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Autor(es)
David Leo Levisky Levisky
é analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com especialização em psicanálise de crianças e de adolescentes; autor de artigos científicos e livros, entre eles Adolescência – reflexões psicanalíticas (Zagodoni Editora, 2013).

Christian Ingo Lenz Dunker
é psicanalista, livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Fórum do Campo Lacaniano. Autor de Lacan e a clínica da interpretação (Hacker, 1996) e O cálculo neurótico do gozo (Escuta, 2002).

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 DEBATE CLÍNICO

O Caso Antônio

Antônio’s case
David Leo Levisky Levisky
Christian Ingo Lenz Dunker

david leo levisky

Material de sessões com Antônio, de outubro a setembro do ano seguinte.

 

Fui procurado pelos pais de Antônio, rapaz de 15 anos, em 2013, com a queixa de que ele havia mudado abruptamente de comportamento: desinteressara-se pela comida e teve perda significativa de peso, apresentava agressividade e retraimento social. Contrariado, descontrolava-se emocionalmente, ficando agitado, impulsivo, furioso, falando compulsivamente e arrancando os cabelos.

 

Contara para a mãe que era homossexual, segredo que ela conservara a pedido dele. Diante de seus comportamentos atuais ela resolveu revelar o segredo para o marido. Após ter sido preterido pelo namorado, Antônio se mutilara, fazendo cortes nos braços. Numa discussão com o pai agrediu-o violentamente, entrando em forte luta corporal. Seu humor tem estado muito oscilante. Usa roupas surradas dos pais e avós. Antônio tem o mesmo nome do pai e é por eles chamado no diminutivo. Nega-se a assinar o sobrenome paterno. Preenche documentos escolares com o sobrenome da mãe.

 

Procuraram psiquiatra que diagnosticou uma depressão e sugeriu psicoterapia. Antônio melhorou com a medicação, mas agora se recusa a tomá-la.

 

O pai expõe o histórico do rapaz. A mãe ouve passivamente. Segundo o pai, os problemas começaram na escola quando o filho se recusou a acatar as normas do colégio ao ter suas expectativas frustradas numa das atividades curriculares de que mais gostava, atitude que motivou seu desligamento desse grupo de trabalho. Ficou inconformado, o que levou o pai a intervir junto à direção da escola. A situação foi contornada e Antônio pôde reintegrar o grupo com certas restrições, não mais com o papel de destaque que ocupara anteriormente. A produção escolar de Antônio é excelente. Está entre os melhores da escola e foi agraciado com uma bolsa de estudos.

 

A mãe relata que Antônio assina os documentos escolares com o sobrenome estrangeiro da bisavó materna, pessoa com quem ele teve contato na infância e da qual guarda muitas recordações. Carinhosa com ele, a velha senhora mostrava-lhe objetos e roupas que guardava como relíquias de família. Ele gostava de ver e de ouvir as histórias que ela contava.

 

O pai acha que são problemas da adolescência, sem entrar na gênese desses processos. Com relação à homossexualidade, a mãe se coloca receptiva. Desde pequeno ele gostava de brinquedos femininos; sabia que essa era a tendência dele. O pai só foi se dar conta da situação recentemente, após a mãe quebrar o segredo.

 

analista Como o senhor recebeu a notícia?

Pai Tudo bem. Se ele é assim, está bem. É meu filho. Gosto dele desse jeito mesmo. Acho que tudo não passa de questões da adolescência. Se ele for homossexual não me causará nenhum problema. Ele é meu filho. Gosto dele.

Analista Isto não lhe causa nenhum sentimento?

Pai Não. Para mim está tudo bem. (Curto e seco.)

Analista Tomaram alguma iniciativa frente ao fato de sua preferência por brinquedos de menina?

Pai Não.

Analista Há uma dinâmica nitidamente distinta na relação entre mãe e filho e dele com o pai.

 

Eles nada acrescentam a este meu comentário.

 

A mãe diz que no início da vida escolar houve um período em que ele se negou a ir à escola. Consideraram que isso não tinha importância. Ele permaneceu meses sem retornar. Ficava aos cuidados dos avós maternos, com quem tinha e tem muita afinidade.

 

Mãe É com eles que Toninho está morando. Ele se recusa a morar conosco. A situação se agravou após a briga. Vou visitá-lo com frequência e os encontros são muito afetivos. Ele se coloca bastante à vontade comigo. Nos últimos tempos, nos fins de semana, tem aceitado almoçar ou jantar conosco fora de casa e tudo corre bem.

 

Pareceu-me conveniente ver os pais novamente. Também havia dúvida se o rapaz, que não sabia que eles haviam me procurado, aceitaria vir falar comigo. Os pais ficaram de pensar. Ligaram para marcar novas entrevistas.

 

Tivemos mais dois encontros descritivos do comportamento de Antônio: chegado à mãe, com confiança e liberdade para conversarem. Eram muito amigos. Ela procurava atendê-lo na medida do possível. Desde pequeno ele tinha dificuldades para se relacionar com o pai, que tentava se aproximar dele sem êxito. As brincadeiras preferidas de Antônio eram com bonecas e a mãe não via problema algum em satisfazê-lo. Ficava horas brincando.

 

Nada é mencionado quanto aos sentimentos, medos, frustrações e desejos em relação ao filho.

 

Filho único do casal. O pai tem uma filha dez anos mais velha do primeiro casamento. Ela vivia com a mãe e só recentemente veio morar com eles. Não observaram mudanças de comportamento em Antônio com a chegada da meia-irmã. Os irmãos não têm muita convivência, fato atribuído às diferenças de idade e de agenda. Não notaram interferências na dinâmica familiar, apenas do ponto de vista pragmático na distribuição dos quartos.

 

Sinalizo que tudo parece sempre correr bem, mas que não se consegue perceber o que estão sentindo. Sorriem e não comentam.

 

Terminado o encontro, indago como gostariam de dar os próximos passos.

 

- Vamos pensar e ligaremos - respondem.

 

Ligam marcando novo encontro próximo das férias de final de ano.

 

Novamente predominaram as descrições do comportamento de Antônio. O melhor que eu podia fazer naquela circunstância era ser continente e acolhedor. Estávamos às vésperas das férias. Um dado novo surgiu: a mãe relatou ter tido depressão pós-parto. Lembrou-se de que ao engravidar achava tudo lindo e maravilhoso. Esteve muito contente durante a gestação. Logo após o parto passou a chorar muito ao se dar conta de que o bebê da barriga e da sua imaginação não correspondia ao bebê real. Era difícil amamentar e cuidar da rotina diária. Só voltou a se recuperar quando retornou ao trabalho. O bebê ficava aos cuidados de sua mãe, a avó com quem Antônio está morando.

 

Marcamos retorno para depois das férias. Como não me telefonaram, resolvi ligar. O pai, sempre muito formal, educado e gentil, agradeceu meu telefonema dizendo que a situação estava mais calma e que me procuraria se houvesse necessidade.

 

Nessa ocasião levantei algumas hipóteses ligadas a falhas do investimento afetivo precoce, falhas de discriminação e de identificação, elementos histriônicos da personalidade, quadro depressivo em um jovem enfrentando a crise da adolescência. Elementos de superproteção materna e conflitos com a figura masculina pareciam estar presentes. Todos esses elementos foram extraídos da história sem que eu tivesse tido qualquer contato com o paciente.

 

A postura do casal me fez pensar numa fachada politicamente correta. Tudo estava bem. Os problemas eram momentâneos e ligados exclusivamente a Antônio. Polidos, educados, formais e elegantes, socialmente adequados, mas sem emoção, uma postura falso-self.

 

Passados seis meses do último contato telefônico, o pai me liga dizendo que Antônio se dispôs a vir à consulta. Estávamos próximos das férias de meio de ano. A consulta só poderia ser marcada após o término das provas escolares. Resolvi aceitar. Informei que seria apenas um contato para nos conhecermos. Combinamos um encontro com todos - pai, mãe e Antônio.

 

Primeira sessão com Antônio

No dia marcado, abro a porta e vejo Antônio e um senhor muito idoso e de aparência simples, que entendi ser seu avô. Ele me cumprimenta e, em tom de brincadeira, diz para Antônio:

 

- Fale tudo para ele. O senhor sabe, ele só quer fazer o que dá na cabeça dele. Bem, não sei quanto tempo vou ficar aqui. Veja o que tem de fazer com ele.

- Está bem. Vocês querem entrar?

- Você quer entrar, vô?

- O senhor é quem sabe - diz o avô dirigindo-se a mim.

