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Resumo
Resenha de Abrão Slavutzky, Humor é coisa séria, Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2014, 344 p.


Autor(es)
Edson Luiz André de Sousa
é psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS. Professor do PPG Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS.

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 LEITURA

O humor e seus múltiplos avessos [Humor é coisa séria]

Humor and its multiple reverses
Edson Luiz André de Sousa

Resenha de Abrão Slavutzky, Humor é coisa séria, Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2014, 344 p.

 

No filme A pedra da paciência do diretor e escritor afegão Atiq Rahimi, a vida revela sua face de horror ao vermos o imponderável da guerra, da crueldade, do sofrimento, do desespero. Contudo, no meio desse caos de um Afeganistão ferido, uma mulher resiste com as armas que tem: sua esperança e o valor que dá à vida. Ela tem que se dividir entre o cuidado com duas filhas pequenas e o marido, em estado vegetativo, com um tiro no pescoço. É para ele que a mulher narra sua vida, suas dores, seus pequenos sonhos e segredos. Em determinado momento sua casa é invadida por dois soldados e, para se proteger de ser violentada, ela diz ser prostituta, o que desencoraja um dos soldados. Contudo, o outro volta no dia seguinte com dinheiro para pagar por sexo. Ele é muito jovem, e com uma gagueira significativa. A mulher vive a situação de violência em silêncio, contudo, ao narrar ao marido em coma o que está acontecendo, solta uma gargalhada ao lembrar de uma conversa com uma amiga. Contara a ela que o soldado tremia e que ejaculara muito rápido. A amiga disse: "Devias dizer a ele para falar com a língua de baixo e fazer sexo com a de cima". Aquela gargalhada tinha um ar de triunfo. É o único momento de riso nesse cenário de horror, e temos a sensação de que a cena de humor lhe restitui sua dignidade, sua força e até mesmo sua esperança. O humor foi a sua arma. Esta cena sintoniza com o que escreve Viktor Frankl, psiquiatra que sobreviveu a Auschwitz. "O humor foi uma arma usada na luta contra o desespero" (p. 244) e que Slavutzky refere no capítulo 14 intitulado "O humor no holocausto".

Humor é coisa séria nos apresenta, passo a passo, uma espécie de anatomia do humor, desdobrando inúmeras interfaces, algumas delas surpreendentes: do humor infantil ao humor no holocausto, do humor na literatura ao humor na vida cotidiana, do humor na clínica psicanalítica ao humor como princípio ético do viver. A beleza desse livro, contudo, se deve ao fato de que essa rica pesquisa sobre o humor é narrada com a destreza de um exímio contador de histórias. Slavutzky investiga esse tema há muitos anos, já publicou e organizou outros livros sobre humor, mas nessa obra, em particular, consegue associar a reflexão teórica com uma série de histórias sobre sua vida, sua infância, suas netas, seu trabalho clínico, sua experiência como paciente e tantas outras situações. O humor se desvela, portanto, não só como um objeto empírico sobre o qual o estudioso se debruça, mas como pulsação da própria vida do autor. O que nos faz lembrar, por meio de seu estilo de escrever, algo que sempre foi muito importante para Sigmund Freud, ou seja, transformar a própria experiência de vida como fonte de reflexão e material de estudo. Graças a isto sabemos muito de Freud lendo A interpretação dos sonhos, A psicopatologia da vida quotidiana, A piada e sua relação com o inconsciente, Moisés e a religião monoteísta e tantos outros.

