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Resumo
O alvo da perversão pedófila é a criança ainda não definida sexualmente. Fundamentalmente, o que o pedófilo procura nela é a encarnação da recusa da castração e da diferença entre os sexos. Procura a si mesmo, quer fazer-se aparecer na figura infantil. A pornografia infantil, por sua vez, registra no imaginário o ato pedófilo, legitimado e legalizado. As ideias de Serge André (Laussanne, 1999), aqui retrabalhadas, têm grande valor num campo em que são escassas as hipóteses metapsicológicas.


Palavras-chave
perversão; pedofilia; pedofilia virtual; pornografia infantil; metapsicologia; recusa.


Autor(es)
Lúcia Barbero Fuks
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1.     L. Barbero Fuks, "Consequências do abuso sexual infantil", Percurso n. 36, 2006, p. 41-52, disponível também em Narcisismo e vínculos, Casa do Psicólogo, 2008, p. 186.

2.     Cf. S. André, "La significación de la pedofilia". Conferência em Lausanne, 1999. Disponível em .

3.     Ver por exemplo seu livro Pedofilia: um estudo psicanalítico.

4.     Cf. "O ato pedófilo na história da sexualidade humana", in: Inocência em perigo: abuso sexual de crianças, pornografia infantil e pedofilia na Internet.

5.     S. Freud (1905), "Tres ensayos de teoria sexual", Obras Completas, p. 109.

6.     S. Freud, op. cit., p. 168.

7.     Joël Dor, Estrutura e perversões.

8.     S. Freud (1915), "Pulsiones e destinos de pulsión", op. cit., v 14, p. 113.

9.     Idem, p. 118.

10.   Cf. "A significação do falo" (1958), in: Escritos.

11.   S. André, op. cit., p. 4.

12.   Essa postura lembra a defesa de Adolf Eichmann, analisada por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal: ele repetia incansavelmente que apenas obedecera às leis do seu país. e portanto não tinha por que ser condenado. Na perspectiva de André, a lei a que se curva o perverso não é a de um regime político: é ainda mais "nobre", porque conforme à natureza das coisas. Não é preciso insistir sobre a falácia e a crueldade de tal visão das relações entre seres humanos.

13.   Cf. "Abuso e exploração sexual de crianças: origens, causas, prevenção e atendimento no Brasil", in: Inocência em perigo.

14.   L. Barbero Fuks, op. cit., p. 190.



Referências bibliográficas

André S. La significación de la pedofilia. Conferência em Lausanne, 1999. Disponível em: .

Arendt H. (1999). Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras.

Barbero Fuks L. (2008). "Consequências do abuso sexual infantil, Percurso, ano XVIII, n. 36, 1º semestre de 2006, p. 41-52. Também em Narcisismo e vínculos, Casa do Psicólogo.

Barbosa H. (1999). Abuso e exploração sexual de crianças: origens, causas, prevenção e atendimento no Brasil. In: Inocência em perigo. Rio de Janeiro: UNESCO Edições Brasil - Garamond.

Dor J. (1991). Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas.

Dunaigre P. (1999). O ato pedófilo na história da sexualidade humana. In: Inocência em perigo: abuso sexual de crianças, pornografia infantil e pedofilia na Internet. Brasília: Garamond.

Freud S. (1905/1996) Tres ensayos de teoría sexual. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 7.

____ (1915a/1996) Pulsiones y destinos de pulsión. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 14.

____ (1915b/1196) La represión. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 14.

____ (1919/1996) Pegan a un niño: contribución al conocimiento de las perversiones sexuales. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 17.

____ (1927/1996) Fetichismo. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 21.

Hisgail F. (2007). Pedofilia: um estudo psicanalítico. São Paulo: Iluminuras.

Lacan J. (1958/1998). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.





Abstract
The main target of the pedophile perversion is the child who is still undefined sexually. Essentially, what the pedophile looks for in this child is the embodiment of the refusal of castration and of sex difference. He looks for himself, to make himself appear in the image of the child. Child pornography, in turn, registers in imagination the pedophile act, legitimated and legalized. The ideas of Serge André (Lausanne, 1999) that I rework in this text have great value in a field in which metapsychological hypotheses are scarce.