 

Antônio fica parado em frente à porta, aguardando para ver o que vamos resolver.

 

- Se o senhor preferir, pode aguardar aqui na sala de espera. Pegue uma revista, leia um pouquinho. Dentro de cinquenta minutos a uma hora terminaremos nosso encontro.

- Está bem, doutor. Eu estava só brincando.

- As coisas ficam mais leves quando a gente pode brincar - digo.

 

Antônio senta-se de frente para mim e aguarda que eu tome a iniciativa. Vejo um rapaz de estatura e desenvolvimento adequados para a idade. Cabelos muito longos e movimentos delicados, diria femininos, não afeminados. Apresentamo-nos e digo a ele:

 

Analista* Você sabe por que está aqui?

P.    Vim porque meus pais pediram.

A.    Você veio só porque eles pediram ou será que tem também algum desejo seu?

P.    Eu também quis vir. Meus pais me disseram que falaram com você.

A.    É verdade. Eles me contaram o que está acontecendo com você. Estiveram aqui no final do ano passado e agora me ligaram, dizendo que você estava interessado em falar comigo. Gostaria de ouvir de você o que está se passando.

 

Antônio põe-se a falar com uma intimidade e fluidez incomuns em um primeiro encontro e tratando-se de um adolescente. Está muito excitado.

 

P.    Você sabe que sou homossexual. Desde pequeno eu sabia que era assim, diferente. Eu queria muito ter uma Barbie e só sosseguei quando minha mãe me comprou. Eu gostava de ter a coleção de roupas dela. Achava maravilhoso brincar com ela. Sempre me achei diferente dos outros meninos. Meu pai tentava brincar comigo de jogar bola, mas eu não gostava, não tinha nenhum interesse em fazer as coisas que ele queria fazer comigo. Com minha mãe era diferente. Eu sempre falo com ela. Ela me ouve, me orienta. Meu pai vem de uma família pobre, mas ele se desenvolveu. Temos pensamentos muito diferentes. Ele é pragmático, cartesiano. Tem que fazer uma coisa, ele faz. Mas não pensa que a vida pode ser vivida de outra forma. Ou é do jeito que ele pensa ou não é. Com minha mãe é diferente, mas ela é submissa a ele. Se ele fala para fazer de um jeito, ela faz. Ela não se impõe. Parece que eles se dão bem, mas é desse jeito. Ela não defende suas ideias. Quando ele vem impor as ideias dele para mim, eu só faço se concordar, mas em geral temos uma visão filosófica da vida muito diferente. Ele só pensa em lucro e que a hierarquia deve ser obedecida. Para ele o empregado tem que se submeter ao patrão. Eu acho que eu devo fazer o que eu penso e sinto.

A.    Mas, se é desse jeito, porque você revelou seu segredo para sua mãe e não conversou diretamente com ele?

P.    Ela é mais compreensiva, mais acolhedora e tolerante. É com ela que eu costumo conversar. Ele é um machista. Falar para ele é entrar em conflito, pois ele quer que as coisas sejam do jeito dele. Minha mãe se submete. Foi por isso que eu briguei com ele. A teimosia dele me leva à loucura, me faz perder a cabeça.

A.    Deve ser insuportável conviver desse jeito.

P.    Ele é muito formal, conservador, cheio de aparências, politicamente correto. (Fala sobre o pai com desprezo.) É tudo o que eu não quero ser na vida. Briguei com ele e me descontrolei. Joguei um vaso na cabeça dele. Acho que eu queria matá-lo, depois me arrependi. Ele é falso. Irritei-me com o sermão que ele estava me dando e fiz o que fiz. Reconheço que me excedi. Eu não gosto dele. Gosto porque é meu pai, mas não é o pai que eu queria ter. Com minha mãe é completamente diferente. Ela me ouve e me aceita. Dá pra conversar. Ele só impõe. É um cara conservador. Converso com ele coisas formais, práticas.

 

O paciente se revela pessoa muito sensível. Capta nuances das relações humanas. Sua linguagem é profunda, de teor filosófico, utiliza palavras sofisticadas e busca precisão conceitual. Tem um ar pernóstico e intelectual. Gesticula muito ao falar, como se estivesse em cena.

 

A.    Há muita coisa para conversarmos. Tudo é muito intenso e uma ideia puxa outra. Se você estiver de acordo, como falei no início, estou às vésperas de sair de férias, mas poderemos combinar um novo encontro no início de agosto. O que você acha?

P.    Acho que pode ser bom. Podemos marcar.

 

Combinamos novo encontro para o início de agosto.

 

Fiquei com a impressão, neste primeiro encontro, de que suas ideias, afetos e sentimentos emergiam com grande intensidade e profusão, sem espaço e tempo suficientes para a elaboração e discriminação do que estava sentindo, apesar dos detalhes de seu relato. Como se fosse um vulcão prestes a explodir que, ao encontrar uma oportunidade, dá vazão a seus conteúdo, mais voltado em aliviar as tensões do que em se deter num processos de elaboração. Suas conclusões são radicais e de intensidade teatral.

 

Primeira sessão de agosto

Antônio entra na sala e senta-se de pernas cruzadas sobre o sofá após ter tirado os sapatos. Espontâneo, conta sobre as férias:

 

P.    Não viajei. Encontrei-me com alguns amigos. Saí alguns dias apenas, num final de semana. Fiquei estudando. Estou me preparando para uma maratona escolar de física, química e matemática. Adoro essas matérias e também psicologia e teatro. Quero participar de tudo e intensamente. Meus professores e colegas gostam muito de mim. Especialmente a professora de química, com quem tenho muita amizade.

A.    Tem muita coisa boa e atraente na vida. A vontade é de pegar tudo.

P.    É. Tudo que eu faço é muito intenso, até no amor. Entrei de cabeça no relacionamento com X. Eu o adorava. Era uma questão de pele. Foi uma decepção quando eu soube que ele estava me traindo, ainda mais quando ele passou a se interessar por uma das minhas melhores amigas. Agora não quero saber de ter nada com ninguém. Foi aí que eu me cortei, tamanha a raiva que senti.

A.    A traição atingiu você violentamente. Aparenta ser pelo que seu amigo fez com você, mas pode envolver outros tipos de traição. Quando se entra de cabeça em qualquer relação, pode-se ficar cego e não perceber o que se passa ao redor ou no próprio íntimo.

 

Antônio para surpreso e retoma o discurso da traição abordando o tema da fidelidade, da amizade. Fala de forma intensa e profusa. Só me resta ouvir. Sinto-me cansado pela intensidade de sua fala e pela necessidade dele em ter um recipiente onde despejar tanto conteúdo, sem que eu tenha possibilidade de processar.

 

A.    Tudo é muito intenso. Passa-se de um assunto para outro rapidamente, vai de um extremo a outro. Não deve estar sendo fácil manter o controle diante de tantas coisas que estão aparecendo. O cansaço ao qual você se refere é compreensível tanto por ter de segurar tudo isso dentro de você, quanto por colocar para fora e ter de lidar com tanta coisa. Sugiro nos encontrarmos algumas vezes, caso haja disposição para vir. Creio que poderá ser útil e interessante.

 

Ele concorda.

 

Segunda sessão

Senta como se estivesse sobrecarregado por grande peso. Fala e gesticula muito, em aparente estado de total confiança, estado que desperta em mim um sinal de alerta, pois suspeito de intensa atividade pulsional e fragilidade egoica para se proteger de si e do mundo que o cerca.

 

P.    Estou muito cansado, com dificuldades para dormir, sem dar conta de tudo que tenho para fazer. São tantas as oportunidades que se apresentam. Tenho vontade de fazer tudo.

A.    É difícil querer se sentir importante. Dá muito trabalho. Ainda mais quando não se seleciona o que é e o que não é prioritário.

P.    Mas tudo é importante para mim.

A.    Tudo é importante, mas é preciso descobrir se dá para se carregar tudo o que se quer, sem selecionar o que é prioritário e o que não é.

P.    Acho que vou cortar o cabelo. Ele está me atrapalhando.

A.    É, tem coisa que a gente precisa perder para ganhar outras. Isso pode ser em relação ao corte de cabelo, mas também com quem se quer ficar, e o que se quer ser, menino ou menina.

P.    Fiquei com uma colega e senti coisas estranhas. Fiquei excitado e senti profundo amor. Isso me deixou muito confuso.