Um dos fios centrais de argumentação do autor é a ideia de que o humor nos revela nossa fragilidade, nossas incertezas, nosso desamparo, de tal forma que podemos rir do que vemos. Rimos, portanto, de uma imagem em queda e esse riso não deixa de ser uma espécie de perdão endereçado a si mesmo, como sublinha Slavutzky. Aí está a rebeldia do humor: ele nos mostra os avessos que nos constituem, nossas zonas de recalque que podem ser compartilhadas quando conseguimos dizer de forma sutil e disfarçada o que efetivamente nos move. Esta foi uma das chaves de leitura de Sigmund Freud para pensar o estatuto do inconsciente no aparelho psíquico. Freud dedicou, sobretudo, dois importantes textos a essa questão: A piada e sua relação com o inconsciente, de 1905, e um pequeno artigo de 1927, "O humor". É nesse último texto que Slavutzky destaca a importância que Freud deu ao tema quando diz que o "humor é um dom precioso e raro".

O livro nos ajuda a percorrer grande parte de alguns clássicos da história do pensamento e da literatura que fizeram menção à função do humor. Isto indica a obstinação de pesquisa do autor que foi beber em inúmeras fontes, trazendo ao leitor paisagens literárias que nos ajudam a entender o humor em sua dimensão psíquica, política, histórica e artística. Vemos que já em Cícero, há dois mil anos, o humor é abordado efetivamente como uma coisa séria: "nenhum tipo de piada há, da qual não se extraiam matérias sérias e importantes", escreve Cícero na Arte Oratória (p. 93). O humor se faz, portanto, presente na história como um mecanismo potente de reflexão, entendimento do mundo e principalmente de ação. Como escreve Slavutzky na abertura do seu livro, uma forma de ver o mundo e de se posicionar diante dos caminhos que a vida nos confronta. Portanto, não deixa de ser uma estratégia de luta. Nesse sentido, o humor é necessariamente crítico, inconformado, provocador, inquieto. Também vemos nessa obra inúmeras definições de humor não só do ponto de vista psicanalítico, mas também em suas reverberações na história das ideias, na filosofia, na política e na arte.

Uma das imagens emblemáticas do autor que conduz algumas de suas reflexões é a de Charles Chaplin. Acompanhamos de forma comovente a infância de Slavutzky quando evoca a figura de Chaplin. Este último como um personagem crucial que o ajudou a sair de um período de silêncio, pois até os 4 anos não falava. De acordo com Slavutzky,

 

Chaplin fazia sonhar, a felicidade era possível, uma esperança de superar os obstáculos. Nem quando o Vagabundo ia por uma estrada sem fim vinha a tristeza, pois logo entendi que voltaria a vê-lo. O amor pelo humor nasceu vendo o rei dos desamparados e, agora, ao escrever, revivo a visão daquele menino em cima da cadeira, com a cabeça sonhadora. Sonho com as cenas da infância, o sonho do cinema que aliviou um pesadelo infantil, e só num distante divã comecei a juntar as peças de um complexo quebra-cabeça. (p. 215)

 

Através de Chaplin, o autor nos mostra a íntima relação entre humor e luto. Luto como trabalho psíquico que tenta dar conta daquilo que perdemos. Charles Chaplin, por exemplo, vai filmar O garoto dez dias depois de ter perdido seu filho recém-nascido. A arte surge como uma forma de sublimação e de curativo desse vazio. O humor pode ser pensado aí como uma potente compensação que o sujeito instaura em seu psiquismo como forma de abrir novos espaços de vida. Assim, parece ser muito precisa a afirmação de Francis Bacon quando lembra que "a imaginação foi dada ao homem para compensar o que ele não é, e um senso de humor para compensá-lo pelo que é" (p. 38).

Com esse livro podemos também acompanhar uma parte da história do humor no Brasil, pois são inúmeras as referências a alguns autores e personagens clássicos do humor em nosso país. Slavutzky se detém, entre outros, nos personagens Fradim (Henfil), Analista de Bagé (Luis Fernando Verissimo) e Amigo da Onça (Péricles). Comovente a reflexão que faz sobre o suicídio de Péricles, reproduzindo trechos de sua mensagem final e evidenciando, assim, a face de tristeza que é um dos componentes do humor. O autor evoca em outro trecho Mark Twain ao dizer que a fonte secreta do humor não é a alegria, mas a tristeza (p. 140). Contudo, trata-se de uma tristeza que é desarmada pelo humor, de uma tristeza diante da qual podemos rir. Poder rir de sua miséria como uma singela e poderosa libertação.

