de existência. Com isso, são dramaticamente invadidos pelo dilema: ser ou não ser?

Apesar de tradições e nuances teóricas diferentes, os autores acima citados estão de acordo em relação à gênese dos estados-limite: a situam na relação inicial entre o bebê e a mãe ou o cuidador, que possibilitará ou não a constituição de um espaço psíquico razoavelmente integrado e continente. As falhas nesse processo tendem a instaurar problemáticas narcísicas muito primitivas, a dificultar a intermediação das relações inter e intrapsíquicas, a convulsionar a contenção e o manejo dos afetos no plano psíquico.

Dentre os diferentes aspectos relacionados ao funcionamento psíquico dos estados-limite, escolhemos lidar mais especificamente com a problemática dos continentes do Eu. As falhas na constituição dessa fronteira respondem por grande parte do sofrimento psíquico dos estados-limite, levando-os a tentativas desesperadas de se defender ou se libertar das invasões ou esvaziamentos - sobretudo afetivos - decorrentes de um Eu poroso.

A constituição do Eu

Quando falamos em Eu, no campo psicanalítico, frequentemente nos referimos ao Eu das identificações: os investimentos de objeto que devem ser renunciados ao longo da infância regridem à forma de identificação e são incorporados no Eu[11]. O conteúdo do Eu diz respeito a uma constelação identificatória, o que levou Mannoni[12] a formular a ideia de que "o Eu é um outro [...] ou simultaneamente vários outros".

Nosso enfoque, no entanto, é pensar a constituição dos continentes do Eu, pois esse mesmo conteúdo (constelação identificatória) dependeria de algo que o sustentasse, garantisse sua coesão e manutenção dentro do mesmo espaço psíquico. É possível pensar a constituição dos continentes do Eu em Freud, em diferentes momentos de sua obra.

O primeiro esboço de conceitualização do Eu surge no "Projeto de psicologia"[13], sendo definido como um conjunto de neurônios com a função específica de conter o fluxo de excitação, pois funcionariam como barreiras de contato. Essas barreiras, além de bloquear em alguma medida a transmissão do desprazer, permitem que as vivências de satisfação deixem também marcas perceptivas. Portanto, o Eu serviria como uma contenção do desprazer da fome, por exemplo, mas também como um espaço de inscrição de imagens, experiências táteis, associadas ao ato da alimentação. Freud menciona nesse momento a dependência do bebê para com um outro - auxílio alheio que realiza uma ação específica[14] - e a importância dessas primeiras experiências na constituição do psiquismo. O Eu tem, portanto, a função de inibir a transmissão do desprazer e também possibilitar a inscrição de marcas perceptivas.

Em "Além do princípio do prazer"[15], quando Freud discute as chamadas neuroses de guerra, a ideia de barreiras de contato é retomada, mais precisamente como paraexcitações. O aparelho psíquico dispõe uma quantidade de energia (angústia-sinal) que funciona como uma membrana protetora dos estímulos advindos do exterior, e seu funcionamento é dinâmico: em situações entendidas como de risco, a angústia-sinal coloca o sujeito em alerta, e em situações de repouso ocorre um rebaixamento. É nesse sentido que, para Freud, o soldado da retaguarda está mais sujeito a sofrer uma neurose traumática decorrente de um evento acidental - como a explosão de uma granada -, ao contrário do soldado no front, psiquicamente protegido pela atividade de sua membrana paraexcitatória. O choque provocado pelo acidente incide tanto sobre o corpo físico quanto psíquico[16] e provoca uma movimentação interna, exigindo que o aparelho psíquico maneje o afluxo de excitações correspondentes; essa relação entre o evento acidental e o trabalho interno irá ou não desencadear o trauma.

Em "O Eu e o Isso"[17], Freud deixa claro uma distinção que já se desenhava em textos anteriores: o Eu não é equivalente à consciência, em absoluto. No contexto da segunda tópica, consciência e inconsciente deixam de ser sistemas psíquicos e passam a ser qualidades de representações, enquanto os sistemas (instâncias) passam a ser definidos como Isso, Eu e Supereu. No Eu reúne-se uma série de funções, tais como a percepção, a ordenação temporal dos processos mentais e as defesas psíquicas[18]. Uma dessas funções do Eu, o recalcamento, mais do que nunca passa a ser entendido em um plano eminentemente inconsciente; na outra ponta está a percepção, esta sim ocorrendo em um nível consciente e pré-consciente, em razão do seu contato com a realidade externa.

