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Resumo
Este trabalho procurou realizar uma investigação teórica a respeito das figuras do desenvolvimento psíquico na obra de Freud. Para isso, foram rastreados e analisados trechos da obra freudiana que se referissem a esses aspectos do tempo e desenvolvimento, identificados na metáfora arqueológica e de retranscrição. Concluímos que os dois modelos coexistem e estão articulados na concepção sobre o aparelho psíquico em Freud.


Palavras-chave
Sigmund Freud; temporalidade; desenvolvimento.


Autor(es)
Renata Bazzo Bazzo
é mestre em Psicologia Social pela puc-sp


Notas

1.     T. Mann, A montanha mágica, p. 32.

2.     J. Gondar, Os tempos de Freud.

3.     A.S. Gueller, Vestígios do tempo: paradoxos da atemporalidade no pensamento freudiano.

4.     R. Mezan, Freud, pensador da cultura.

5.     D. Spence, A metáfora freudiana: para uma mudança paradigmática na psicanálise, p. 32.

6.     S. Freud, "O mal-estar na civilização", p. 79.

7.     S. Freud. op. cit., p. 77.

8.     S. Freud, op. cit., p.79.

9.     S. Freud, "Pulsões e destino da pulsão", p. 155.

10.   S. Freud, "A interpretação dos sonhos", p. 554.

11.   S. Freud, "Notas sobre um caso de neurose obsessiva", p. 157.

12.   S. Freud, "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen", p. 53.

13.   S. Freud. "Construções em análise", p. 277.

14.   S. Freud, "Construções em análise", p. 278.

15.   S. Freud, "O inconsciente", p. 38.

16.   S. Freud, "O inconsciente", p. 37.

17.   L.R. Monzani, Freud: o movimento de um pensamento, p. 289.

18.   S. Freud, "A interpretação dos sonhos", p. 567.

19.   A. Gueller, op. cit.

20.   J. Gondar, op. cit.

21.   J. Gondar, op. cit., p. 30.

22.   S. Freud, "Sobre o narcisismo", p. 99.

23.   S. Freud, "Carta 52", in J. Masson, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, p. 208.

24.   S. Freud, "Carta 52", in J. Masson, A correspondência completa..., p. 209.

25.   S. Freud, "Carta 52", in J. Masson, A correspondência completa..., p. 209.

26.   S. Freud, "Carta 52", in J. Masson, A correspondência completa..., p. 209.



Referências bibliográficas

Freud S. (1996 [1900]) A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1906-1907]). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1909]). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1914]) Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1924-1925]). Uma nota sobre o "Bloco Mágico". In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1927]). O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1929-1930]). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1937]). Construções em análise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1996 [1937]). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago.

____. (2006 [1915]) O inconsciente. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, vol. II: 1915-1920. Coordenação geral da tradução Luiz Alberto Hans. Rio de Janeiro: Imago.

____. (2006 [1915b]) Pulsões e destino da pulsão. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, vol. II: 1915-1920. Coordenação geral da tradução Luiz Alberto Hans. Rio de Janeiro: Imago.

____. (2003 [1891]). A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70.

Gondar J. (1995). Os tempos de Freud. Rio de Janeiro: Revinter.

Gueller A. (2005). Vestígios do tempo: paradoxos da atemporalidade no pensamento freudiano. São Paulo: Arte & Ciência.

Mann T. (1982). A montanha mágica. Rio de Janeiro: Círculo do Livro/Nova Fronteira.

Masson J. (1986 [1887-1904]). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago.

Mezan R. (1985). Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPQ.

Monzani L.R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP.

Spence D. (1992). A metáfora freudiana: para uma mudança paradigmática na psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
This study sought to conduct a theoretical investigation about the figures of psychic development in Freud’s work. For this, we tracked and analyzed excerpts of Freudian that were referred to these aspects of time and development, identified in both archaeological and retranscription metaphors. We conclude that the two models coexist and are articulated in the conception of the psychic apparatus in Freud.