O humor produz muitos deslocamentos que permitem ao sujeito ver o mundo desde outra posição, abrindo, assim, outras possibilidades de vida. Portanto, o humor está muito próximo do ato de criação como aquele que produz brechas no discurso, abre pausas no tempo, nos permite navegar por desvios onde outros sentidos podem surgir. Fundamentalmente o humor se inscreve como um convite à surpresa, ao inesperado. Slavutzky se interroga sobre a função do humor na clínica psicanalítica. Se o ato analítico é fundamentalmente uma operação de abrir para o sujeito outras significações, seria possível pensar uma clínica sem a ferramenta do humor? Ao ler o livro de Abrão Slavutzky ficamos convencidos que não. O humor se apresenta como um potente instrumento de interpretação. Rimos fundamentalmente daquilo que, em nós, é frágil, inconsistente, ridículo, contraditório, recalcado. O riso, portanto, nos faz entrar em contato com essas imagens desde uma posição que não seria de subserviência, de paralisia, de padecimento. Tais imagens surgem como algo que nos constitui, mas que ao rirmos de nossa condição podemos, imaginariamente, produzir uma posição outra. Encontramos na vida de Freud inúmeros relatos de seu apurado senso de humor. Slavutzky traz alguns deles para seu livro, entre os quais a surpreendente saída que Freud encontrou no momento em que tinha que assinar um documento onde constava que a Gestapo sempre o tratara muito bem. Freud precisava assinar essa declaração como moeda de troca para poder deixar Viena. É bem conhecida a sutil estratégia do pai da psicanálise que assinou o papel, mas pediu ao oficial nazista para agregar um outro elemento. Assim, com a concordância do soldado nazista, Freud acrescentou à carta: "fui tão bem tratado que recomendo a Gestapo para todos"[1]. Aqui outro sentido se desvela, e o humor que advém dali é triunfante. Outra leitura se faz possível do texto que fora obrigado a assinar.

Abrão Slavutzky nos apresenta um livro que é ao mesmo tempo uma metapsicologia do humor, um tratado da história do humor no mundo das ideias, um fragmento de sua biografia com belos exemplos de superação e ampla indicação bibliográfica com dezenas de outras referências que certamente serão úteis para todos aqueles que quiserem levar adiante uma reflexão sobre esse tema. Como não poderia deixar de ser, ele escreve um livro que se propõe a ser ao mesmo tempo denso, analítico, mas também, e sobretudo, bem-humorado. Há passagens memoráveis, experiências de vida comoventes. Leiam, por exemplo, o capítulo "O dia em que conquistei minha analista" e entenderão, em parte, o espírito desse livro.

Trata-se de uma obra que deixa muitas perguntas para o leitor. Como uma espécie de espelho, vamos tendo a chance durante a leitura de pensar quais seriam as histórias de humor que conseguimos produzir na vida e que estariam a nossa disposição para compartilhar com nossos amigos. É nessas histórias que a vida se mostra bem mais plural do que imaginávamos, pois revela nossas fragilidades , nossos versos e reversos, nossos avessos. O humor nos aproxima da verdade que nos constitui, mas por caminhos inusitados, surpreendentes, e, contrariamente ao que muitos pensam, assume um olhar de responsabilidade para com a vida. Chegar mais perto dessa verdade implica, é claro, alguns riscos. Slavuztky, com sua obra ímpar, que certamente será a partir de agora um livro de referência nessa questão, nos abre caminho para que possamos fazer essa aposta. Como ele nos lembra, "a dignidade conferida pelo humor é a coragem diante de riscos, e gozar tanto de si mesmo como das pretensões vaidosas. Enfim, é perceber o caráter cômico da trágica condição humana" (p. 30).


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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