Keywords
perversion; pedophilia; virtual pedophilia; child pornography; metapsychology; refusal.

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 TEXTO

Observações sobre a pedofilia

Remarks on pedophilia
Lúcia Barbero Fuks

Desde o começo de meu trabalho de supervisão clínica junto a profissionais que, no âmbito público, assumem o importante, mas difícil encargo de dar assistência a crianças e jovens afetados por experiências de abuso sexual e às suas famílias, desenvolvi um forte interesse pela contribuição possível da teorização metapsicológica para a compreensão e investigação da complexidade subjetiva nelas posta em jogo. Formulei assim hipóteses sobre o papel do pai abusador, da mãe, do contexto social e das dificuldades, no campo terapêutico, quanto ao reconhecimento e à escuta do sofrimento subjetivo das crianças, devido à vigência e à extensão das defesas em todos os envolvidos. Entre outras, destaco a seguinte, que figura num trabalho publicado há alguns anos nesta mesma revista:

 

O abuso sexual representa uma verdadeira catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica que afeta seus distintos aspectos. É um tipo de violência diferente de outras. Implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação-limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afeta o núcleo mais pessoal e básico da identidade: o corpo[1].

 

Nos últimos anos, e na medida em que no campo dos abusos sexuais se tornou perceptível e premente a problemática da pedofilia, o interesse mencionado se estendeu às investigações psicanalíticas clínicas e teóricas nessa área, e aos complexos desafios da elaboração metapsicológica que a mesma suscita.

 

Do ponto de vista psicanalítico, a pedofilia tem sido considerada uma perversão sexual que envolve fantasias sexuais da primeira infância abrigadas no complexo de Édipo, período da intensa ambivalência da criança em relação aos pais. O ato pedófilo caracteriza-se pela atitude de desafiar a lei simbólica da interdição do incesto: na tentativa de mascarar o abuso sexual, o adulto seduz e impõe sobre a criança um tipo de ligação sigilosa.

 

Nessa situação, o corpo infantil torna-se objeto de desejo erótico - e, nesse sentido, a pornografia infantil eletrônica preconiza a erotização precoce nas imagens evocadas da cena sexual. Serge André (1999) observa que o discurso do pedófilo afirma uma tese segundo a qual a criança consente ou participa das relações sexuais propostas, de modo que ambos vivam o "verdadeiro amor". Sem defesa, a criança reage até onde pode. Com isso, o ato pedófilo busca anular as diferenças geracionais da espécie humana, da mesma forma que, por meio da pedofilia virtual, pretende converter a proibição do incesto em permissividade[2].

 

Várias razões dão conta de que seja raro um pedófilo procurar ajuda terapêutica. A primeira delas é o risco de sanções legais: como sabem que os profissionais da saúde têm o dever de denunciar esses casos (art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente), veem-se receosos de denunciar a si mesmos. Trata-se, então, de um segredo que se guarda até que seja descoberto. Entre outros autores, Fanny Hisgail tem trabalhado amplamente esta temática, enfatizando a análise da pedofilia virtual[3].

 

A partir da década de noventa, a popularização da internet aumentou a distribuição da pornografia online. As imagens veiculadas, além de atiçar o desejo dos pedófilos, representam um meio eficaz de seduzir as próprias crianças, da mesma forma que despertam a curiosidade de alguns jovens e adultos. Além disso, a disseminação das imagens pornográficas de crianças em atividade sexual revelou o mundo imaginário do ato pedófilo. A circulação desse material ampliou-se, tomando proporções que extrapolam o controle social (o Brasil está atualmente em décimo lugar no ranking dos países hospedeiros de sites de pornografia infantil). A produção e difusão são atividades praticadas por homens, entre 25 e 40 anos, de razoável nível socioeconômico.

 

A pornografia infantil desponta como um sintoma da cultura atual, envolvendo redes internacionais que atuam em territórios nacionais, o que exige de todos uma ação conjunta de combate. A vulnerabilidade das crianças no contexto real e virtual da pornografia deve servir de alerta para a sociedade, para os educadores e para os pais. Cabe trabalhar também formas de prevenção, pois se sabe que as vítimas de abuso sexual na infância podem mais tarde perpetrar os mesmos crimes aos quais foram submetidas, e até em maior grau, caso a pornografia infantil represente para o agente a possibilidade de se desatar das amarras da inibição sexual.