Keywords
Sigmund Freud; temporality; development.

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 TEXTO

Coexistência e retranscrição: metáforas do desenvolvimento em Freud

Coexistence and retranscription: metaphors of development in Freud
Renata Bazzo Bazzo

E se apoderava do menino uma sensação já muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora
e angustiante, de algo que desfilava sem se mover,
que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia - impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão.

[Thomas Mann, A montanha mágica[1].]

 

Não deixa de surpreender o leitor que recorre à literatura de comentário de estudos freudianos o fato de poder encontrar simultaneamente as interpretações que apontam Freud como um autor desenvolvimentista, enquanto outros textos enfatizam o caráter atemporal do inconsciente. Como é possível conceber que um sistema possa ser composto por traços psíquicos acrônicos, mas que, ao mesmo tempo, se desenvolvem progressivamente? Poder-se-ia perguntar se esse paradoxo é apenas fruto de exegeses opostas ou se realmente existem concepções diversas e complexas do tempo em Freud.

 

Em seus estudos sobre a temporalidade em Freud, Gondar[2] e Gueller[3] fizeram um levantamento das múltiplas concepções de tempo encontradas no texto freudiano, que seriam pelo menos cinco: a atemporalidade, o tempo da memória filogenética, o a posteriori, o tempo da pulsão, a regressão. Segundo Mezan[4], essa multiplicidade de abordagens em Freud, somada à dispersão das reflexões sobre o tema - que aparece nos textos apenas em comentários adicionais ou secundários, não recebendo uma reunião das concepções em jogo em um só trabalho -, dificultaria a compreensão de suas nuances, fazendo do tempo uma das mais confusas e embaraçadas questões do legado do pensamento freudiano para seus intérpretes.

 

Outra característica do esquema freudiano de referência ao tempo é a frequente utilização de metáforas para explicitar seus modelos teóricos. Existem as metáforas arqueológicas de Roma e de Pompeia, a metáfora do sistema de transcrições e dos fueros, as metáforas de herança. No entanto, nenhuma delas foi capaz de reunir em seu sentido todas as concepções do tempo, o que possivelmente se deu não pela insuficiência figurativa dessas metáforas, mas pela própria complexidade da matéria a ser representada. Em seu estudo sobre o uso da metáfora por Freud, Spence[5] afirma que o emprego do recurso metafórico,"[...] ressalta a natureza poética da linguagem de Freud e sublinha sua luta para pôr em palavras o indizível e o impensável. Essas tentativas, como ele deixou claro em muitas passagens, eram com frequência tateantes, experimentais e exploratórias: primeiras aproximações a fenômenos e experiências que, mesmo agora, conseguem escapar entre nossos dedos. É em parte porque permanece difícil de apreender que a experiência tende a ser substituída pela metáfora".

 

Seguindo a indicação da interpretação de Spence, a utilização frequente por Freud da metáfora como recurso para expressar suas concepções de tempo poderia indicar que essas teorias se encaixavam no conjunto das matérias de difícil aproximação e apreensão. Ora, se admitirmos essa premissa como válida, logo teremos que supor que as concepções de tempo em jogo na obra freudiana não podem ser reduzidas facilmente aos sentidos mais corriqueiros e usuais, por exemplo, o de um tempo linear, progressivo e irreversível, que caracterizam o desenvolvimentismo tout court.

 

O objetivo desse trabalho foi rastrear e analisar ao menos duas dessas metáforas do tempo em Freud, não com o intuito de entender suas explicações de como se daria a apreensão subjetiva do tempo, mas verificar se haveria em Freud qualquer descrição que pudesse corroborar a tese de que a exposição à ação de passagem do tempo cronológico implique modificações graduais e cumulativas nas organizações dos traços psíquicos ou se, ao contrário, a ação do tempo não seria determinante para o funcionamento do aparelho tal como concebido pelo autor.

