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Resumo
Este artigo formula hipóteses acerca dos processos e efeitos metapsicológicos da experiência da alteridade, a partir das obras literárias de Imre Kertész e Roberto Bolaño, escritores autoexilados da contemporaneidade. Para tanto, iremos valer da importante noção freudiana de Unheimliche, e de sua aproximação aos conceitos de narcisismo, dualismo pulsional na segunda tópica e constituição da linguagem.


Palavras-chave
exílio; Unheimliche (inquietante estranheza); Imre Kertész; Roberto Bolaño; psicanálise; metapsicologia.


Autor(es)
Tiago Novaes Lima Lima
é escritor, tradutor e psicanalista. É doutorando do Instituto de Psicologia da usp. Publicou Subitamente: agora (7Letras, 2004), Estado vegetativo (Callis, 2007) e Documentário (Funarte, 2012), tendo recebido bolsas de criação   literária da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e da Funarte. Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2008. Idealizador e produtor do ciclo Tertulia: Encontros da Literatura para o Sesc-sp e coordenador de oficinas de prosa no Sesc-sp, na Academia Internacional de Cinema e no projeto Tantas Letras


Notas

1.     E.F.P. Matias, A humanidade e suas fronteiras. Do Estado soberano à sociedade global.

2.     P.H.G. Portela, Direito Internacional Público e Privado.

3.     P. Bowles, The Sheltering Sky, p. 48.

4.     V. Flusser, The freedom of the migrant: objections to nacionalism.

5.     Flusser, op. cit., p. 81.

6.     W. Benjamin, "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", in Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura.

7.     F. Rella, Desde el exilio: la creación artística como testimonio.

8.     C. Baudelaire, O pintor da vida moderna, p. 57.

9.     I. Kertész, Yo, otro: crónica del cambio p. 85.

10.   R. Bolaño, Llamadas telefónicas, p. 7.

11.   F. Rella, op. cit., p.130.

12.   O inquietante seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer. S. Freud, "O inquietante", in: Obras Completas [1917-1920], p. 332.

13.   J. Kristeva, Estrangeiros para no?s mesmos, p.190.

14.   S. Freud, op. cit., p. 356.

15.   J. Kristeva, op. cit.

16.   A.M. Loffredo, "Sobre a escrita dos relatos clínicos freudianos".

17.   P. Fedida, Nome, figura e memo?ria: a linguagem na situac?a?o psicanali?tica.

18.   R. Bolaño. Entre paréntesis, p. 56-58.

19.   R. Bolaño, Entre paréntesis, p. 86-87.

20.   R. Bolaño, Entre paréntesis, p. 43.

21.   Ibid. 2004, p.49.

22.   I. Kertész, Un relato policíaco, p. 8.

23.   I. Kertész, Yo, otro: crónica del cambio, p. 28.

24.   I. Kertész, Yo, otro..., p. 69.

25.   I. Kertész, Yo, otro..., p.12.

26.   I. Kertész, Yo, otro..., p. 61.

27.   I. Kertész, Yo, otro..., p. 9.

28.   I. Kertész, Yo, otro..., p.15.



Referências bibliográficas

Baudelaire C. (2010). O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica.

Benjamin W. (1987). A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, v.1). São Paulo: Brasiliense.

____. (1987). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, v. 1). São Paulo: Brasiliense.

Bolaño R. (2005). Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama.

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Bowles P. (2004). The Sheltering Sky. London: Penguin Modern Classics.

Fe?dida P.(1991). Nome, figura e memo?ria: a linguagem na situac?a?o psicanali?tica. Sa?o Paulo: Escuta.

Flusser V. (2003). The freedom of the migrant: objections to nacionalism. University of Illinois Press.

Freud S. (2011). O inquietante. In: Freud - Obras Completas [1917-1920]. São Paulo: Cia. das Letras.

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Kertész I. Un relato policíaco. Barcelona: Acantilado, 2007.

____. (2010). Yo, otro: crónica del cambio. Barcelona: Acantilado.

Kristeva J. (1994). Estrangeiros para no?s mesmos. Rio de Janeiro: Rocco.

Loffredo A.M. (2002). Sobre a escrita dos relatos clínicos freudianos. Jornal da Psicanálise, v.39, n.70, p.175-189.

Matias E.F.P. (2005). A humanidade e suas fronteiras. Do Estado soberano à sociedade global. Sa?o Paulo: Paz e Terra.

Portela P.H.G. (2011). Direito Internacional Público e Privado. Salvador: JUSPODIVM.

Rella F. (2010). Desde el exilio: la creación artística como testimonio. Buenos Aires: La Cebra.