 

Entre as várias maneiras de abordar os conceitos de exploração comercial e sexual da infância, vale distinguir a pedofilia real, que se estende a partir do contato carnal com a criança, da pedofilia virtual, como forma de representação da sexualidade perversa polimorfa na pornografia infantil.

 

O ato pedófilo constitui a parte visível desse iceberg, de modo que não devemos nos restringir à atuação dos pedófilos como seus únicos exploradores. Ambas as variedades de pedofilia real e virtual englobam igualmente os molestadores de crianças, cuja intenção seria fomentar a exploração sexual, além de tornar pornográficas as "representações" da "inocência" infantil, o que varia segundo o uso da imagem. A utilização desse material (fotos, vídeos, etc.) tem a finalidade de abolir a inibição, apresentando o desejo sexual infantil, como se fosse conforme à fantasia do pedófilo.

 

Em relação ao passado de abuso, existe a hipótese diagnóstica de que uma lembrança, a recordação de alguma imagem ou a figuração de agressão sexual, evocada pela difusão pornográfica, tenha efeito sobre o pedófilo. Desse modo, quando o sujeito se identifica com o personagem atuante da pornografia, a lembrança deixaria de ser apenas mental, fantasmática, narcísica e virtual. Assim, a pornografia infantil registra no imaginário o ato pedófilo legitimado e legalizado. A perniciosidade da pornografia demonstra quão grave é a atuação do desejo sexual por menores, que, ao situar a criança no campo das formas rudimentares de satisfação do autoerotismo, desconsidera sua fragilidade frente ao poder do pedófilo.

 

Uma constelação psíquica como a que conduz à prática da pedofilia é necessariamente complexa, e por isso encontramos entre os analistas que se ocuparam dela uma ênfase maior ou menor em determinados aspectos dela. Alguns destacam o gozo em dominar a criança, e sugerem que escolhê-la como parceira sexual aponta para uma identificação narcísica com ela, possivelmente baseada em processos recalcados, mal resolvidos, e por vezes insolúveis. Segundo P. Dunaigre, por exemplo, é possível pensar a pedofilia na perspectiva da realidade psíquica especular, das imagens que se confrontam entre uma criança interna e a outra externa. A criança interna "representa o lado infantil do adulto que permaneceu no limbo, uma carta que ainda não chegou ao destino. Uma criança que, no passado, foi atormentada por desejos contraditórios e ambíguos em relação à figura dos pais. Uma criança que decidiu calar para sempre sobre uma angústia. Quando se torna adulta, espera que a criança externa dê voz ao silêncio que fora sepultado na infância"[4].

 

Já Serge André postula algo ligeiramente distinto, afirmando que o pedófilo concebe uma rivalidade profunda com o amor maternal, como se a mãe tivesse roubado do pai a parte erótica do amor que ele tinha com a criança.

 

No que se refere à lei, tudo indica que o sujeito - ao mesmo tempo que reconhece o ato ilícito - procura extrair dele uma legalidade ímpar e unânime. Como consequência do seu desejo, sente-se rejeitado por todos, exceto pelas crianças, merecedoras de atenção e auxílio contra as maldades do mundo. Ele as vê como capazes de decidir o que fazem, lançando-as numa precocidade erótica que não condiz com a experiência da infância.

 

Não se sabe ao certo quantos usuários de pornografia infantil progridem do "só olhar" para o "praticar", mas, sob diferentes aspectos, o corpo infantil pressupõe para eles uma mina de sensações e tentações. Na pedofilia, o adulto não recua, e realiza em ato as propriedades singulares da sua fantasia sexual, até ser, eventualmente, denunciado e preso.

 

Pedofilia, perversão e pulsão

A noção de pulsão é um elemento central na economia psíquica das perversões: se em todos os seres humanos ela representa uma peça-chave na evolução da sexualidade infantil, nelas é o vetor psíquico que vai atualizar o processo perverso.