 

Metáforas arqueológicas:
permanência e eternidade

É conhecida a metáfora de Roma criada por Freud para aludir à mente humana em O mal-estar na civilização (1930[1929]). Na descrição freudiana, as edificações que outrora foram destruídas para dar lugar a novas construções encontram-se conservadas no mesmo solo, no mesmo ponto e no mesmo tempo que as suas sucessoras, sem que para isso seja necessário desarranjar o que está em seu lugar. Para fazer sua metáfora da mente, Freud monta um cenário incomum, no qual todas as construções, das mais diversas eras, coexistem exatamente no mesmo ponto sem que nada se perca: "Permitam-nos agora, num voo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante - isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as Septizonium de Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e que o castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria - sem que o Palazzo tivesse de ser removido - o Templo de Júpiter Capitolino, não apenas em sua última forma, como os romanos do Império o viam, mas também na primitiva, quando apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa; na verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída"[6].

 

Essa metáfora é apresentada logo no início do texto, pouco após Freud discriminar três tipos de desenvolvimento - do reino animal, do corpo e da mente -, apontando suas peculiaridades. Quanto ao corpo, Freud afirma sobre seu desenvolvimento que as primeiras formações de ossos e órgãos são incorporadas no seu vir a ser, de modo a não sobrar vestígios de suas formas iniciais no final do processo de transformação. Mas essa circunstância muda quando se trata do desenvolvimento da mente, uma vez que "no domínio da mente, por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu"[7]. A metáfora de Roma é a tentativa de figurar essa forma de desenvolvimento tão incomum, tentando conjugar traços do passado e do presente nos mesmos espaços.

 

Ainda que nos pareça muito engenhoso utilizar a Cidade Eterna como figuração de um sistema em que os traços jamais são destruídos, Freud julga que sua tentativa foi somente um "jogo ocioso", um insucesso que apenas revela "quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos"[8]. Porém, há que se notar que se a metáfora utilizada Freud, por seu juízo, estivesse longe de ter alcançado o objetivo pretendido, isso não se deu por falta de tentativas. Em 1915, no texto Pulsões e destino da pulsão, Freud buscou através da figuração da erupção vulcânica e suas sucessivas ondas de lava ilustrar o que poderia ser o desenvolvimento da pulsão: "Poderíamos decompor o percurso de vida de cada pulsão em ondas agrupáveis dentro de diferentes intervalos de tempo (adotando unidades de tempo quaisquer). Consideremos que cada intervalo de tempo contenha séries de ondas homogêneas entre si. Assim, essas séries podem ser concebidas relacionadas umas com as outras de modo análogo a sucessivas erupções de lava. Podemos então imaginar que a primeira e mais original erupção pulsional tenha continuado a ocorrer sem alteração e sem sofrer nenhum tipo de evolução. A série de ondas seguinte experimentaria, desde o início, uma modificação, talvez a transformação em passividade, e, tendo incorporado essa nova característica, ela se somaria à onda anterior, e assim por diante"[9].

 

Destacamos que não apenas Freud se vale de recursos pictóricos para expressar sua concepção da vida mental, como os busca, a nosso ver, para tentar dar conta principalmente de uma concepção específica e persistente: como descrever a coexistência no mesmo espaço dos elementos antigos e recentes e, além disso, como descrever a coexistência da forma primeira de representações e pulsões com sua forma posterior. Ou seja, a presença simultânea na vida psíquica da primeira inscrição de um elemento com a forma que assumiu em seu desenvolvimento ulterior. Se retomarmos a passagem em que Freud descreve o desenvolvimento do corpo e aplicarmos a lei de não eliminação da versão primeira do mesmo elemento coexistindo com todas as suas outras formas assumidas ao longo de uma história, válida para a vida psíquica, poderíamos imaginar um corpo que ao mesmo tempo apresenta o embrião, a forma infantil e a forma adulta, a sequência inteira de transformações da medula óssea, a glândula do timo da infância lado a lado com os tecidos de ligação, todas as etapas de evolução coexistindo lado a lado.