Em um desenho topográfico, o Eu se avizinha ao Isso e inclusive toma sua energia emprestada para desempenhar uma série de atividades, mas diferencia-se dele pela sua aproximação sucessiva com o mundo exterior. A percepção-consciência, que é representada pela córnea na analogia de Freud entre o aparelho psíquico e o sistema óptico, seria a parte do Eu mais sensível ao mundo exterior, dessa maneira mais consciente, e a membrana paraexcitatória recobriria essa córnea, filtrando os estímulos provindos do exterior a serem percebidos.

Freud dirá então que o Eu tem a difícil missão de intermediar as exigências e necessidades que vêm da realidade externa - princípio de realidade - com as exigências do Isso, ou seja, a busca por prazer e evitação do desprazer.

Mas o essencial com relação à gênese do Eu vem a seguir, portanto vale a citação completa: "o Eu é, sobretudo, uma essência-corpo; não é só uma essência-superfície, mas sim, ele mesmo, a projeção de uma superfície. Se buscarmos uma analogia anatômica, o melhor seria identificá-lo com o ‘homúnculo do encéfalo'"[19]. A nota de rodapé associada a essa frase, acrescentada pela primeira vez em 1927, destrincha melhor essa formulação: "Ou seja, o Eu deriva em última instância de sensações corporais, principalmente as que partem da superfície do corpo. Cabe considerá-lo, então, como a projeção psíquica da superfície do corpo"[20].

As sensações corporais, vividas através da superfície do corpo, ganhariam uma representação psíquica: esse pequeno corpo no cérebro. O Eu é um paralelo, um correlato, uma projeção no psiquismo da superfície do corpo, ou seja, o Eu psíquico tem como fundamento direto o Eu corporal. Essa superfície corporal será entendida por autores pós-freudianos como a pele, sendo o Eu-pele[21] a pele psíquica, ou seja, o continente do Eu que estamos buscando esclarecer neste texto.

O Eu-pele

Em seu livro, Anzieu revisa as contribuições de Freud e de autores pós-freudianos, que se articulam de maneira engenhosa com outros campos do conhecimento, como a etologia, psicofisiologia, histologia, sociologia, linguística, entre outros, culminando na criação do conceito metafórico de Eu-pele.

Sua análise nos permite entender a importância da pele sob vários ângulos: trata-se do maior órgão do corpo e um dos primeiros a se desenvolver no feto; tanto em termos filogenéticos quanto ontogenéticos, a pele se desenvolve muito próximo ao cérebro (ectoderma) e está absolutamente irrigada de terminações nervosas, o que leva Anzieu a supor o pensamento como "uma questão tanto de pele quanto de cérebro"[22]. O tato, sentido associado à pele, é o mais importante e vital do ser humano, sendo os outros sentidos inclusive desenvolvidos a partir deste primordial. O tato, portanto, tem uma função central na constituição psíquica, através da relação mãe-bebê.

A pele é o entre: entre o corpo biológico e o corpo social; entre a mãe e o bebê; entre o eu e o outro; entre o dentro e o fora. Uma entrecruzilhada cuja "complexidade anatômica, fisiológica e cultural antecipa no plano do organismo a complexidade do Eu no plano psíquico"[23]. A pele contém e delimita nosso organismo, nosso espaço interno. A pele nos defende de diversas ameaças vindas de fora, ainda que fique marcada pelas "batalhas" que travamos ao longo da vida - nossas cicatrizes. O paralelo entre a superfície do corpo e o Eu (pele psíquica) se coloca a todo instante, trata-se de uma analogia muito tentadora e promissora, do ponto de vista conceitual.

É fundamental salientar, no entanto, que inúmeras funções da pele não estão estabelecidas de antemão, pois dependem de relações afetivas com um cuidador que as desenvolva. Tomemos como exemplo a função continente da pele: o bebê não tem como sentir-se protegido, delimitado e discriminado somente com a pele que herdou geneticamente, ou seja, a pele exclusivamente anatômica. Da mesma maneira o Eu dependerá de determinadas relações para delimitar sua superfície.