 

No primeiro dos ensaios em que Freud apresenta sua teoria da sexualidade, a noção de pulsão lhe permite definir o lugar das "aberrações sexuais" de acordo com uma dupla determinação: como desvios relativos ao objeto da pulsão sexual, e como desvios relativos a seu objetivo. Nos dois casos, elas correspondem à expressão aumentada de algo presente na sexualidade normal:

 

A experiência mostra que a maioria destes desvios, nos casos menos graves, estão raramente ausentes da vida sexual dos sujeitos normais, que os veem simplesmente como particularidades de sua vida íntima. Pode-se dizer que em nenhum indivíduo normal falta um elemento que se pode designar como perverso, acrescentando-se ao objetivo sexual normal[5]

 

E Freud prossegue, afirmando que, nas neuroses, "os sintomas mórbidos não se desenvolvem em detrimento da pulsão sexual normal, mas representam uma conversão de pulsões que deveriam ser denominadas perversas, se pudessem, sem ser descartadas da consciência, encontrar uma expressão em atos imaginários ou reais. Os sintomas formam-se então em parte a expensas da sexualidade anormal; a neurose é dessa forma o negativo da perversão"[6].

 

Após a diferenciação metapsicológica entre neurose e perversão, o estudo das perversões o conduz à ideia de pulsão parcial. Nos neuróticos, como na criança, as pulsões parciais dialetizam o conjunto da dinâmica sexual[7]. É porque a sexualidade perversa está sujeita à influência das pulsões parciais que a famosa "perversidade polimorfa" se institui diretamente no centro da organização sexual infantil.

 

Devido ao funcionamento de seus componentes parciais, a sexualidade da criança é necessariamente polimorfa, e é perversa no sentido do autoerotismo e do jogo das atividades sexuais parcelares, que impõe outros objetos e outros objetivos que não o objeto e o objetivo sexuais "normais". Essas pulsões parciais podem, todavia, persistir como "tendências perversas" ou integrar-se no ato sexual normal sob a forma de prazer preliminar.

 

A organização das perversões no adulto encontra então sua explicação na reaparição de um ou de vários componentes da sexualidade infantil. Isso quer dizer que as perversões resultam de uma regressão a um estágio anterior da evolução libidinal, estado em que o sujeito permaneceria eletivamente fixado.

 

Na perspectiva freudiana, a sexualidade perversa é, portanto, menos algo que se encontra à margem do processo sexual que uma disposição inevitável no desenvolvimento psicossexual de todo sujeito, parte do próprio fundamento da sexualidade normal. A perversão subtrai-se assim às apreciações ideológicas, na medida em que não é mais considerada desde o ponto de vista moral (como "aberração"), mas como desvio possível do processo sexual humano em geral.

 

Em "Pulsões e destinos das pulsões" (1915), Freud distingue o objetivo e o objeto da pulsão. Estas novas considerações permitem uma melhor compreensão das manifestações perversas da sexualidade, especialmente do ponto de vista da "elasticidade dos modos de satisfação pulsional". Escreve ele: "o objetivo de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser obtida suprimindo o estado de excitação na fonte dela. Mas ainda que esse objetivo final permaneça invariável para cada pulsão, diversos caminhos podem levar a ele, de modo que diferentes objetivos mais próximos ou intermediários podem oferecer-se para uma pulsão; esses objetivos combinam-se ou permutam-se uns pelos outros"[8].

 

Freud introduz também outra precisão fundamental a propósito do objeto da pulsão sexual: ele é totalmente variável, e portanto sua escolha se explica apenas pela história do sujeito. O mesmo fator dá conta da grande estabilidade dessa escolha: "quando a ligação da pulsão ao objeto é particularmente íntima, distingue-se pelo termo fixação, e se realiza nos períodos iniciais de desenvolvimento da pulsão, dando fim à mobilidade desta e resistindo intensamente a toda dissolução"[9].

 

Na década de 1920, Freud introduz os conceitos de fase fálica e complexo de castração, derivando este último da experiência de confronto, por parte da criança, com as diferenças sexuais anatômicas, seguida da tentativa de elaboração psíquica através das teorias sexuais infantis. Isso implica uma reformulação fundamental nas teorias freudianas relativas ao desenvolvimento da sexualidade infantil, ao devir do complexo de Édipo e suas diferenças em cada sexo, e à importância de sua elaboração tanto para o processo de sexuação, quanto para a estruturação definitiva do aparelho psíquico.