 

Também em 1919, em A interpretação dos sonhos, Freud faz um acréscimo ao texto original para enfatizar que não apenas os traços advindos de percepção externa são indestrutíveis na vida mental, mas que também são todos os atos anímicos, construções, fantasias e os sonhos que, uma vez criados, continuariam existindo: "Os sonhos que ocorrem nos primeiros anos da infância e são retidos na memória por dezenas de anos, muitas vezes com vividez sensorial completa, são quase sempre de grande importância para nos permitir entender a história do desenvolvimento psíquico do sujeito e de sua neurose"[10].

 

Em princípio, o único modo de haver destruição ou desgaste desses traços que foram inscritos na memória, e que se mantêm vigentes e atuais em todas as suas versões, seria através de sua vinculação à consciência, onde poderiam começar a perder seu domínio e intensidade. Esse recurso para desgastar as inscrições é apresentado em Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909), quando, ao ser questionado pelo paciente a respeito dos mecanismos do tratamento que levam a um efeito terapêutico, Freud lhe explica, utilizando o recurso da metáfora novamente, como esse efeito se daria: "Fiz então algumas pequenas observações sobre as diferenças psicológicas entre o consciente e o inconsciente, e sobre o fato de que toda coisa consciente estava sujeita a um processo de desgaste, ao passo que aquilo que era inconsciente era relativamente imutável; e ilustrei meus comentários indicando as antiguidades que se encontravam ao redor, em minha sala. Eram, com efeito, disse eu, apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento deles tinha sido o meio de sua preservação: a destruição de Pompeia só estava começando agora que ela fora desenterrada"[11].

 

É possível acompanhar nos escritos freudianos como Roma e Pompeia serão as metáforas arqueológicas privilegiadas para se referir ao sistema inconsciente, sistema este em que os traços encontram-se de certo modo eternizados. Contudo, as referências a Pompeia contêm uma particularidade - que a citação acima já indica -, pois passam a indicar também a possibilidade de emergência e extração desse conteúdo pela análise, para que possa ser desvelado e transformado em cinzas. A analogia entre o conteúdo inconsciente e o conteúdo soterrado e entre o trabalho do analista com o trabalho do arqueólogo é bastante proveitosa no texto freudiano Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]) que comenta a novela Gradiva de Wilhem Jensen. No romance de Jensen, o personagem do jovem arqueólogo Nobert Hanold viaja para Pompeia, cidade que será cenário de seus sonhos, fantasias e delírios e onde conseguirá recuperar sua capacidade de amar através de suas pesquisas delirantes em busca da moça retratada no relevo Gradiva e com a ajuda de sua amiga Zoe Bertrang, que se revela ser seu verdadeiro objeto de amor. Freud aproveita o ensejo dado pelo cenário da novela de Jensen para traçar diversos paralelos e equiparações, por exemplo, entre a operação de recalcamento e o soterramento de Pompeia: "houve uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompeia - que fez desaparecer mas ao mesmo tempo preservou o passado - e a repressão"[12].

 

Em 1937, a analogia entre a tarefa do analista e o trabalho do arqueólogo é novamente estudada por Freud em Construções em análise. Entretanto, embora mantida, a comparação ganha renovação importante com o conceito de construção. Ainda que estivesse presente na condução das análises de Freud já na descrição de casos da primeira década dos anos 1900, a construção ganha outro estatuto ao ser mais bem definida nesse texto. Conforme as linhas desse artigo, haveria diversas formas de o conteúdo recalcado ser resgatado ou invocado, seja através dos sonhos e das associações, como também pela repetição na transferência das relações das fantasias inconscientes. No entanto, existiriam ligações entre os conteúdos recalcados que não se encontrariam recalcadas para poderem ser recuperadas, de modo que se tornaria necessário que o analista as reconstruísse para que as associações do analisante continuassem e a análise tivesse prosseguimento. Nesse momento do texto, Freud estabelece novamente então as comparações entre o trabalho do analista e do arqueólogo: "Seu trabalho de construção, ou, se se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício. Os dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha em melhores condições e tem mais material à sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo com que está tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo - e talvez por outra razão também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro"[13].