A.    É, pode-se sentir excitação e atração por homem e por mulher. Quando o que se sente é muito intenso e se é radical, fica difícil perceber e avaliar o que se quer, o que se está sentindo. Às vezes é preciso tomar distância de si mesmo para se descobrir o que se quer e como se quer. Caso contrário, fica-se confuso. Carregar a dúvida, aguentar uma dose de incerteza pode ajudar a encontrar os caminhos. Você já pensou que pode ter dúvidas se é ou não homossexual? A cabeça da gente é cheia de mistérios a serem desvendados. Se cada ideia for tomada como uma verdade absoluta, não há espaço para dúvidas nem para se experimentar nem para se apreender o que se sente, o que se gosta e o que não se gosta. O amor é complexo e pode se apresentar de várias formas.

 

Falo isto, mas fico temeroso de estar indo rápido e profundo demais, algo me sinaliza perigo. Digo-lhe que gostaria de poder ter sessões regulares para que pudéssemos conversar, mas que para isso precisaria ter a anuência de seus pais.

 

P.    Acho que ainda não. Prefiro vir ainda mais algumas vezes antes de conversar com meus pais.

A.    Está bem. Então vamos marcar nosso próximo encontro.

 

Terceira sessão

Chega aflito e atribulado. Diz que passou um fim de semana péssimo.

 

A.    Você sabe que seu pai me telefonou novamente. Ele falou com você?

P.    Não, não falou.

A.    Precisamos falar com eles, pois esta é a terceira vez que ele me liga, e todas as vezes sem avisá-lo. Precisamos conversar com ele sobre o que é o seu espaço e entender o que ele quer falar comigo que não participa a você. Parece-me que há uma questão ligada ao pagamento.

P.    Eu já resolvi isso com ele. Ou ele manda pelo meu avô ou eu trago. Mas preciso contar para você o que me aconteceu. Imagine que conheci um cara num barzinho e fiquei com ele. É um cara bem mais velho. Tem 42 anos. Nosso relacionamento durou alguns dias e me dei conta que havia entrado numa fria. O cara é um louco obsessivo. Fica me fazendo chantagem. Ameaçou que iria se matar se eu o deixasse. Num desses dias ele veio comigo de táxi até a casa da minha avó. Eu não permiti que ele entrasse. Era de madrugada. Ele insistiu dizendo que queria pegar as coisas que ele havia deixado comigo. Acreditei que ele entraria, pegaria suas coisas e iria embora. No meu quarto ele quis me pegar à força, prometendo depois que ficaria quietinho ao meu lado. Eu queria que ele fosse embora. Houve uma grande discussão. Consegui colocá-lo para fora de casa, mas ele pulou o portão. A discussão ocorreu na rua e meus avós ouviram e vieram conversar com calma, fazendo com que ele fosse embora. Tem gente muito louca.

A.    É mais fácil perceber a loucura dos outros. Difícil é perceber a própria. Ter a noção dos limites, o que é realidade e o que é imaginação. O que se sente e o que se quer e o que se pode fazer.

P.    Eu sou muito burro mesmo.

A.    Não sei se é questão de ser burro. Você não me parece nada burro do ponto de vista intelectual, mas imaturo na maneira de lidar com os desejos e com as consequências dos desejos e das coisas que faz. Em parte porque é um jovem que está passando para a vida adulta e em parte por falhas que devem ter ocorrido em fases iniciais da sua vida. É por esse conjunto de razões que estou sugerindo nos vermos pelo menos duas vezes por semana regularmente. Mas, para isso, preciso da concordância dos seus pais.

P.    Tenho muitas atividades. Isso vai atrapalhar minha vida. Não tenho como vir duas vezes por semana, e meus pais não vão poder pagar.

A.    Será necessário eleger o que é prioritário para você.

P.    A prioridade para mim é a escola, meus amigos, preciso continuar recebendo a bolsa. Tenho aulas à tarde. Não vai dar e minha mãe disse que só pode ser uma vez na semana.

A.    Para mim a terapia é a prioridade. Da maneira como você está usando sua cabeça, é preciso dedicar atenção a ela. O bom funcionamento dela é que é prioritário para o seu desenvolvimento. Quanto ao pagamento, esta é uma questão que precisarei conversar com seus pais. Vejo você como um cavalo de corrida, cheio de energia, e que você está tendo dificuldades para segurar as rédeas e conduzir o animal que existe em você, em cada um de nós.

P.    Mas que animal é esse?

A.    Todos nós temos esse lado. Na adolescência os hormônios agem intensamente. O corpo está passando por intensas transformações. Novos desejos surgem sem se preocupar se será bom ou mal para você. Quando você passa a se perceber melhor e a adquirir experiência a partir dos erros e dos acertos, como no caso que você contou, fica mais viável controlar o seu lado animal, as forças que vêm de dentro de você.

P.    Quer dizer que estou sendo dominado por minhas vontades e não sei conduzir meu cavalo.

A.    Sim. É por isso que precisamos falar com seus pais. Fica difícil conversarmos sem definirmos como vamos trabalhar. Há rédeas e regras que ajudam a dar as condições desse trabalho, como horários, férias, faltas e ajudar seus pais a entenderem a sua privacidade. Você sabe que seus pais estão querendo vir falar comigo. Inclusive tem a questão do pagamento que precisa ser combinada.

P.    Ainda não. Ainda não quero que eles venham. Concordo em vir duas vezes por semana.

 

Havia em mim um sentimento de urgência em não perder o contato com ele. Assim como ele vinha de forma intensa para as sessões, também poderia rompê-las sem avaliar as consequências. Fiquei apreensivo com a impulsividade de seus atos, o que me provocou fantasias de que ele pudesse ter atitudes autodestrutivas. Respeitei sua posição de postergar o encontro com os pais, mas seria imprescindível conversar com eles para dar continuidade ao trabalho, o que me parecia problemático, pois havia discordância entre a proposta de trabalharmos duas vezes por semana e o desejo dos pais de que fosse apenas uma vez.

 

Quarta sessão

Antônio vem de cabelo cortado.

 

P.    Fiquei pensando no que você me falou da imagem do cavalo. Fiquei incomodado com essa ideia e com o fato de ter ficado excitado com minha amiga. Não podia imaginar que ao ficar com ela fosse sentir o que senti. Estou gostando muito dela. Estou atrapalhado e não paro de pensar nisso.

A     Você está atrapalhado também pelo fato de nossa conversa estar mexendo com a sua cabeça. Tudo estava tão definido e eu venho com alguma ideia diferente que faz sentido para você e isto atrapalha. Gera dúvidas. Faz pensar. (Silêncio.)

A.    Quando se tem muita curiosidade e se vive uma experiência, pode-se descobrir coisas novas tanto no outro quanto em você mesmo. Isto leva a ter dúvidas e a pensar. Também pode passar de uma coisa para outra, de uma pessoa para outra, só para se excitar e não precisar pensar, não precisar sentir. Uma forma de se esconder da tomada de decisão.

 

Em minhas reflexões, pensei que no início de vida de Antônio pudesse ter havido um misto de superproteção e de carências em termos de discriminação afetiva. Suas vivências parecem ser intensas, superficiais e mal elaboradas. Uma voracidade sem tempo e espaço para a elaboração. Um aspecto onipotente também se fazia presente.

 

Lembrei-me que ele havia dito algo assim a respeito de seu pai e que nisso eles poderiam ser parecidos. Havia nele muitas questões: quem era ele, no que se assemelhava e diferia de seu pai. Lembrei-lhe também da questão do nome próprio, que ele queria ter nome diferente de seu pai. Provavelmente queria ser ele mesmo, mas o que era isso? A ligação com a bisavó materna e o conjunto de significantes que ela representava era outro ponto a ser investigado. O grau de ansiedade era tal que mesmo duas vezes por semana poderiam ser insuficientes, mas, para mim, era o que tornaria o trabalho viável. Tínhamos muito a conversar.

 

P.    É verdade. Mas não preciso vir duas vezes por semana. Tenho muitas coisas para fazer. Estou com a agenda cheia.

A.    Compreendo sua dificuldade. Você já passou por outras terapias uma vez por semana. Preciso que me dê um voto de confiança, já que veio e está aceitando minha colaboração.

P.    Está bem, mas se meus pais não puderem pagar?

A.    Sua preocupação é louvável, mas cabe a eles tomar essa decisão e a mim de propor algo que a viabilize. Pode ser que se consiga ou não viabilizar o processo. Dependemos, você e eu, da aceitação de seus pais para a realização deste trabalho, pois você é menor de idade. É cedo para você ter recursos e autoridade plena para decidir sobre isso. Porém, depende de você querer ou não realizá-lo. Para isto você tem autonomia, tanto que só foi marcada a primeira entrevista quando você concordou.