 

Seguindo esta trilha teórica, em "O fetichismo" (1927) encontramos uma concepção mais elaborada da psicopatologia da perversão, segundo a qual, no confronto com a diferença sexual, o sujeito fetichista permanece fixado à crença na existência de um pênis na mãe, dotado de um valor superlativo que corresponde ao seu próprio narcisismo fálico, e se defende do pânico gerado pela possibilidade da ausência dele através de um mecanismo complexo: recusa a percepção da realidade da sua falta, e as consequências da mesma para o próprio narcisismo, estabelecendo uma clivagem de sua vida psíquica em duas partes. Numa delas, o falo materno perdura imaginariamente como significação inconsciente do fetiche; na outra, a relação com a realidade factual se mantém sem ser afetada (o que diferencia este tipo de clivagem da variedade psicótica).

 

Da recusa da realidade da castração à clivagem do eu, tudo se passa então como se, nas perversões, os sujeitos mantivessem este paradoxo psíquico que consiste em saber alguma coisa da castração, querendo ao mesmo tempo nada saber dela. Nesse sentido, as perversões introduzem-nos não somente nas teorias sexuais infantis, mas ainda, mais geralmente, na questão da diferença dos sexos que elas colocam. Do ponto de vista freudiano, a organização perversa enraíza-se assim na angústia de castração e na mobilização permanente de dispositivos defensivos destinados a contorná-la.

 

Entre os que se dedicaram ao estudo desses problemas depois de Freud, cabe mencionar, ainda que de passagem (pois não é nosso objetivo neste artigo refazer a evolução do conceito de perversão na história da teoria), a contribuição de ­Jacques Lacan sobre o complexo de Édipo. Na sua conceituação, para o futuro perverso obstrui-se a possibilidade de aceitar facilmente a castração simbólica, que tem como única função fazer advir o real da diferença dos sexos como causa do desejo para o sujeito.

 

O pai não pode ser despojado de sua investidura de rival fálico sem a intersecção desse significante da falta do Outro, que incita a criança a abandonar o registro do ser (ser o falo) em beneficio do registro do ter (ter o falo). A passagem do ser ao ter se efetua na medida em que o pai aparece à criança como aquele que supostamente detém o falo desejado pela mãe. Esta atribuição fálica, que investe o pai na posição de pai simbólico, confere-lhe a autoridade de representante da lei. Por essa razão, a mediação da interdição do incesto institui uma função estruturante para a criança.

 

Não é, contudo, porque esta sabe que o pai é possuidor do pênis que necessariamente irá considerar que ele detém o falo. Além do atributo anatômico, a criança só pode supor a atribuição fálica se descobrir, como diz Lacan[10], que o pai soube se fazer preferir pela mãe tornando-se objeto de seu desejo.

 

É na medida desse investimento libidinal do pai que a criança descobre que o lugar do gozo materno não mais se situa junto a ela. Reconhecer que a negação do perverso baseia-se essencialmente na questão do desejo da mãe pelo pai é enunciar, de maneira implícita, que essa recusa é fundamentalmente aquela da diferença dos sexos.

 

Uma metapsicologia da perversão pedófila

Não é fácil, na pesquisa bibliográfica, encontrar trabalhos que contenham uma hipótese psicopatológica sobre a pedofilia. Nessa perspectiva, a conferência de Serge André sobre "A significação da pedofilia" realiza uma articulação em que se delineiam uma metapsicologia e uma psicopatologia psicanalítica do pedófilo muito produtivas. Cabe salientar que, para ele, "a perversão é perfeitamente estrutural, mesmo se incomoda o mundo, ou todo mundo"[11] (p. 4). Assim, a existência das perversões coloca, com uma evidente provocação, uma questão que aponta para a essência mesma da sexualidade humana.