 

Ainda que esses novos contornos sejam adicionados à antiga comparação entre o ofício do psicanalista e a arqueologia, há um ponto no texto de 1937 em que Freud não inova absolutamente: trata-se do modo como define a composição e situação dos traços no sistema inconsciente: "Aqui, defrontamo-nos regularmente com uma situação que, com o objeto arqueológico, ocorre apenas em circunstâncias raras, tais como as de Pompeia ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total"[14].

 

Porém, ainda que os traços inconscientes sejam indestrutíveis e que nesse sistema os vestígios do passado se encontrem em simultaneidade com os traços atuais, cabe perguntar como se organizam todos esses elementos. Estariam todos eles encadeados em uma espécie de linha do tempo psíquica, responsável por organizar todas essas inscrições segundo uma ordem temporal sucessiva que obedeceria às medidas objetivas do tempo cronológico?

 

É aqui que uma das teses freudianas a respeito das características do inconsciente pode fazer sua aparição. A afirmação freudiana da atemporalidade inconsciente talvez seja uma das suas mais conhecidas asserções e está presente em seus escritos desde o início até o fim de sua obra. Em 1915, no texto O inconsciente, ele afirma: "atenhamo-nos ainda ao Ics e ressaltemos agora que os processos nesse sistema são atemporais, eles não estão cronologicamente organizados, não são afetados pelo tempo decorrido e não têm nenhuma relação com o tempo"[15]. Em seguida, Freud esclarece que a organização temporal cronológica está referida ao sistema consciente apenas. Algumas linhas antes nesse mesmo texto, outra característica do sistema inconsciente, não menos importante, já havia sido apresentada ao leitor: "No âmbito do Ics não há lugar para a negação [...]"[16]. Se tentarmos relacioná-las, poderíamos concluir que, com efeito, para que os registros inconscientes possam ser indestrutíveis é preciso que, de algum modo, estes não estejam submetidos à ação temporal, caso contrário estariam sujeitos à mudança e à negação da identidade da primeira inscrição. Ou seja, para que os traços não sejam negados com a possibilidade de transformação, é preciso que estejam desligados do tempo. Desse modo, parece ser essa a razão para que não possa haver negação ou temporalidade cronológica nesse sistema, pois apenas isso poderia garantir que seus traços fossem, de certo modo, eternos.

 

Caberia perguntar como poderia se justificar teoricamente, nesse contexto de atemporalidade inconsciente, que ocorram os retornos às organizações anteriores, expressos no conceito de regressão temporal. Quanto a esse aspecto, concordamos com a posição de Monzani que destaca a presença de um paradoxo na hipótese de uma regressão no sistema inconsciente. Se pensarmos que nesse sistema os registros não estão dispostos dentro de uma lógica temporal cronologicamente organizada, parece não haver meios de postular uma regressão a formas ou a organizações psíquica que lhes são antecessoras. Se a forma anterior está constantemente presente, simultaneamente aos traços mais recentes, nos perguntamos que tipo de regressão seria essa. Nas palavras de Monzani, para o inconsciente, "o passado não é potencial, uma possibilidade de volta, ele é, em certas esferas, atual"[17].