 

Houve um período de silêncio, raro por sinal, que foi quebrado por mim:

 

A.    Você tem ideia das condições econômicas de sua família?

P.    Eles vivem bem. Têm tudo de que necessitam, saem, viajam, vão a restaurante. Nada chique, mas eles estão bem. Acho que não falta dinheiro, mas eles precisam se controlar.

A.    Bem, quanto a essa questão do pagamento, não sei se você está sabendo, se você e seus pais conversaram sobre isso. Na ocasião da primeira consulta, eles me perguntaram o preço. Disse a eles, também, que conversassem com você a esse respeito. Eles preferiam que o pagamento fosse feito por um portador. Disse-lhes que poderia ser feito por meio da sua pessoa. Iríamos conversar e definir a forma de pagamento com a sua participação. Seu pai alegou que preferia pagar as sessões de julho e de agosto por meio de um portador, fora do horário da sessão. Voltei a afirmar que conversaríamos a esse respeito.

P.    Eu não sei que acerto vocês fizeram, mas só trarei o dinheiro se eu estiver de acordo.

A.    Está bem. Mas não posso abrir mão das duas sessões.

P.    Está bem. Então eu venho ainda esta semana.

 

Quinta sessão

O paciente inicia a sessão retomando a questão do pagamento.

 

P.    Não vou me submeter a qualquer acordo que me violente. Não quero ser pombo-correio do que não concordo - diz referindo-se à questão do pagamento.

A.    Sua posição é nobre. Tem quem a valorize, mas pode haver questões que não dependem só do desejo, mas das possibilidades de realização de um projeto. Falaremos disso futuramente, quando seus pais vierem conversar conosco. Teremos de pensar juntos como construir caminhos viáveis. Isto implica saber o que cada um está disposto a fazer.

 

Antônio estava muito excitado. Deixa o sofá, onde habitualmente tem sentado, para se recostar no espaldar do divã colocado junto à parede. Aproximo a cadeira e fico à sua frente, no intuito de criar uma condição mais acolhedora.

 

Antônio enterra a cabeça entre suas mãos e com os dedos revoluciona os cabelos como se quisesse tirar algo da cabeça. Observo e digo:

 

A.    Você deve estar sofrendo muito.

P.    Sabe a menina que falei pra você? Ela ficou com X, o meu ex-namorado.

 

Ela é uma louca, promíscua. Fica com um, com outro, comigo e agora com X. Não é possível ela fazer isso. Não estou aguentando.

 

A.    Pelo visto você deve ter sentido muita raiva, ficado com ciúmes por ter sido traído. Acho que você está gostando dela, e agora está com muita raiva de ter sido passado para trás.

 

Com um movimento dramático, Antônio arregaça a manga comprida da camisa (estava um dia muito quente e ele vestia uma camisa de flanela) e me mostra uma queimadura de uns sete centímetros que ele fez com isqueiro em seu braço esquerdo. Preocupado, me pergunta:

 

P.    Você acha que isso vai se curar?

 

Olho a lesão, que me parece superficial, e lhe digo:

 

A.    Penso que sim, que vai se curar. Mas você não pensou nisso no momento em que estava se queimando?

P.    Eu estava com muita raiva dela. O pior é que, apesar de ter ficado com o X, no final da festa ela veio me dar um beijo, sabendo da história que eu tive com ele. O que estou sentindo é muito estranho.

A.    Deve ser estranho, para quem se coloca como tendo certeza de que é homossexual, sentir atração, excitação e desejo por uma moça. Quantas coisas seu corpo e sua mente estão descobrindo. Quantas dúvidas e indefinições estão aí guardadas e que agora, nesse relacionamento, estão sendo postas para fora em busca de um sentido.

P.    Estou muito confuso com tudo isso.

A.    Parece ser mais fácil enxergar o que se passa com sua amiga e com X. Descrever o que ela e X estão fazendo. Julgá-los. Mais difícil perceber e dar nomes às coisas que estão se passando com você. Quem sabe você gostaria de poder controlar sua amiga e X para não sentir o que está sentindo: traição, ciúmes, raiva, dúvidas sobre você mesmo. Até porque o ato de você se queimar, uma das finalidades, é se castigar por alguma razão. É por esse descontrole e autopunição que precisamos definir o nosso trabalho: número de sessões, preço, forma de pagamento, faltas e férias. Podemos conversar entre nós dois, mas há detalhes, como já falei para você, que dependem da concordância e autorização dos pais.

P.    Vou pedir para meu pai ligar para você. Mas, acho que ele não vai querer que eu venha. Já falei sobre marcar um encontro, e ele me avisou que vai tratar de coisas que não pertencem a mim, como o pagamento.

A.    Por que será? O pagamento não envolve você? Não é você quem paga, nem seria possível para um jovem da sua idade. Mas envolve a sua pessoa saber quanto custa, qual o peso que o trabalho gera para a família, tanto econômico quanto emocional. Afinal você não é uma criança pequena.

P.    Não sei. Ele é esquisito.

A.    E você não perguntou o porquê, já que você está disposto a vir.

P.    Vai dar briga.

A.    Bem, de minha parte, a possibilidade de vir fica aberta.

 

Termino a sessão e, com a porta da sala aberta, ele para e me pergunta:

 

A.    Posso tomar sol? Será que não vai formar uma cicatriz feia como ficou quando me cortei?

 

Faço-o entrar novamente. Encosto a porta e digo:

 

A.    Você pode me ouvir como um conselheiro amigo. É bom sentir que tem quem cuida de você que está preocupado em cuidar do seu corpo. Não tem com quem possa conversar?

P.    Eu não quero preocupar meus avós. Você sabe o que posso passar?

A.    Alguma pomada para queimadura (paraqueimol; picrato de butezin).

P.    Irei a uma farmácia para me orientar.

 

Na segunda-feira pela manhã, o pai me telefona para saber o número de sessões. Digo a ele que, conforme já havíamos conversado, o filho deve estar sabendo o número de sessões. Seria uma oportunidade para eles conversarem. Ele concorda e diz que enviará o pagamento, provavelmente por um portador.

 

Sexta Sessão

Antônio entra e senta-se no sofá. Aparentemente mais calmo. Tomo a iniciativa de falar.

 

A.    Você sabe que seu pai me telefonou hoje pela manhã?

P.    Não. Ele não me falou nada.

A.    Conversamos rapidamente. Ele queria saber o número de sessões. Disse a ele que este poderia ser um tema para ele e você conversarem. Ele me disse que mandaria o pagamento por um portador.

P.    Não. Ele não me falou nada. Eles vão viajar amanhã ou depois de amanhã por quinze dias, e eu não estou sabendo de nada.

A.    Há lacunas na comunicação entre vocês. Temas que poderiam aproximar pai e filho não são tocados. Entretanto, aqui estamos conseguindo conversar até mesmo de coisas mais íntimas como as que você tem trazido para cá.

P.    Eu já falei com eles sobre a consulta que você quer ter conosco. Isto só poderá acontecer quando eles voltarem. Fomos jantar numa pizzaria e, como sempre, tudo se passou bem. Falamos de tudo sem aprofundar nada. É tudo formal.

A.    Você desaprova essa forma de ser. Você se sente melhor quando se é espontâneo. A relação de confiança fica mais forte.

P.    Você vai ver, ele não vai querer que eu venha na entrevista. Não sei por que ele faz assim. Com minha mãe é diferente, mas ela não se manifesta.

 

Antônio tinha razão, quando os pais voltaram, pediram que a entrevista fosse em um horário de final de semana, fora do meu habitual. Alegaram que não seria possível vir durante a semana, mesmo sendo à noite. Perguntado na entrevista a causa de não ter permitido a vinda do filho, o pai educadamente justificou que não cabia a presença dele, pois iríamos tratar do pagamento. Ele não precisa participar de questões que não lhe dizem respeito. Disse-lhe que entendia que havia a questão do pagamento, mas havia outra questão como o lugar de Antônio na família.