 

Como neste trabalho nosso interesse é procurar elucidar algo da dinâmica e do comportamento do perverso, deixaremos momentaneamente de lado os efeitos obviamente deletérios dele sobre o alvo do seu desejo (a criança), para nos concentrarmos na análise do analista francês quanto à organização perversa. Em todas as suas variantes, ela apresenta quatro eixos principais; a seguir, tentarei definir cada um desses eixos, e elucidar algumas questões que suscitam.

 

1. A lógica da recusa: na perversão, o mecanismo fundante do inconsciente é diferente do que encontramos na neurose. Nesta última, a denegação (Verneinung) determina e sustenta o recalque (Verdrängung). É o que nos mostra o conhecido exemplo do artigo de Freud "A negativa": quando um neurótico declara que "essa mulher que aparece no sonho não é minha mãe", na realidade quer dizer que essa mulher é sua mãe. Mas só pode reconhecê-lo ou confessá-lo afetando esse enunciado com uma negação: "não é". Para o perverso, o mecanismo é mais complexo e mais sutil, como vimos atrás. O que Freud chamou de recusa (Verleugnung) consiste em postular simultaneamente duas afirmações contraditórias: a) sim, a mãe está castrada; b) não, a mãe não está castrada.

 

Basicamente, a recusa refere-se à aceitação da castração da mãe. Esta significa que ela não possui o objeto de seu desejo, que este só pode se inscrever como falta, e que essa falta é estrutural. Em outros termos, na recusa que o perverso opõe à castração existe uma face que reconhece a falta estrutural do objeto do desejo, mas também, e simultaneamente, outra que afirma a existência positiva desse objeto. Ora, afirma Serge André, se o objeto do desejo é suposto existir concretamente, se é possível captá-lo e designá-lo através do sentido, deduz-se que o sujeito só pode querer possuí-lo e consumi-lo absolutamente - e repetir infinitamente esse movimento.

 

2. No que se refere ao Édipo, o perverso se caracteriza por atribuir ao pai um lugar especial em cada um dos níveis em que ele é chamado a cumprir sua função. Como o perverso não é psicótico, enquanto instância simbólica o pai é reconhecido como depositário da lei, da proibição e da autoridade. Igualmente, os atributos do pai imaginário, herói ou covarde, dominador ou distante, mostram-se presentes no sujeito. É no nível da relação com o pai real que a perversão se manifesta mais claramente. No triângulo edipiano, o pai é sistematicamente deixado de lado pelo discurso materno que envolve o sujeito. Convertido assim num personagem irrisório, uma pura ficção, um faz de conta, o pai se vê reduzido a ser unicamente uma espécie de ator de comédia a quem se solicita atuar como pai, mas sem que esse papel implique a menor consequência: é um pai "para o teatro". O resultado para o filho é que a lei, a autoridade e a proibição estão presentes e são reconhecidas teoricamente, mas ficando reduzidas a meras convenções formais. Se a comédia humana é para o neurótico uma verdade em que ele só pode figurar como um participante entre outros, sem sabê-lo (situação com a qual lhe é difícil se resignar), para o perverso essa comédia é revelada desde o início, desmascarada em sua facticidade, e ele ocupa seu lugar com plena consciência. Consciência que poderíamos considerar como cínica, mais do que lúcida.

 

O universo subjetivo do perverso se encontra desdobrado em dois lugares e dois discursos cuja contradição não impede a coexistência: de um lado, a cena pública; do outro, a cena privada. A primeira corresponde a um mundo em que leis, usos e convenções sociais são respeitados e celebrados com zelo, por vezes caricatural. A cena privada, pelo contrário, é o lugar da verdade escondida, do segredo compartilhado com a mãe, e acaba por desmentir a anterior. Entre a mãe e a criança, assim como depois entre o perverso e seu partenaire, realiza-se o ritual (sempre teatral) que demonstra que o sujeito tem suas razões para se eximir das leis comuns, porque atribui a si conhecimentos privilegiados sobre os quais funda sua singularidade.