 

Além da questão da possibilidade da regressão temporal, a hipótese da atemporalidade inconsciente nos coloca diante de mais uma questão teórica aparentemente de difícil articulação. Ao consultarmos o item B do capítulo VII em A interpretação dos sonhos, encontraremos a seguinte afirmação: "A rigor, não há necessidade da hipótese de que os sistemas psíquicos realmente se disponham numa ordem espacial. Bastaria que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada sequência temporal"[18]. Como seria possível conciliar o conteúdo das duas asserções, ou seja, de que se trata de uma tópica temporal, mas de um inconsciente atemporal? A princípio, poderia parece que estamos diante de um paradoxo teórico. Contudo, tanto Gueller[19] como Gondar[20], em seus respectivos estudos a respeito da temporalidade em Freud, nos chamam atenção para a palavra processo que está presente na afirmação freudiana "os processos nesse sistema são atemporais". De acordo com essas autoras, a ideia de processo implica a ideia de uma série de ações dispostas em temporalidade, comportando uma imagem de desenrolar de eventos. Em sua concepção, a atemporalidade inconsciente não significaria negação total da presença de uma espécie de temporalidade e desenvolvimento nesse sistema: "Pois se não houvesse uma ordenação temporal qualquer com relação a esses processos, o inconsciente seria caótico. E sabemos que não é disso que se trata: o inconsciente possui leis próprias de articulação; suas operações estão submetidas a uma determinada ordem e essa ordem deve estar referida a alguma modalidade de tempo. Não é necessário que uma tal modalidade seja de tipo linear-escoativo, na qual os eventos se sucedem regularmente. Mas é preciso que alguma modalidade temporal esteja em jogo, pois, caso contrário [...] nem mesmo seria possível se falar em processos inconscientes"[21].

 

Ou seja, segundo essa leitura da asserção freudiana, com a qual concordamos, a temporalidade não pode ser totalmente elidida. Como já havíamos destacado acima, Freud se valeu de recursos pictóricos para expressar não apenas sua concepção da vida mental como espaço de coexistência dos elementos antigos e recentes, mas também para descrever a coexistência da forma primeira de representações e pulsões com a forma que estas assumem posteriormente. Portanto, se estão presentes simultaneamente a primeira inscrição de um elemento com sua forma segunda, algum tipo de desenvolvimento deve haver no interior desse sistema atemporal.

 

Vejamos agora a que leis essas modificações obedecem de modo que seja possível conciliar, em um mesmo sistema, a identidade dos traços com a série de mudanças por quais esses passam.

 

Passagem do tempo e a metáfora
da retranscrição

Como vimos no final do item anterior, a asserção de que o inconsciente é atemporal não equivale a supor a ausência de processos e desenvolvimento, já que não se trata de um sistema estático. Se essa hipótese não for assumida, seria necessário afirmar que o aparelho psíquico é inato, já está pronto e acabado ao nascer, e que não se modifica absolutamente ao longo da vida. Seria preciso ainda admitir que esse aparelho consiste em um sistema ou em uma estrutura ideal, totalmente pura e não afetável pela experiência. Isso parece ser contrário à suposição freudiana exposta, por exemplo, em Sobre o narcisismo, em que admite a necessidade de uma nova ação psíquica para que algo como o Eu possa ser fundado e desenvolvido: "É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente no indivíduo desde o início; o Eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas estão presentes desde seu início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo"[22].

 

Também no conjunto de cartas que compõem a correspondência de Freud ao médico Wilhem Fliess, há uma em especial que nos interessa para compreender nossa questão e sustentar nossa hipótese da existência de algum tipo de desenvolvimento no sistema inconsciente. Escrita em 6 de dezembro de 1896, a carta que ficou conhecida entre os comentadores da obra freudiana como Carta 52 contém um interessante modelo explicativo de Freud para as regras de movimentação e mudança na organização dos elementos na vida mental inconsciente. Longe de ser um sistema no qual os traços inscritos são estáticos e sem dinâmica, Freud apresenta um modelo de sistema que se reorganiza periodicamente. Novamente, sua descrição para a articulação entre a vida mental e a transformação temporal é sustentada por uma metáfora tão complexa quanto as já apresentadas anteriormente: "Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente sob a forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que é registrada em vários tipos de indicação"[23].