 

O pai argumentou que havia na vida de seu filho questões das quais ele (filho) não necessita participar. Citou como exemplo o pagamento da viagem de férias organizada pela escola. Caberia a ele, pai, discutir e decidir a forma de pagamento, não precisando incluir o filho nessa conversa. Questionei se essa posição não representava uma forma de proteção e de exclusão para um rapaz desejoso de se desenvolver e de expandir seus universos. Seriam conflitos que estariam perturbando o desenvolvimento emocional do filho, pois do ponto de vista intelectual não havia dúvida de sua excepcionalidade. A reação do pai foi o silêncio total. Retornei ao tema inicial a respeito do valor da sessão duas vezes por semana dentro de condições que me pareceram acessíveis. Assegurou-me que não poderia arcar com duas sessões semanais, mas que iria pensar. Sugeri que diante de qualquer dúvida eu estaria disposto a conversar.

 

Na manhã que antecedeu a próxima sessão de Antônio, o pai me telefonou para avisar que o filho não viria mais. Queria saber quanto devia. Sugeri que conversássemos, mas ele disse que não era necessário. Que o trabalho estava interrompido. Indaguei se diante dessa realidade eu poderia me despedir de Antônio, respondeu que eu não deveria falar com o filho em hipótese alguma.

 

christian ingo lenz dunker

1. Considerações Preliminares

Cumprimento a equipe da revista Percurso por esta iniciativa inédita, necessária e atualíssima em nossa cultura psicanalítica. Um comentário de um caso clínico feito "às cegas", mas não "às surdas", por um psicanalista, guardando certa contingência quanto à diversidade de caminhos formativos dos envolvidos, é um experimento que reintroduz um pouco do espírito de ciência que há algum tempo estamos desdenhando. Um experimento que desafia a nossa capacidade de contar uma piada fora de nossa "paróquia" (para retomar o termo de Freud com relação às condições de eficiência de um chiste). Fácil é pregar para conversos, difícil é falar a língua franca da clínica para além de nosso condomínio.

 

Gostaria de explicitar como entendo as regras desse experimento. Não se trata de julgar os procedimentos e atitudes de um colega em sua estilística e sua maneira própria de conduzir o tratamento. Também não vejo que estejamos em um registro redutível ao da supervisão, uma vez que não nos escolhemos mutuamente para escrever o caso ou produzir o comentário. Pretendo pensar o caso respeitando a sua lógica interna, reconstruindo suas razões e aqui e ali ponderando variantes e variâncias. Freud aproximou a psicanálise de um jogo de xadrez, no qual é mais fácil examinar as situações de abertura e encerramento do que o "meio de jogo", onde as variantes e contingências são muito mais imponderáveis e onde as regularidades reduzem-se, muitas vezes, a aspectos locais do tabuleiro. Pois então, no xadrez existe a figura do comentarista, ou do "analista", que decifra os grandes jogos isolando principalmente seus pontos críticos e as soluções mais inusitadas. É nela que gostaria de me inspirar.

 

O relato começa pela apresentação de uma grande transformação ("[Antônio havia] mudado abruptamente") que culmina na sua confidência, para a mãe, de que ele era homossexual. Isso parece coordenar-se com duas séries de sintomas ligados respectivamente ao impulso: arrancar cabelos, cortar braços, agitação, fala compulsiva, briga corporal com o pai, e ao registro das identificações: usar roupas velhas, modificar a assinatura para a ascendência materna. Ele conta o "segredo" para a mãe não sem algum conflito. Teria ele esperado que ela criasse um espaço de aliança com ele (mantendo o segredo entre os dois), ou que ela repassasse o fato ao pai (como aconteceu)? A ausência de indícios textuais de que ele tenha ficado contrariado ou indisposto com a mãe sugere que se tratava realmente de uma carta que chegou ao seu destinatário, pelas vias maternas.

 

A causa indutora dessa revelação não parece estar coordenada com a descoberta da homossexualidade, mas com uma decepção no primeiro amor. Primeiro amor que entrou em atividade com um colega de escola. A ligação entre esse fracasso e o apelo ao pai, ainda que marcado por uma atitude opositiva indiciada pela recusa, torna-se assim a função gerativa da narrativa. Não surpreende que a sequência repita essa oposição: O psiquiatra diagnostica depressão, "Antonio melhora com a medicação, mas agora recusa-se a tomá-la".

 

O pai traz uma leitura do caso que replica essa modalização do conflito. Os problemas começaram quando o filho "recusa-se a acatar as normas" diante de "expectativas frustradas" em uma atividade escolar. Mas, nessa versão do mito, o pai intervém realmente "junto à direção da escola", o que propiciou a reintegração de Antônio, ainda que não como protagonista. Ele parece estar correto ao dizer que "são problemas de adolescência", ainda que não saiba muito bem o que diz. Isso é congruente com a primeira entrada do psicanalista no enunciado do caso, interessando-se pela reação do pai à homossexualidade, já anunciada no gosto preferencial por "brinquedos femininos" na infância. A escolha de transcrição do diálogo, em vez da paráfrase, neste ponto, cumpre a função de acentuar a atitude de indiferença do pai quanto à questão: gosto dele igual, não é um problema, tudo bem (curto e seco). Imediatamente na sequência, o texto retoma a posição da mãe lembrando que na infância ele negou-se a ir para a escola, permanecendo com os avós maternos durante "meses". Ou seja, mais uma vez somos convidados a ler que, diante da indiferença do pai, Antônio responde com uma negação. Recusa e oposição que atingem aquilo que parece ser essencial ao desejo do pai, em termos da lógica do desempenho e do trabalho. Recusa-se a "comer", recusa-se a "acatar as normas", recusa-se a "tomar medicação", recusa-se a ir "à escola" (onde era, por outro lado, excepcional aluno recompensado com bolsa), recusa-se a "morar conosco". O caráter explícito, reiterado e reforçado dessa recusa, sugere que há algo a ser reconhecido nessa declaração sobre seu desejo, e talvez não seja a mera orientação homossexual.

 

Aqui está a quarta questão recorrente na narrativa: o segredo. Os pais conversam com o psicanalista, mas o rapaz "não sabia que eles haviam me procurado". Nos dois encontros "descritivos" que se seguiram, a oposição de atitudes com relação à mãe e ao pai se aprofunda. Desde que Antônio era pequeno, o pai "tentava se aproximar dele sem êxito". Ficava horas brincando de bonecas com a mãe. A meia-irmã é recebida com indiferença. Mesma indiferença diante do comentário do analista de que não se consegue dirimir bem o que eles estão sentindo. Essa sequência narrativa formada por alternância de alinhamento pai-mãe, recusa ou oposição e indiferença é suplementada pela posição do tratamento. A inclusão de mais um elemento nessa sequência torna-se assim o pivô para a reatualização dessa série: "voltaremos a ligar" - dizem os pais após terminadas as primeiras entrevistas.

 

De fato a mãe liga, e faz o relato da depressão pós-parto que fez Antônio ficar com a avó. Depois a suspensão de encontros e o psicanalista liga, recebendo do pai a notícia de que a "situação estava mais calma" e uma nova versão do "voltaremos a ligar". Depois da terceira pausa, novo telefonema, agora do pai, dizendo que Antônio viria. Mas mesmo tendo combinando uma sessão conjunta, pai, mãe e Antônio, o que temos é a visita do simpático avô materno, trazendo o paciente. Tal descontinuidade não é tematizada, nem no relato, nem na sessão. Em vez disso, aparece a descrição detalhada do pequeno impasse na porta do consultório, com o avô perguntando o que fazer: entrar, esperar fora, esperar na sala de espera. Qual a sua função deste "erro de continuidade"?

 

Começam os encontros com Toninho: "mais feminino que efeminado", observação que parece querer deflacionar a hipótese da homossexualidade mostrada como confrontação ao pai ou como mostração ao outro. Mais uma vez há o repique implicativo: "você veio porque eles pediram ou há algum desejo seu?".

 

O paciente abre a primeira sessão com um relato íntimo, "você sabe que sou homossexual", e com lembranças confirmativas. Depois vem a divisão, "não tinha interesse pelas coisas do pai", "com minha mãe é diferente, sempre falo com ela". Vem então um enunciado novo: "ela se submete a ele", "ele só pensa em lucro e hierarquia" e "eu acho que devo fazer o que penso e sinto". A pergunta do psicanalista, "por que não fala com ele?", traz uma cascata de significantes; o pai é: machista, formal, conservador, politicamente correto. Ele é "tudo o que eu não quero ser". Portanto... "ele é tudo".

 

O analista parece intuir que há um trabalho de dialetização dessa diferença ao ele mesmo acompanhar o movimento adjetivador, qualificando Antônio como teatral, contido como um "vulcão prestes a explodir", pernóstico e intelectual. Sua enunciação bem poderia ser: "... como seu pai". Com uma diferença substancial: o filho é intenso e disperso, o pai é seco e controlado.