 

3. O uso do fantasma. No nível do conteúdo, pode-se afirmar que todo fantasma é essencialmente perverso. O cenário imaginário no qual o neurótico conjuga seu desejo e seu gozo não é nada mais, afinal, que o modo no qual ele secretamente se imagina perverso. Não é, portanto, o conteúdo do fantasma o que permite diferenciar o perverso do neurótico, mas seu uso. Tesouro secreto, estritamente privado no neurótico (de tal modo que frequentemente são precisos anos de análise para que consinta em começar a falar disso), o fantasma é para o perverso, pelo contrario, uma construção que só toma sentido quando se faz pública. Para o neurótico, o fantasma é uma atividade solitária: é a parte de sua vida que se subtrai ao laço social. Inversamente, o perverso se serve do fantasma para criar um laço social em que sua singularidade possa se realizar. Para ele, o fantasma só tem sentido e função se for colocado em ato o seu enunciado, de tal modo que consiga incluir um outro, com ou sem seu consentimento, em seu cenário. É o que aparece, visto de fora, como uma tentativa de sedução, de manipulação ou de corrupção do partenaire. Por exemplo, o sádico exigirá de sua vítima que ela mesma lhe peça, acusando-se de uma ou outra falta, o castigo que vai lhe infligir - castigo que aparecerá então como "merecido".

 

Por que essa necessidade de obter a cumplicidade forçada do outro? Porque na perversão o fantasma tem uma função demonstrativa. O perverso só pode se assegurar da sua subjetividade com a condição de se fazer aparecer como sujeito positivado no outro (manobra na qual se vê apenas como um agente). Trata-se de um sujeito para o qual é essencial, vital, afirmar que há continuidade entre desejo e gozo: na sua perspectiva, um desejo que não termina em gozo não passa de mentira, de enganação ou de covardia. Essa mentira e essa covardia são o que ele denuncia incansavelmente como constitutivas da realidade do neurótico e da ordem social: como sabemos desde o Marquês de Sade, sua alegação é que o neurótico as aceita porque não se atreve a gozar verdadeiramente, porque se proíbe o gozo (em todo caso, a partir de certo ponto). O gozo constitui o valor supremo do universo perverso, enquanto na neurose esse valor é o desejo. Por isso, o neurótico se sustenta perfeitamente em um desejo insatisfeito (na histeria), em um desejo impossível (na neurose obsessiva), ou em um desejo de se prevenir (na fobia). O neurótico encontra seu apoio num desejo cujo objeto sempre falta; cada vez que acredita tê-lo alcançado, desilude-se rapidamente - não, não era "isso". Por essa razão, na neurose, o gozo vai sempre acompanhado de culpabilidade. Já aquilo que o perverso quer demonstrar, aquilo que ele tanto se esforça por convencer o outro (se necessário pela força) não é somente a existência do gozo, mas sua predominância sobre o desejo. Para ele, o desejo não pode ser outra coisa que desejo de gozar, e não desejo de desejo ou desejo de desejar, como para o neurótico.

 

4. A relação com a lei e o gozo. A necessidade de tal demonstração fica tão premente que cabe perguntar se a perversão conhece a dialética do desejo, ou se pura e simplesmente a escamoteia. Em todo caso, sua compreensão reclama uma teoria do desejo e do gozo diferente daquela à qual nos referimos no contexto da clínica das neuroses. Para entrar nessa teoria, é preciso aproximar-se da relação subjetiva que o perverso mantém com a Lei. A opinião comum tende a confundir perversão e transgressão; entretanto, seria errôneo assimilar o perverso a um "fora da lei" no sentido jurídico, mesmo se a interrogação cínica, o desafio e a provocação das instâncias que representam a lei constituem dados constantes na vida dele. Este ponto é importante, e vale expô-lo com mais detalhe.

 

Se o perverso desafia a lei, e mais frequentemente ainda a julga, não é porque se considere anarquista. Pelo contrário, quando critica ou infringe a lei positiva e os bons costumes, o faz em nome de outra lei, lei suprema e bastante mais tirânica que a da sociedade, porque não admite nenhuma possibilidade de transgressão, nenhum desfalecimento, nenhuma debilidade humana, nenhum perdão. E por quê? Porque essa lei superior que se inscreve no coração da estrutura perversa não é, por essência, humana: é uma lei natural, cuja existência o perverso é capaz de sustentar e de argumentar com grande força de persuasão. Seu texto não escrito promulga um único preceito: a obrigação de gozar. Resumindo, quando o perverso "transgride", como diz a linguagem comum, na realidade só obedece[12]. Não é um revolucionário, mas um servidor modelo, um funcionário zeloso. Segundo sua lógica, não é ele quem deseja, não é sequer o outro: é a Lei (do gozo) que impõe suas ações. Mais ainda: esta lei não deseja, exige. Empurre-se o sujeito perverso até seus últimos redutos, e, se ele for sincero e aceitar confiar-se, será possível ver seu discurso transformar-se numa verdadeira lição moral.