 

Pouco abaixo dessa passagem do texto, Freud apresenta um diagrama para representar, em termos topográficos, os diferentes registros neuronais e sua função específica dentro do sistema. Quase como um protótipo rudimentar do esquema do pente apresentado em A interpretação dos sonhos, aqui também temos a percepção como primeiro polo de entrada, polo não retentor dos traços para que seja mantida uma espécie de permeabilidade constante para a continuidade de entrada de novas percepções. A realização de inscrição dos traços será função de outro conjunto de neurônios que irá constituir a memória. Em seguida a essa camada neuronal, está o primeiro registro responsável pelas indicações de percepção como uma primeira inscrição da percepção que, segundo Freud, "se organiza de acordo com associações por simultaneidade"[24]. O segundo registro é a inconsciência, cujos traços "talvez correspondam a lembranças conceituais", e o terceiro registro é a pré-consciência. Freud anuncia a Fliess que ainda não sistematizou rigorosamente esse que ainda é um esboço de aparelho, de forma que não poderia fornecer, naquele momento, mais detalhes sobre a composição e relação entre os registros.

 

Contudo, o que restaria de novo e importante para suas pesquisas, tal como está anunciado no trecho do texto que recortamos e citamos acima, é a hipótese de que as inscrições psíquicas não se dão em um único momento e de uma só vez, mas passam por diversas marcações que ocorrem em momentos distintos e que cada uma dessas movimentações e reinscrições implicam um rearranjo do sistema como um todo. Esse modelo de sistema de memória no qual os traços são primeiramente inscritos (Niederschrift) para serem posteriormente transcritos (Umschrift), e ainda em outro momento serem retranscritos, recebeu uma metáfora mais elaborada e aprimorada no texto Bloco Mágico, escrito por Freud em1925. Se pudéssemos unir essa imagem de rearranjo periódico exposta na carta a Fliess à imagem de Roma apresentada no início do item anterior e fizermos um cruzamento entre as metáforas utilizadas por Freud para descrever o estado e funcionamento do sistema inconsciente, poderíamos imaginar, então, a cidade de Roma, com todas as construções existentes ao longo de sua história presentes no mesmo solo, virando e revirando de tempos em tempos, sem cessar.

 

Vejamos agora o que definiria esse intervalo de tempo e quais as consequências de seu insucesso: "Gostaria de enfatizar o fato de que os registros sucessivos representam conquistas psíquicas de fases sucessivas da vida. Na fronteira entre duas dessas fases é preciso que ocorra uma tradução do material psíquico. Explico as peculiaridades das psiconeuroses através da suposição de que essa tradução não se tenha dado no tocante a uma parte do material, o que acarreta certas consequências. E isso porque nos atemos firmemente à crença numa tendência ao ajustamento quantitativo. Cada transcrição posterior inibe sua predecessora e esgota seu processo excitatório. Quando falta uma transcrição posterior, a excitação é tratada de acordo com as leis psicológicas vigentes no período psíquico precedente e seguindo as vias abertas naquela época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada província, ainda vigoram os fueros; estamos na presença de ‘sobrevivências'"[25].

 

Ainda que esteja suposto um intervalo temporal entre as retranscrições, Freud não deixa exatamente definidos em quais momentos esse processo ocorreria ou o que exatamente poderia desencadeá-lo, como vemos na passagem acima. Freud apenas menciona que a tradução das inscrições possa ocorrer entre "fases sucessivas da vida", não fixando exatamente uma idade, um evento ou mesmo uma etapa específica para que a passagem de uma organização a outra ocorra. Como efeito desse processo de rearranjo, ter-se-ia o esgotamento e mudança no aspecto econômico que rege o funcionamento da inscrição anterior. Certamente, quando Freud afirma na passagem citada acima sua ênfase no "fato de que os registros sucessivos representam conquistas psíquicas de fases sucessivas da vida", parece indicar um curso de desenvolvimento evolutivo para a ocorrência das traduções. Entretanto, o material da Carta 52 não nos permite afirmar que essas conquistas possuam um telos que as guie rumo a um objeto ou configuração previamente estabelecida.