 

 Nova pausa. Nova sessão. Nela Antônio traz sua decepção com X que era uma "questão de pele", mas que agora está saindo com uma de suas "melhores amigas". Aqui temos com clareza o tempo de articulação desse ato. Ele se corta em resposta a isso. A intervenção do analista não enfatiza a estrutura desse ato. O que quer dizer e a quem ele se destina. Em vez disso propõe uma metáfora: "quando se entra de cabeça se pode ficar cego". Este seria um momento em que se esperaria o aprofundamento da semiologia do ato: o que teria havido de errado com o namoro? O que faltou? O que sobrou? O que ele tentou fazer para conquistar ou reconquistar seu amor? Que papel exato teve a sua amiga na história? Exatamente como na primeira cena, construída com os pais, na qual o psicanalista percebe a ausência de uma "leitura" dos fatos por parte do pai, aqui está ausente a leitura que Antônio fez do acontecido. Não se sabe, por exemplo, se esta é a primeira vez que ele se corta. De onde vem a escolha do corte no braço. Falta um capítulo. Assim como falta o capítulo onde se saberia o que o pai diz ou fez para levar um vaso na cabeça como resposta.

 

A terceira sessão se abre com o psicanalista dizendo que o pai liga insistentemente para resolver o assunto do pagamento. Aparentemente, o psicanalista quer usar o contexto de fixação dos termos do pagamento para criar uma situação coletiva de negociação e consenso. Contudo, já se anuncia aqui que essa solução é justamente o impossível em torno do qual o caso se organiza. Em outras palavras, se eles estivessem em condições de conversar e acertar um procedimento consensualmente estabelecido, as coisas não estariam como estão. Talvez apostando na força da incipiente transferência, o psicanalista parece depositar grande esperança de que um análogo do problema que os trouxe ("ele só se interessa por dinheiro e hierarquia", "não fazemos nada juntos", "só falo com minha mãe") pudesse se resolvido "em ato" e "em miniatura" no contexto do tratamento. Nada faz supor que o tratamento seria uma exceção a esse funcionamento. Para Antônio esse tema já haveria de ser resolvido com auxílio do avô paterno. Ele tinha coisas mais importantes a tratar: o encontro com o cara mais velho que depois se torna uma espécie de invasor em sua casa, a discussão subsequente na rua, a intervenção dos avós. Ele acusa o fugaz namorado (louco) e se autorrecrimina (burro). Mas em vez de entrar no assunto e fazer a anatomia do sucedido - como ele se envolveu com o tal sujeito? o que ele havia pensado ou sentido na situação? -, o psicanalista retoma o tema do contrato, insistindo em duas sessões por semana. Junto com isso ele vai para uma posição mais recuada, na qual oferece a imagem do "cavalo de corrida" e da "intensidade dos hormônios" que é recebida como: "Quer dizer que estou sendo dominado por minhas vontades e não sei conduzir meu cavalo". O termo "dominado" parece articulado ao conflito com o pai: ser dominado por ele (como minha mãe), dominar a mim mesmo (como no ato de contenção), ser dominado por mim mesmo como outro (minhas vontades). Mas novamente o psicanalista quer trazer esse avanço subjetivo para a esfera do contrato: "há regras e rédeas" por aqui também. Essa estratégia começa a cobrar seus efeitos: ao se colocar de forma sincrônica com o pai, ele desperta a mesma atitude de recusa, contra a qual fomos advertidos desde o início. Mas agora há um avanço. Antônio concorda com as duas vezes por semana, mas recusa ceder ao encontro coletivo com os pais. Havia aqui a possibilidade de, ao aceitar apenas a "metade do pacote", Antônio alinhar-se com o analista contra os pais que, juntos, queriam uma vez por semana.

 

A quarta sessão começa como um assentimento à intervenção da sessão anterior. Seu "cavalo" se manifesta inesperadamente com uma amiga, em relação à qual surgem sentimentos amorosos "indomináveis". Contudo, a observação de que Antônio está passando de um objeto a outro de excitação como forma de evitar decisões, bem como eventuais ligações dessa tendência com experiências infantis (superproteção, carência e indiscriminação), parece deixar no ar a questão mesma do sujeito: como é possível envolver-se com uma garota? Como na sessão anterior, a abertura de uma questão é vertida para o tema das duas sessões e do pagamento: "você é menor de idade. É cedo para você ter recursos e autoridade plena para decidir sobre isso". Em meio a essa demanda, ele responde: "acho que não falta dinheiro, mas eles precisam se controlar". Devolvendo assim um significante "controlar" que se aplica a si, ao pai e ao cavalo, e ainda indiretamente ao amante por quem fora preterido, e por negação à jovem por quem começa a se apaixonar. Por outro lado, o recurso à minoridade e à dependência dos pais, em uma cena estruturada em torno da derrogação desse ponto, parece uma manobra transferencial de grande risco.

 

Isso continua na quinta sessão, por meio da declaração veemente e opositiva: nem acordo violento, nem pombo-correio. Nada melhor do que essa dupla negativa para situar a posição desse sujeito entre seus pais. O fato de que a jovem dama tenha se envolvido com seu ex-pretendente desencadeia uma segunda resposta traumática: dessa vez ele não se corta, mas se queima. E a raiva é dela, porque depois de ficar com "X" veio dar um beijo em Antônio, "sabendo da história que tive com ele". Mais uma vez se perfila a combinação: recusa (ao contrato), divisão entre (pai e mãe, agora desdobrados em "X" e a menina) e segredo violado. Mais uma vez temos a emergência de um ato que responde a tais condições de produção, mas cujo sentido como mensagem para o outro permanece opaco: você acha que isso vai se curar? Diante dessa pergunta o analista volta em "controlar sua amiga", "castigar-se e punir-se", concluindo que "É por este descontrole e autopunição que precisamos definir nosso trabalho: número de sessões, preço, forma de pagamento, faltas e férias". A resposta é uma síntese da mesma repetição: vai dar briga (divisão), ele não vai querer que eu venha (recusa) e... será que meus avós vão descobrir (a queimadura), não quero preocupá-los (o segredo).

 

Na sexta e última sessão, o tema resume-se ao pagamento e à reunião deliberatória esperada pelo psicanalista como uma espécie de condição para começar o trabalho. "Há lacunas na comunicação entre vocês. Temas que poderiam aproximar pai e filho não são tocados." Verdade, contudo uma verdade que aplica à própria transferência. Verdade que se reapresenta no triunfo repetitivo do Real: o pai exclui o filho da entrevista e do tema do pagamento, ele não poderia pagar por duas sessões, e depois que o trabalho estava encerrado e que o analista "não deveria falar com o filho em hipótese alguma".

 

Portanto, o que temos é a aparição de Antônio como sujeito bem delimitado, logo em seu primeiro encontro. Ele renuncia à sua posição suposta de recusa de algo que vem dos pais. Isso tem como correlato, do lado do pai, a derrogação do combinado em torno da sessão conjunta. Esse pequeno erro de continuidade poderia ter sido melhor ponderado. Ele simplesmente reafirma a lógica da situação, que dá nome ao sintoma: ali onde o filho aparece em oposição, o pai recusa-se a reconhecê-lo. E isso tem uma versão imaginária explícita em Antônio: ele é tudo o que eu não quero ser. Uma alienação problemática e inversiva, em relação ao desejo do Outro, que se espraia em atos denegatórios: assinar o nome dos bisavós, apresentar-se em uma imagem inadequada, vestir roupas velhas (uma boa metáfora para simbolizar sua crise de identificações), mas que se denunciam também como resposta de assentimento, ainda que inconsciente, à demanda do pai: ser um aluno esforçado e trabalhador que merece uma bolsa (como seu pai talvez tenha sido). Há um emparceiramento neurótico: o que o pai espera aparece como desejo recalcado no filho, e o que é desejo recalcado no filho aparece como desejo no pai.

 

O desentranhamento das fantasias acarreta efeitos imaginários de grandes proporções em termos de indução de angústia: até que ponto a assunção de seu desejo por outros homens será percebida como um desejo opositivo dirigido ao pai. Tanto do ponto de vista da leitura dos pais quanto das intervenções do analisa, percebe-se que a problemática da homossexualidade cai mais do lado da identidade e das reformulações na relação com a imagem, do que do lado da série simbólica de seus objetos para o desejo, sejam eles "X", o menino que o decepcionou, seja "Y", o louco invasor de 42 anos, seja "Z", a menina que causa inesperadamente seu desejo e seu amor. O analista parece ter escutado essa diferença quando comenta que Antônio tem uma apresentação mais feminina (como traço de identidade) do que efeminada (como traço de endereçamento de desejo ao Outro).