 

Não há nada mais sensível para o perverso que o conceito de "virtude". A perversão conduz a uma apologia paradoxal da virtude. Estranha virtude, sem dúvida! Aqui de novo a oposição entre o mundo do neurótico e o do perverso é diametral. Para o primeiro, a lei é por definição uma proibição dirigida ao gozo, e a virtude é o respeito dos tabus que dela resultam, enquanto para o perverso a lei governa o gozo de uma maneira absoluta (o que está proibido, em certo modo, é não gozar). Assim, a virtude consiste neste caso em se mostrar à altura das exigências de tal imperativo absoluto - até o mal supremo.

 

E aqui retomamos a criança alvo da versão pedófila da organização descrita por Serge André. Como diz Hélia Barbosa:

 

O abuso sexual se caracteriza pela utilização pelo adulto do corpo da criança ou do adolescente para fins sexuais sem o consentimento da vítima, que sofre coação física, emocional ou psicológica[13].

 

A criança, segundo Freud, constrói suas próprias teorias sexuais infantis a partir da sua experiência corporal e da sua curiosidade sexual, unidas à resistência contra versões romanceadas que escondem a sexualidade, por exemplo sobre a origem das crianças. Estas fantasias organizadas em teorias vão sendo reconfiguradas em função dos devires pulsionais, do predomínios das diferentes zonas erógenas, das escolhas de objeto e da construção de linguagens para falar entre crianças e com os adultos (o que Ferenczi chamará "linguagem da ternura"); tudo isso tem uma função simbólica fundamental para a elaboração das vicissitudes da passagem pelo Édipo. Entretanto, a intervenção sexual ativa, às vezes por parte de crianças mais velhas, e principalmente a supererotização do campo pelo poder do adulto e sua "linguagem da paixão" (Ferenczi), invade o espaço imaginativo e lúdico, destruindo ou bloqueando os recursos elaborativos da criança. Trata-se de uma dimensão que vem se tornando cada vez mais clara quanto à compreensão do sofrimento traumático causado pelo abuso sexual infantil.

 

O que dissemos antes quanto à pornografia, que torna artificial a sexualidade infantil, sugere um vínculo entre o tipo de realidade fantasmática, mental e narcísica presente na psique do perverso e o seu objeto. Se o ponto de mira da perversão pedófila é a criança que não está definida sexualmente, isso significa que ele procura nela a encarnação da recusa da castração e da diferença dos sexos. O pedófilo procura encontrar a si mesmo, fazer-se aparecer na figura infantil. Nisso se evidencia como permaneceu fixado numa eterna criança imaginária, sujeito a ser o objeto que poderia preencher a falta no desejo da sua mãe. Pouco lhe importa a criança real, muito menos a sensibilidade dela ou as consequências tenebrosas que o abuso sexual poderá acarretar ao seu psiquismo ainda em formação: na lógica pedófila, a criança encarna a recusa da divisão do sujeito. É o que tive oportunidade de descrever no artigo mencionado há pouco, e que o estudo metapsicológico esboçado no presente trabalho visa a complementar:

 

A relação de abuso é a imposição de um ato violento frente ao qual a condição de sujeito do outro fica suspensa ou abolida, e em que não existe a possibilidade de negativa imediata do ato. No abuso de crianças o agravante é que a violência é exercida por um adulto, representante do poder, e portador dos emblemas da cultura"[14].

 

Ou seja, na lógica pedófila, a criança encarna a recusa à divisão do sujeito, porque encarna o mito de uma completude em que o desejo e o gozo não se separam. O preço que ela com certeza pagará por ter sido induzida a participar de uma cena para a qual não está nem física nem emocionalmente preparada será altíssimo.


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