 

É sobre as falhas que ocorrem nesse processo de tradução e retranscrição entre os registros que Freud parece se ater com mais persistência e para elas tentar determinar períodos e fases da vida. A razão principal encontrada por Freud para explicar a não ocorrência das traduções está no desprazer que essa operação causaria para o aparelho. A tradução de uma inscrição cujo conteúdo poderá ser causa de desprazer é evitada pelo aparelho, afirma Freud, "é como se esse desprazer provocasse um distúrbio de pensamento que não permitisse o trabalho de tradução"[26]. Segundo sua hipótese, seriam as experiências sexuais prematuras as origens principais causadoras de desprazer e falhas na tradução. Entretanto, Freud localiza um ponto em sua explicação que ainda não consegue elucidar: por qual razão, em algumas pessoas, o evento sexual precoce que inicialmente causa prazer, quando recordado em uma fase posterior, torna-se fonte de desprazer? Por que o evento sexual precoce geraria desprazer muito tempo depois de a experiência inscrita ter ocorrido?

 

De todo modo, qualquer que seja sua origem - se em experiências passadas ou atuais, ou ainda em desprazeres passados que se atualizam -, a falha no trabalho de tradução causada pela evitação da experiência de desprazer manteria no aparelho uma espécie de sítio regido pelas leis e pela distribuição da economia excitatória que eram vigentes antes no período da primeira inscrição, criando uma espécie de anacronismo entre esses traços com os demais traços do sistema.

 

Assim, a hipótese da Carta 52 e seus desdobramentos parecem indicar a existência de dois descompassos de funcionamento no aparelho. Haveria aquele que se instala com a interrupção das traduções, gerando um intervalo de inscrições reguladas por leis antigas e por um regime de excitação que não é mais vigente; como também haveria outro descompasso, não totalmente explicado na carta, que se refere ao efeito de desprazer que ocorre só muito depois da ocorrência do evento. Esse descompasso entre as novas traduções e as velhas inscrições coabitando o mesmo espaço nos remete novamente à metáfora de Roma e à presença de um jogo de alternância constante entre sucessão e simultaneidade no aparelho psíquico que Freud tentou descrever através de todas essas figurações.

 

Esse percurso por algumas paragens da obra freudiana que se referem ao tempo e desenvolvimento, mesmo que indiretamente ou apenas em fragmentos, nos serviu como recurso investigativo para tentar identificar quais seriam as lógicas desenvolvimentistas subjacentes a suas teorias. Foi possível extrair ao menos duas concepções presentes nas diversas metáforas temporais utilizadas pelo autor: uma que afirma a sincronicidade e permanência dos traços psíquicos e que tem na metáfora de Roma, apresentada no texto O mal-estar na civilização, a maior expressão; e uma segunda via que afirma a existência do desenvolvimento diacrônico, apresentada pelo autor na Carta 52. Em nossa leitura, essas duas vias não se excluem, mas antes se articulam: ora se cruzam, ora se complementam e em alguns momentos se opõem. Desse modo, ainda que não tenhamos esgotamos todas as concepções de temporalidade em Freud, esses fragmentos apresentados acima possibilitaram apresentar ao leitor, no regimento de um mesmo sistema, desde ideias de regressão convivendo com a concepção de evolução a ideias de sucessão e simultaneidade coabitando o mesmo topos; tanto a indestrutibilidade dos traços como também o desenvolvimento em meio a anacronismos. Um relógio cujos ponteiros parecem indicar as composições de tempos as mais extravagantes.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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