 

A recorrência de actings outs, como queimar-se, cortar-se, a passagem ao ato da agressão ao pai, sugere duas coisas: (a) dificuldade de tramitação da angústia e (b) há algo da ordem do desejo que se vê apartado ou excluído da captação na transferência, logo da possibilidade de interpretação. Por isso Antônio não consegue articular propriamente seus sintomas ao tratamento. A emergência do real não é examinada em detalhe, mas não deixa de ser intuída pelo analista. Talvez seja por ter percebido a ausência de circulação da palavra entre pai e filho que ele insiste na realização de uma sessão coletiva, no assentimento do pai das duas sessões e assim por diante. Contudo, este deveria ser o horizonte inicial de realização da cura e não o seu pressuposto.

 

A aposta de que esse pai seria demovido, pela transferência assim postada, a compartilhar a circulação do falo com seu filho, reconhecendo-o mais como um sujeito do que como um infans, parece uma aposta demasiado forte para o contexto. E ela se enfraquece ainda mais quando o analista faz parceria com a demanda do pai e posiciona Antônio como um "menor de idade" que não pode resolver as "coisas de adulto sozinho". Lembremos que sexo e dinheiro andam juntos. Aqui havia a variante mais simples e menos arriscada de aceitar o funcionamento atualmente em curso, deixá-lo entrar na transferência, para depois disso agir sobre ele, ou seja, receber o dinheiro pelo portador, suportar uma vez por semana (quiçá como um acordo provisório) e criar as condições para que Antônio continuasse vindo e falando. O próprio paciente abre essa possibilidade ao dizer: "prefiro continuar vindo algumas vezes antes de falar com meus pais".

 

Flávio Carvalho Ferraz

Como primeira observação, eu gostaria de destacar que o material clínico apresentado traz à tona a questão da própria complexidade do significado de um material clínico. O que vem a ser isto? Certamente um amálgama que contém o paciente com sua história e sua família, o paciente em transferência com o analista, a escuta do analista - condicionada por sua contratransferência e por suas crenças teóricas - e o seu manejo clínico.

 

Até aí nada de novo. Esta observação pode ter validade universal tratando-se de apresentação de materiais clínicos em psicanálise, mas no presente caso a decomposição fatorial do conjunto se insinua de maneira tão visível que quase chega a ser didática. Vejamos.

 

Há uma peculiaridade importante no material apresentado: mais do que o fragmento de uma análise ou um historial clínico sintético, trata-se, primordialmente, do relato de uma série de entrevistas preliminares que não evoluíram rumo a um processo analítico. Este é, para mim, o cerne do material trazido pelo analista: a história da impossibilidade do estabelecimento de um contrato analítico e o consequente aborto de um tratamento. Quando, conforme as evidências, a necessidade de uma análise era indiscutível.

 

Antes de entrar no tema da frustração do projeto de análise, tanto para o paciente como para o analista - ao que me pareceu, mais para o segundo -, gostaria de assinalar alguns pontos sobre o paciente. Ele se apega a sua definição como homossexual com um vigor sintomático, fato que não passa despercebido ao analista. Parece que definir-se assim é mais importante do que ser assim. Independentemente de qual seja sua orientação sexual predominante, definir-se como homossexual e fazer disso um tema compartilhado na intimidade com a mãe, com a exclusão inicial do pai, é uma operação que fala da economia das identificações e afetos na família. O paciente procura, aparentemente, eliminar as marcas da paternidade e da linhagem paterna. Passa a assinar apenas o sobrenome da bisavó materna e a relacionar-se predominantemente com os avós maternos, com quem inclusive vai morar. Portanto, ser homossexual, nesse caso, é algo para além de uma escolha objetal: é uma espécie de fidelidade à mãe e de recusa ao pai, ao que parece, "exigida" inconscientemente pela mãe durante a formação subjetiva de Antônio.

 

Tudo isso denota um funcionamento familiar bastante perturbado. A mãe entra em depressão, logo após o nascimento do filho, ao constatar que o bebê real era diferente do seu bebê imaginado, que nada mais seria do que uma extensão narcísica de si própria. A partir daí ela vai engendrando para seu rebento uma identidade próxima da sua, ou seja, feminina. O pai, alijado do desenvolvimento do filho, segue "sem perceber" a operação que ia sendo tramada. Comporta-se de um modo normótico, seja ao não ver o que vai acontecendo com o filho e com a relação deste com a mãe, seja ao eliminar qualquer ressonância afetiva que isso poderia lhe trazer, aí incluída sua decepção com o desfecho da identificação sexual do filho. Antônio vai crescendo embalado eroticamente pela identificação com a mãe e pelo rechaço da figura paterna.

 

A crise que se assiste no momento anterior à procura do analista é um fenômeno de explosão da ordem instalada, que em algum momento, certamente, não mais poderia seguir o curso de pseudoadaptação que até então parecia prevalecer. Evidência do funcionamento normótico do pai (que apresenta um genuíno pensamento operatório[1]) é, por exemplo, a falta de percepção de qualquer alteração da dinâmica afetiva da família quando a filha de seu primeiro casamento vem morar com sua nova família. A mudança descrita se restringe à distribuição dos quartos! Apenas a realidade material é percebida e investida, numa defesa ferrenha contra qualquer emergência de aspectos subjetivos. Outra evidência disso é a postura, agora do casal, que age, em plena crise, como se tudo estivesse bem na família, o que leva o analista a pensar em uma "fachada politicamente correta".

 

A crise vivida por Antônio pareceu-me, portanto, com o que Christopher Bollas[2] chama de colapso normótico, que pode ocorrer quando o adolescente não consegue mais suportar a normopatia familiar. Surgem então fenômenos similares à irrupção de uma psicose ou crises em que severos acting-outs ganham a cena, exatamente como no caso de Antônio. Curiosamente é o momento em que o pai é instado a quebrar sua recusa em relação à homossexualidade do filho. Mas ele o faz também de maneira normótica, uma vez que prossegue afirmando que, para ele, isso não constituía problema algum. É um modo de tentar manter a mesma postura de recusa, se não mais do fato, agora do afeto a ele associado. E à mãe é permitido continuar partilhando eroticamente da intimidade do filho, mantendo o pai afastado daquela relação gozosa.

 

Sei que tudo isso soa muito óbvio. Mas há algo para além dessa obviedade que vai repercutir na resistência à análise e no fracasso do contrato analítico. Sabemos à exaustão que as famílias têm lá sua falsa harmonia em meio a todos os modos patológicos de funcionamento. Da mesma forma, sabemos que cada um de seus membros ocupa, nessa dinâmica, um lugar que vai sendo cristalizado, o que torna difícil o movimento de qualquer um deles dentro da estrutura, uma vez que a mudança de uma peça afeta toda a engrenagem construída.

 

No momento do susto com a crise psíquica de Antônio, abre-se uma brecha para o analista, ou seja, abre-se uma fenda na estrutura fechada que até então seguia seu curso patológico com o gozo de todos os envolvidos, numa verdadeira comunidade da recusa, como Denise Braunschweig e Michel Fain[3] denominam o mecanismo que resulta nesse tipo arranjo familiar. É então que se dá a primeira entrevista dos pais com o analista, em que este já se impressiona com a diferença abissal entre as dinâmicas do relacionamento de Antônio com o pai e com a mãe. E também com a forte recusa dos pais sobre as frustrações das expectativas que a crise do filho poderia fazer emergirem.

 

Há claros indícios da resistência que a partir daí se estabelece. Além do fato de terem marcado a entrevista para uma data próxima ao início das férias, o contato subsequente com o analista, que fica combinado ao fim da entrevista, não é feito. É o analista que se preocupa em telefonar para o pai de Antônio, que, muito educado e formal, conta-lhe que tudo estava "mais calmo". Passam-se então longos seis meses até que o pai retoma o contato com o analista, dizendo-lhe que o filho se dispusera a vê-lo. É aí que começa a outra parte da história de uma resistência.

