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44
O bem- e o mal-estar
ano XXIII - junho de 2010
240 páginas
capa: Paulo Pasta
  
 

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Resumo
Resenha de Bernardo Tanis & Magda Guimarães Khouri (orgs.), A psicanálise na trama das cidades, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2009, 447 p.


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 LEITURA

Para além dos consultórios

A psicanálise na trama das cidades


Beyond the therapy room

O livro organizado por Bernardo Tanis e Magda Guimarães Khouri é o resultado de um trabalho desenvolvido por dois anos, sob a iniciativa conjunta da Diretoria de Comunidade e Cultura da Federação de Psicanálise Latino-Americana (fepal) e da Diretoria de Cultura e Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Os textos selecionados para a coletânea provêm de um simpósio latino-americano realizado em São Paulo em 2008, do qual participaram analistas do Brasil, da Argentina, do Peru e do México. Outra fonte de textos foram quatro encontros denominados “Café Cultural”, promovidos pela Comissão de Eventos Culturais da sbpsp, que reuniu pensadores situados fora do campo estritamente psicanalítico.

A partir dos textos originados desses eventos, os organizadores produziram um livro mesclado pelas contribuições de analistas e de não analistas, brasileiros e de outros países latinoamericanos, cujo foco converge, grosso modo, para o exame das relações possíveis entre a psicanálise e a cidade, mais precisamente, sobre as metrópoles latino-americanas da atualidade.

Aberto então este leque de abordagens tão distintas, o que resulta para o leitor é um livro que pode ser percebido como um rico diálogo heterodoxo. Não só existem pontos de vista que se diferenciam pelo lugar de onde cada autor escreve – o jornalismo, a crítica de arte, o cinema, a arquitetura, o urbanismo, a história das cidades – como também coexistem leituras psicanalíticas bastante diferentes. E que se diferenciam não só pelo tipo de abordagem do problema das relações entre psiquismo e cidade, mas também pelo posicionamento político-ideológico que sutilmente sustenta o discurso psicanalítico de cada um dos autores psicanalistas. Alguns, naturalmente, mais avançados que outros, o que não deixa de ser natural.

Alguns dos capítulos são trabalhos de cunho teórico, que buscam fazer um diálogo entre a psicanálise e as teorias contemporâneas do sujeito imerso na metrópole, com todas as consequências psíquicas que podem advir de tal condição. São textos, pode-se dizer, preocupados com a subjetividade contemporânea, que enfatizam as dificuldades e restrições impostas pelo espaço urbano, mas que falam também da criatividade, das iniciativas e das transformações de cunho psíquico que se processam em um ser humano constantemente em adaptação.

Outros capítulos se ligam mais diretamente à clínica social. Neles encontramos reflexões e relatos acerca da incidência da metrópole sobre o psiquismo, a partir do que os autores procuram deduzir dispositivos clínicos mais adequados. São trabalhos que vêm sendo desenvolvidos em instituições e grupos sociais, voltados ao sujeito urbano contemporâneo. Tais trabalhos constituem uma verdadeira saída da psicanálise do consultório para ir ao encontro de demandas sociais que, de outro modo, estariam excluídas dos benefícios que ela poderia lhes oferecer.

Ainda um terceiro grupo de trabalhos seria aquele composto por artigos de autores não psicanalistas, que, ao que se depreende, foram convidados a fornecer aos analistas subsídios de outros campos do saber que pudessem acrescentar, para o analista, informações e reflexões que lhe permitam ampliar seu horizonte sobre a complexa problemática das grandes cidades hoje em dia. Nesse conjunto encontramos verdadeiras aulas para aquele que dispõe primordialmente da ciência psicanalítica. A visão urbanística do homem na cidade atual, os imperativos ideológicos que se escondem por trás das formas como as cidades foram se construindo através dos tempos, a concepção de relação entre as pessoas que subjaz a cada projeto urbanístico etc. têm muito a acrescentar à visão psicanalítica. Sem tais subsídios, o analista poderia arriscar-se a deduzir, com o seu instrumento, fenômenos cujos determinantes fundamentais se desvelam prioritariamente a partir de dados outros que não aqueles provenientes da escuta estrita da subjetividade.

Vale ressaltar, a respeito da coletânea, aquilo que subjaz a uma iniciativa como tal. O livro é o testemunho de nova e bem-vinda postura que viceja entre certo segmento dos psicanalistas contemporâneos, que implica a tarefa de buscar um esteio epistemológico sólido, que se traduz pela busca de subsídios extra-analíticos com vista a retirar a psicanálise do “ensimesmamento” que grassou no campo por tanto tempo. O saber psicanalítico não é estanque, devendo alimentarse também de dados advindos de sua circunvizinhança. O exemplo mais patético do fechamento se dá quando assistimos, por exemplo, a tentativas de explicação de fenômenos sociais, culturais, políticos etc. que se limitam ao referencial teórico da psicanálise. Os que assim fazem julgam ser a psicanálise uma espécie de “ciências das ciências”, isto é, o discurso que tudo desvenda e, portanto, pode ter a última palavra. O tom de fundo do livro, é claro, não segue por este caminho; ao contrário, faz-lhe um salutar contraponto.

O princípio de fundo que, pode-se dizer, confere organicidade ao livro, é enunciado por Bernardo Tanis no belo texto inicial – “Cidade e subjetividade” – que traz, digamos, um “programa” a ser cumprido. Trata-se da enunciação da necessidade de os psicanalistas participarem do debate sobre a “configuração espaço-temporal que habitamos e nos habita”, como propõem os organizadores. Tanis recorre a uma citação de Renato Mezan que bem sintetiza a posição intelectual que sustenta a empreitada: os fatores que engendram um certo modo de organização psíquica são de natureza extraindividuais.

Trazendo esta constatação, com suas devidas consequências, para o domínio do psicanalista, Tanis assim sintetiza o propósito da tarefa: “Como psicanalistas, sabemos que nossa práxis envolve o campo da pulsão e da representação. Somente a partir de uma linguagem encarnada, que ao mesmo tempo mascara e revela, encontramos as condições que possibilitam a criação de novos sentidos, da transformação das posições subjetivas cristalizadas oferecendo condições de simbolização e de sublimação. Somos corpo que fala e somos falados. Esse é o modo pelo qual nossa inscrição na cultura se manifesta” (p. 21).

Estabelecido este programa, parte-se, então, para uma viagem no recorte da metrópole latino-americana, que é, por excelência, o espaço que nos toca: violência, trânsito, consequências do intenso fluxo migratório sobre as identidades, ritmos incompatíveis com a metabolização da experiência etc., tudo isso examinado no transcorrer do trabalho com a necessária abertura epistemológica. Não deixa de ser algo alvissareiro apreciar um conjunto de trabalhos sobre o mundo urbano que vai se diferenciando de uma teoria geral da cidade rumo a um recorte sobre a realidade da nossa metrópole, numa América Latina tão sofrida quanto criativa.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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