Abstract
This paper will formulate hypotheses about the metapsychological processes and effects of the experience of otherness from the literary works of Imre Kertész and Roberto Bolaño, contemporary self-exiled writers. For this purpose, we will avail ourselves of the important notion of Freudian Unheimliche, as far as it approaches concepts of narcissism, drive dualism of the second topic and language constitution.


Keywords
exile; Unheimliche (uncanny); Imre Kertész; Roberto Bolaño; Psychoanalysis; metapsychology.

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 TEXTO

Inquietante atopia: hipóteses metapsicológicas a partir das narrativas do exílio

Disquieting atopy: metapsychological hypotheses from the narratives of exile
Tiago Novaes Lima Lima

O viajante se converte em exilado

Situação criadora de incertezas, projeção de imagens vagas de liberdade, metáfora da vida, da morte, do desejo, emblema da fugacidade e da beleza; e ao mesmo tempo do terror, do desenraizamento e do desamparo, a viagem acompanhou a imaginação humana e sua expansão civilizatória, impregnando suas narrativas e fundando a subjetividade ocidental. Há uma tradição literária que se inicia no mito, como a expulsão edênica na religião cristã, na epopeia, como a de Ulisses em Odisseia, atravessa o umbral de Cervantes em Don Quixote, Dante Alighieri em Divina Comédia, e culmina no ocaso das peripécias e das narrativas de descobrimento e aventura, o momento em que o marinheiro Shackleton atraca na Antártica durante a primeira década do século XX, anunciando a extinção dos territórios desconhecidos pelo homem civilizado no planeta. A viagem de peripécias e aventuras se converte então em experiência do exílio, condição do artista moderno por excelência. Dos seus arautos, Baudelaire assevera a atopia do homem novo e denuncia a necessidade de uma nova linguagem. Desdobrando o exílio em relação a si próprio com o aforismo Je est un autre, Rimbaud interrompe precocemente sua escrita quando começa a viajar. E assim, a viagem constitui nos modernos uma poética da indivisibilidade entre vida e obra, e a busca pelo avesso da vida culmina na dissolução da própria escrita. Ao longo do século XX, muitos empreendem este caminho: Kerouac, Conrad, Paul Theroux, Hemingway, Paul Bowles, Malcolm Lowry, Bruce Chatwin. E na aurora do século XXI, Imre Kertész, que sobrevive à adolescência em campos de concentração, irá desnacionalizar-se em sua escrita e em seu vagar. Nesse processo, a subjetividade se esvazia e a ideia de retorno perde qualquer substância. E Roberto Bolaño, com sua infância no Chile, adolescência no México e maturidade literária na Europa, reiterando a temática como um sol onde orbitou grande parte dos maiores escritores do Ocidente, e que em seus romances apresenta a aridez e o desencanto em um mundo embotado e perverso, espantoso em sua pobreza e na opacidade de sua teleologia sepultada.

 

A literatura é fruto de seu tempo, e a natureza de suas viagens corresponderá às condições do viajante, bem como do mundo que este encontra. A questão da alteridade no confronto com o estrangeiro retorna à pauta em tempos de vertiginosa aceleração planetária de fluxos de bens, serviços e capitais[1]. Com a difusão maciça da economia capitalista e um crescente debate acerca da gestão de questões transnacionais e internacionais, a figura daquele que se desloca fisicamente no espaço escandiu-se em muitas classificações para o Direito Internacional. Uma delas descreve o imigrante que, deslocando-se de um país a outro, busca melhores condições de vida e trabalho. Há também os asilados que solicitam individualmente o apoio de outro Estado por motivos de dissidência política, livre manifestação do pensamento ou crimes relacionados com a segurança do Estado e que não configuram delitos no direito penal comum. Ademais, encontra-se o refugiado, integrante de grandes grupos que atravessam fronteiras em razão de perseguições étnicas e culturais. Além destes, ainda, os turistas, os residentes temporários, os estudantes de intercâmbio, o corpo diplomático e consular. Cada um dos grupos integra disposições normativas próprias com base no Direito das Gentes e dos princípios constitucionais de cada Estado[2].

 

O viajante, contudo, não integra essas classificações, não consta nas estatísticas e não cumpre condutas de fácil padronização. Embora haja pontos de contato com as outras classificações, o viajante não deixa a sua terra, sua língua e sua cultura por uma necessidade - de trabalho e dinheiro, no caso do migrante; de sobrevivência, nos casos do refugiado e do asilado; de diversão e catarse, no caso do turista. O que caracteriza o viajante é um desassossego impreciso, e que contém expressões muito variadas na literatura. Tornar-se outro. Tornar-se homem. Tornar-se livre. Tornar a casa. Encontrar-se. Perder-se. Fugir de casa. Abraçar o desconhecido. Emendar as sem-razões do mundo. São justificativas vagas, idealizadas, que encontram no verbete anglo-saxônico wanderlust o seu correspondente poético. Em tradução livre, "avidez pela errância". E um desejo de experimentar a alteridade, muito semelhante ao do psicanalista em sua prática clínica e social.