O papel decisivo do outro na constituição da pele psíquica leva a pensar na passagem do corpo biológico ao corpo erógeno: a satisfação das necessidades orgânicas é a base sobre a qual advêm as primeiras experiências de prazer e desprazer, e a qualidade e o ritmo desses primeiros encontros irão instaurar a pulsionalidade, as instâncias psíquicas e, pouco a pouco, possibilitar a discriminação e uma relativa autonomia do infans para com o cuidador. Os cuidados fisiológicos serão o pano de fundo de um complexo processo que leva à fundação do sujeito psíquico, no qual o próprio inconsciente e a vida afetiva do cuidador têm um papel fundamental.

"Pelo toque delicado que recebem na higiene, na alimentação, pela voz melodiosa que escutam e o olhar que retorna o contato, eles [os bebês] podem se dedicar ao seu trabalho [...] que é nascer psiquicamente"[24]. O contato (tato) com o bebê, expressão máxima dessa relação de cuidados, além de garantir sua sobrevivência física, instaura também um espaço de estimulação, comunicação, segurança, confiança e jogo entre mãe e bebê.

Com efeito, os cuidados maternos em ritmos de presença e ausência permitem que o bebê possa experimentar, primeiramente, a mãe como um envelope que contenha suas aflições, e em um segundo momento, o seu próprio corpo sendo esse envelope continente. A ausência desse outro cuidador por um tempo prolongado, segundo demonstram alguns estudos, provoca no bebê uma tentativa desesperada de se "autoenvelopar", o que traduz a importância dessa relação na sua maturação física e psíquica[25].

É, portanto, sobre a base de um cuidado amoroso com o outro que advém a pele psíquica que dá continente ao Eu. Estamos nos referindo a um momento muito primitivo do desenvolvimento, algo em torno dos quatro, cinco meses[26], no qual as primeiras instâncias psíquicas vão se delineando a partir dos cuidados primários.

Como veremos representado na vinheta clínica a seguir, os pacientes caracterizados como estados-limite geralmente sofreram perturbações significativas logo no início da vida, no regime de cuidados primários - são dificuldades na relação do cuidador com o bebê que falha na capacidade de conter as excitações do infans; de procurar unificar sua desorganização psicossomática, de significar e filtrar a intensidade do mundo exterior. As perturbações no contato da mãe com o bebê podem atingir um nível profundo, impedindo a própria satisfação de suas necessidades orgânicas. A desordem do ritmo e intensidade, da presença e ausência nos cuidados primários teria consequências diretas na (má) formação dos continentes do Eu, ou seja, na construção do corpo psíquico.

Fragmento clínico

João é um paciente que tem entre vinte e trinta anos de idade, atendido em uma instituição pública de saúde mental. Trata-se de um caso de enorme peso para a equipe multidisciplinar que o trata, estimulando discussões recorrentes e acaloradas e que mobiliza nos terapeutas sentimentos muito variados: preocupação, curiosidade, vontade de cuidar, desconforto e raiva. Veio para tratamento, inicialmente, acompanhado da mãe após alguns atos impulsivos, nos quais havia se colocado em risco. Portava alguns sinais de autoagressão, sua pele mostrava essas cicatrizes.

Dados de anamnese apontavam que, ainda bebê, João sofreu de mal de simioto - cuja causa relaciona-se muitas vezes à desnutrição, ou seja, dificuldades na amamentação. Último filho de uma prole de cinco, e tendo o pai falecido quando ainda era pequeno, os indícios apontam que o paciente não dispunha de um cenário favorável para seu desenvolvimento psíquico. As falhas nos cuidados primários, que alcançavam por vezes até o nível básico das necessidades, e que inicialmente expressam-se pelas dificuldades do cuidador em mediar a relação do bebê com o mundo, posteriormente impedem que João conforme um espaço psíquico continente e construa um sentimento de si, ou seja, um Eu narcisicamente investido que permita suportar as relações e a ausência do outro.

Logo no início do tratamento, a mãe foi retirando-se progressivamente, abrindo mão de seu lugar e delegando à instituição os cuidados de João. Passou a fazer aparições pontuais, nas quais descarregava uma "tempestade" emocional sobre ele, de modo mortífero. O paciente, de sua parte, procurava figuras femininas na instituição com as quais tentava estabelecer uma relação de filho-mãe, e, através de crises de birra e queixas infindáveis, "testava" o quão disponíveis elas estavam para ele, exigindo sempre mais.