 

Antônio critica severamente seu pai para o analista. Reitera o que este já sabia sobre sua forte ligação com a mãe, com quem era possível conversar, e seu solene horror ao pai, com quem nada podia falar sobre sua subjetividade, uma vez que ele, pai, só sabia tratar objetivamente os fatos: descreve-o como "pragmático, cartesiano". No meu entender é aí que certos mecanismos inconscientes mais sutis vão entrando em cena e determinando, silenciosamente, o curso do trabalho e seu desfecho desfavorável à análise. É fácil cairmos nas deduções a que podem nos conduzir um "estudo de caso" baseado nas teorias psicanalíticas do desenvolvimento mais lineares. Mas essa forma tão óbvia tomada pelo arranjo discursivo do caso, no seio da própria família, contém armadilhas transferenciais que frequentemente nos driblam e dão vitória aos fenômenos resistenciais.

 

Antônio revela suas intimidades ao analista de modo imediato. Parece não apresentar resistência. Toma o analista por uma espécie de pai oposto ao real, que tudo pode ouvir, tal qual a mãe. O paciente abre o tema da sua homossexualidade, seus sentimentos em relação aos pais, seus namoros, o problema que encontrou no relacionamento com um homem mais velho etc. O analista, obviamente, encara os fatos com a natural e inelutável contratransferência e com sua teoria de suporte, que, ao que podemos deduzir, inspira-se fortemente na ideia bioniana do "aprender com a experiência". Sua tentativa de enquadrar o caos trazido pelo paciente, buscando ajudá-lo a obter um mínimo de organização mental e de contato com sua experiência emocional, rumo à formulação de um pensamento, é patente e louvável.

 

Mas há risco de que essa forma de proceder adquira um tom adaptativo, que faça com que Antônio, inconscientemente, entre em contato com o desejo também inconsciente do pai sobre si. Quando se diz ao paciente que não dá para fazer de tudo na vida, e que é necessário fazer escolhas, perde-se, no meu entender, a oportunidade de dar maior vazão ao universo fantasmático. É como se a castração viesse antes da afirmação plena do desejo. Isso se torna mais patente quando se propõe ao paciente que pense mais profundamente sobre sua escolha homossexual, colocando-a em questão. Sem dúvida que toda escolha de objeto pode ser pensada numa análise, mas no contexto das entrevistas preliminares isso pode assumir uma certa tonalidade ortopédica. Antônio, de fato, dá então relevo à atração que sente por uma certa garota. Mas não seria o caso de pensar se não se trataria, aí, de um afago transferencial ao analista? Analista que, assim, seria investido pela imago paterna, a despeito do discurso consciente de condenação intelectiva do pai real. Tal como o pai, o analista "sabe", fato que pode impedir sua aproximação mais profunda com o paciente.

 

O que assistimos a partir de então, como elemento central do encontro entre paciente e analista, é o embate em torno do contrato e a insistência, por parte do segundo, sobre as duas sessões semanais, quando pai e filho se acham unidos - e, portanto, identificados - no finca-pé em torno da defesa de apenas uma sessão. Isso aparece na terceira sessão, em que o paciente alega ter outras prioridades que não a análise. E se repete na quarta, quando Antônio diz que não precisa de duas sessões semanais. Aliás, nessa mesma sessão, o analista tem uma percepção importante, que é a da possível identificação entre pai e filho em torno da onipotência e da "voracidade sem tempo e sem espaço para a elaboração".

 

O analista segue regiamente os preceitos da técnica analítica, mantendo-se numa linha de ação que privilegia a autonomia do paciente em torno do estabelecimento do contrato. Todavia, sabe que, tratando-se de um menor de idade, os pais são os responsáveis pelos termos do contrato. Mas confia na ideia de que o filho deve lidar com seu pai a respeito desse tema; alega que "há lacunas na comunicação" entre pai e filho, o que funciona como uma insinuação de que o filho deveria procurar ampliar o espaço de contato e de diálogo com o pai, o que não era possível, em absoluto, naquela família perturbada. Agindo assim, o analista acaba estreitando a sua via de contato também com o pai de Antônio, delegando ao paciente o trabalho de intermediação. Mas o que me parece é que a possibilidade de um eventual diálogo com o pai - que fosse uma conversa verdadeira, em que ambos os lados se escutam, e não as brigas correntes com as agressões verbais e físicas - estava exatamente na dependência dos progressos iniciais de uma análise, não podendo ser, assim, uma exigência prévia a esta, o que seria uma espécie de petitio principii.

 

O encaminhamento dado à difícil situação seria perfeita se não se tratasse de uma família tão doente. Essa linha de ação psicanalítica assumida parece ter sufocado precocemente a análise incipiente que se esboçava. Lançou o filho na identificação com o pai em torno da resistência. Esse é um fenômeno insidioso que se descortina no horizonte de uma análise: a desmentida, em ato, do discurso convencional e consciente sobre a dinâmica familiar, em torno das modalidades das relações afetivas e das próprias identificações. Pergunto-me: por que a insistência sobre as duas sessões semanais? Claro que seria melhor se houvesse mais sessões. Não é isso que quero pôr em discussão. Mas este se tornou o assunto predominante das sessões e uma condição sine qua non imposta pelo analista para que ocorresse a análise, à guisa de um saber indiscutível.

 

Claro é também que a ingerência do pai sobre a análise do filho não deve ser acolhida, e nem tampouco estimulada. O pai insistia em alijar o filho dos termos do contrato, sobretudo de seus aspectos financeiros. Mas nas análises de crianças e de adolescentes, quando sua própria condição de possibilidade reside na assunção parental da responsabilidade financeira, há que se ter um pouco mais de tato ou de flexibilidade. Penso que o desejo do analista de analisar, já exposto no telefonema que dera aos pais de Antônio depois das férias, tomando a iniciativa que deveria ser da família, se sobrepôs à necessidade de análise, apenas fragilmente sentida por Antônio e por seus pais. Na terceira sessão, algo assim se repete: ante a afirmação do paciente de que a prioridade em sua vida eram a escola e os amigos, o analista se contrapõe asseverando que, para ele, a análise era a prioridade. Isso não impediu que a força resistencial da inércia familiar viesse a prevalecer. O pai encerra o processo sem deixar nenhuma chance para conversa. Mas estaria Antônio à parte de tal processo resistencial? Creio que não, e este é o ponto insidioso que pode nos desnortear se "acreditarmos" nas juras conscientes do paciente quando afirma ser tão diferente do pai, ou até mesmo oposto a ele...

 

Constitui parte do processo analítico desvendar os laços inconscientes que unem o paciente a seus familiares, inclusive fazendo com que este tome consciência de seu papel nessa engrenagem. E de levá-lo a pensar sobre a ambiguidade de seu desejo entre a ruptura e a manutenção dos mesmos. Mas nos pacientes mais frágeis ou com um funcionamento mais precário, esse processo é mais difícil e merece muito cuidado. Muitas vezes eles são vítimas de uma simbiose instalada pela mãe, como é patente em Antônio. Nesses casos, como na criança e no psicótico, confiar na ideia de que os insights obtidos na análise são suficientes para fazer com que o paciente altere sua posição diante de seus objetos é um procedimento temerário. Lembro-me de um paciente psicótico que às vezes tinha, durante a sessão, verdadeiros insights sobre o jogo perverso que sua mãe lhe impunha e com o qual o controlava. Após "jurar" que não mais toleraria aquilo, saía da sessão pronto a "conversar" com ela, disposição que abandonava assim que a via e recebia de suas mãos um pequeno maço de notas de cem reais...

 

Penso que em casos como o de Antônio, em que é indiscutível a necessidade de análise, podemos jogar com uma margem de folga maior em torno do contrato, sobretudo quando está em cena um pai com as características que vimos. Este se sentiu ameaçado pelo eventual pacto entre filho e analista, do qual ele seria excluído, tal como excluído fora do pacto entre seu filho e sua mulher. Uma sessão semanal, por mais que representasse um limite significativo para o trabalho, seria melhor do que nenhuma. A análise das simbioses poderia ser feita ao longo do tempo, inclusive com a inclusão dos pais no tratamento. Ao menos assim teríamos tido uma chance.

 

Reconheço os benefícios de um maior número de sessões, evidentemente. Mas às vezes me pergunto se o fechamento de questão em torno disso é sempre um procedimento em benefício da análise ou se não pode ser, eventualmente, expressão de um "superego" técnico, agindo mais como guardião da "instituição" da psicanálise do que propriamente como elemento de preservação do método psicanalítico. Tenho tido muitos casos de verdadeiras análises com a frequência de uma sessão semanal, em que os benefícios para os pacientes são inequívocos. Sei que estou em desacordo com muitos e bons colegas sobre este ponto, cujo posicionamento respeito. Mas, cada vez mais, julgo que a essência da análise passa ao largo de sua formalização. Não do enquadre, claro.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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