Tomando a dinâmica acima descrita como pano de fundo, chamavam atenção as oscilações de João em períodos breves de tempo, dificultando um entendimento diagnóstico, uma avaliação do verdadeiro estado psíquico e uma condução terapêutica razoavelmente integrada. João era uma espécie de camaleão, oscilando entre momentos radicalmente diferentes: ora era calmo, colaborativo e compreensivo, ora furioso e agressivo; podia apresentar episódios psicóticos transitórios, assim como sintomas tipicamente neuróticos, ou até mesmo comportamentos aditivos nos quais poderia ser confundido com um dependente químico.

Do ponto de vista da sexualidade, parecia relacionar-se muito mais em função da necessidade do que do desejo[27], tomando como objeto quem lhe oferecesse acolhimento, proteção, calor e eventualmente uma "pitada" de turbulência emocional. Tivera um casamento com outra paciente de perfil semelhante ao dele, principalmente no que diz respeito à intensidade afetiva e destrutividade dos vínculos; as brigas do casal eram veementes e seguidas de calmarias nas quais se fundiam de corpo e alma, de modo bastante regredido. Esses ciclos, embora assustadores a um observador externo, davam certa estabilidade a João, que sofreu muito com a separação. Os relacionamentos subsequentes não tinham o aspecto de uma escolha objetal, sendo os parceiros de características radicalmente diversas, mas parecia importar significativamente a repetição do ciclo de fusão e desfusão através de conflitos intempestivos.

A instituição parecia representar para João o simulacro de um lar, uma família, na qual provocava compulsivamente situações em que se sentia abandonado ou no centro de uma briga. Em curtos períodos de tempo, dizia coisas diferentes e comportava-se de modo diverso diante de cada terapeuta, criando um "excitante" - para ele - clima de animosidade dentro da equipe. Em outros momentos, sumia dos olhos da equipe, e quando voltava ponderava rigorosamente a reação dos terapeutas. Na sua ótica, perguntava-se: qual o devido valor que me dão? De fato eu existo para eles? Em seguida queria montar uma equipe de tratamento para si, a sua medida: incluindo somente os que o tratavam de modo especial, embora na sequência isso sempre se mostrasse insuficiente.

No sentido de buscar sempre um lugar diferenciado na instituição, João caçava brechas no cotidiano para ser uma exceção ante as regras. Seduzia para conseguir um "cafezinho" fora do horário, e na sequência gabava-se na frente de outros pacientes pelo a mais que conseguia. Quando corria o risco de perder-se na massa, lançava mão de quaisquer recursos para recolocar-se em destaque, como se sua existência, sua identidade, estivessem permanentemente ameaçadas.

Os terapeutas mais envolvidos com João frequentemente sentiam-se impelidos a investir nele de maneira intensa, através de projetos grandiosos e trabalhosos para a equipe. Em pleno terreno árido da saúde pública, João recebia uma alimentação abundante e de primeira qualidade para sua alma, mas continuava subnutrido. Talvez o tratamento apontasse, então, para a construção da membrana psíquica que mencionamos, a fim de reter os investimentos internos e externos.

Diante da angústia e do vazio: há enquadre possível?

João apresentava aspectos e modos de relação que, em diversos momentos, o faziam parecer com um histérico grave, quando, por exemplo, seduzia e sobrevalorizava um ou mais terapeutas e, pouco tempo depois, "derrubava-os", fazendo-os vivenciar a castração mais do que ele próprio. Em muitos outros momentos, parecia ser propriamente um esquizofrênico, diante da desorganização psíquica que podia apresentar, dos seus movimentos regressivos e pensamentos de tom persecutório. Não deixava também de assemelhar-se a um perverso, por exemplo, quando tinha conhecimento das leis da instituição, mas agia como se elas não existissem para ele.

Do ponto de vista psicanalítico, no entanto, qualquer tentativa diagnóstica passa por um entendimento profundo do funcionamento intrapsíquico do paciente e de seus modos de relação com o outro, em especial no contexto transferencial. Os paralelos com a histeria, a perversão ou a psicose pareciam insuficientes para boa parte da equipe clínica de João, principalmente quando se deslocava a leitura descritivo-fenomenológica dos sintomas para a compreensão do funcionamento intra e interpsíquico, ou seja, a posição subjetiva.

Nesse sentido, aquilo que em um primeiro contato parece conversivo, dissociativo, aditivo ou projetivo, por exemplo, pode ser entendido como mecanismos de defesa alternantes e radicalmente diferentes, aos quais o sujeito lança mão diante da angústia que o acomete. Acima de tudo, João parecia estar às voltas com uma ansiedade incontível e inominável, seguida de uma terrível sensação de vazio. Frente ao mal-estar, defendia-se como podia, valendo-se de mecanismos mais ou menos regredidos a depender da intensidade do sofrimento e das circunstâncias em seu entorno, portanto sem consolidar uma estrutura defensiva e um sintoma específico.

A forma em que se apresentam a ansiedade e o sentimento de vazio que estão no cerne de casos estados-limite é, do ponto de vista intrapsíquico, consequência direta de um Eu poroso, incapaz de conter e nomear os afetos que emergem tanto do próprio corpo e aparelho psíquico, como também do ambiente. As falhas na estruturação do Eu são extremamente precoces na vida do sujeito e remetem ao período no qual deve operar a função materna, que, segundo Ranña, "diz respeito às funções de narcisização, paraexcitação e fusão pulsional"[28]. Não tendo o outro - cuidador da primeira infância - conseguido investir o bebê de um narcisismo trófico, de protegê-lo das vivências de invasão do mundo exterior (considerando que a paraexcitação é, no início, o outro), e de auxiliar na integração pulsional, torna-se muito difícil para o sujeito introjetar experiências que ajudem a consolidar um espaço interno, ele próprio, continente. Nos termos de Anzieu, se a mãe não pode ser o envelope psíquico da criança, esta não poderá desenvolver seus próprios envelopes.

Sem uma membrana psíquica protetora, capaz de reter os afetos e nomeá-los, João era lançado em um vazio ao qual tentava preencher, sucessivamente, com uma substância química, uma relação amorosa, ou uma relação transferencial com a instituição - curiosamente, já pudemos observar o paciente se referir diversas vezes ao CAPS (sua instituição de tratamento) como "colo", e ao leito-noite (o sistema de pernoitar no CAPS em vez de voltar para casa) como leite-noite: tentativas desesperadas de construir uma dependência com uma mãe-cuidadora. Por outro lado, as descargas violentas da angústia que emerge no psiquismo, através de diferentes acting outs como brigas físicas, vidros quebrados, evasões, dentre outras, tentavam interromper essa dependência maciça com o outro, como movimentos atuados de discriminação/separação. Eram os momentos em que João dizia "eu sou adulto e vacinado!" (sic), claramente em uma onipotência defensiva.

Passamos do âmbito intrapsíquico para o campo intersubjetivo e, portanto, transferencial. As alternâncias radicais de João em um curto espaço de tempo, por exemplo, nos processos de fusão e separação do outro, impõem muitas dificuldades no manejo do caso. Lembremos, com Bollas, que esse modo de funcionamento não é somente um produto sintomático, mas também uma experiência de prazer para os estados-limite, sendo difícil não se "capturar" e se sujeitar a essa repetição com o paciente. Facilmente, onde buscamos certa estabilidade e continência, acabamos por perpetuar a intensidade, a dependência e a vivência de desamparo.

Um dos grandes desafios para tratar João é, portanto, como proporcionar um enquadre a sua medida, no qual possa se desenrolar uma situação transferencial que o ajude minimamente a suportar as dores do viver, acreditar que a vida vale a pena ser vivida. É preciso pensar um enquadre que ofereça certa coesão, mas elástico o suficiente para que caibam algumas das oscilações inerentes aos estados-limites. Um setting no qual o analista não seja "destruído" pelos ataques, contendo e processando em seu próprio pensamento aquilo que vem do paciente em estado bruto, e tentando devolver a ele uma significação - dentro de um ritmo e uma intensidade que não sejam vividos de maneira tão intrusiva. É muito interessante a recomendação técnica de Green: nesses casos, o analista não pode ser excessivamente silencioso, sob o risco de repetir o vazio e o mortífero[29], e é possível pensar também que a presença excessiva, em contraponto, poderá ser vivida como uma brutal invasão.

Em última instância, se pensarmos que o enquadramento se dá em grande parte no corpo e no psiquismo do analista, a teoria funciona muitas vezes como um valioso recurso para pensarmos e manejarmos as situações clínicas, deixando-nos menos sujeitos à indiscriminação e ações impensadas. A metapsicologia erigida a partir dos pacientes estados-limite, tendo os processos e falhas na constituição do Eu como alicerce fundamental, a meu ver ajuda a delinear um pano de fundo valioso para o difícil encontro com pacientes como João.




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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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