 

Enfrentando situações de escassez, solidão e desamparo, o viajante obedece a esse impulso incerto de depositar voluntariamente o próprio destino nas mãos do acaso. Pode-se dizer que sacia uma fome psíquica muitas vezes em detrimento das necessidades vitais. Faz dessa fome uma força. Encarnação da máxima dos navegadores antigos, navigare necesse est, vivere non est necesse, move-o o ímpeto fora da norma e demasiado humano, emblema do quixotesco e da loucura nele contida. O viajante endossa, em seu proceder, o desenraizamento social e subjetivo implicado na mudança de paisagem, de cultura e idioma. Afasta-se dos amigos e da família, e abraça a falta e a transitoriedade como estados permanentes.

 

Em contraste com o imigrante, o viajante não busca reconstituir a sua cultura na terra estrangeira. Diferentemente do turista, a estrada não é um hiato transitório ou uma nota de rodapé no dia a dia do viajante, mas o corpo de um cotidiano arrítmico. Se o turista, engolfado em sua bolha familiar de hotéis e city tours, pretende conhecer uma cidade em uma única semana, o viajante, por sua vez, não abdica da vontade de habitar um território desconhecido. Nas palavras do escritor e viajante Paul Bowles:

 

A diferença é em parte uma questão de tempo, explicava. Enquanto o turista geralmente se apressa em retornar a casa ao cabo de algumas semanas ou meses, o viajante, não pertencendo mais a um lugar que ao seguinte, desloca-se com vagar, ao longo dos anos, de uma parte do planeta para outra[3].

 

A experiência do exílio

Esse viajante na literatura toma para si a herança dos que o precederam e a presentifica em um contexto distinto de aceleração de fluxos e controle de fronteiras, em que se observam processos altamente complexos de homogeneização imperialista e integração miscigenante, circunscrevendo distintos modos de encontro entre culturas. Nessa perspectiva de proteção de mercados e difusão de trocas, o aventureiro torna-se exilado. A experiência da alteridade migra da peripécia e do exótico para a radicalidade do ser estrangeiro (e do ser estrangeiro para si mesmo), assim como para a estranheza do encontro urbano entre povos de hábitos distintos. Neste e em outros aspectos, o exílio é um desafio à criatividade. É, a partir de dado momento, um movimento voluntário. Vivemos num mundo de expulsão, onde o exilado se torna o criador desse mundo, e não apenas sua vítima passiva (os judeus não são parte da história nazista, mas os nazistas são parte da história dos judeus)[4].

 

O exilado foi arrancado (ou arrancou-se) de seu ambiente costumeiro. Costume e hábito são um véu sobre a realidade. Em nossa rotina, nos atentamos para as mudanças, mas não para o que permanece fixo, que é redundante. Mas no exílio tudo é incomum. O exílio é um oceano de informação caótica. A ausência de redundância no exílio não permite que as informações sejam absorvidas pelo exilado. Para poder viver, o exilado deve primeiro transformar a tempestade de informações em torno dele em mensagens significativa; ou seja, deve processar dados. Trata-se de uma questão de vida ou morte. Se ele não for capaz de processar dados, será inundado e consumido pelo tufão do exílio. Processar dados é sinônimo de criação. Para não perecer, o exilado deve ser criativo[5].

 

O hábito é um cobertor macio - um anestésico agradável, reconfortante e tranquilo que filtra informações, eliminando ângulos e ruídos. A verdade grega, a-letheia, segundo Flusser, se dá com a retirada do cobertor, e é o momento em que tudo se torna inquietante, monstruoso e incomum. Exilar-se é como ser expulso do próprio corpo, quando até as coisas rotineiras causam estranhamento. Se no hábito apenas as mudanças são percebidas, no exílio tudo parece em constante mudança. Mesmo que sua meta seja apenas sobreviver, o exilado suscita a suspeita dos habitantes locais, porque se torna um revolucionário que irá dessacralizar lugares que o hábito sacralizou, e renovar lugares que o hábito envelheceu. Exilados são desenraizados que buscam desenraizar tudo à sua volta para criar raízes. Sua humanidade reside no desenraizamento, em sua "pessoa aérea" (em alemão, luftmensch). A dimensão criativa do exilado se dá como diálogo entre as informações novas que ele apreende e a síntese dessas informações. É também diálogo entre os seus costumes originais e aqueles que ele não compreende e que inundam seu presente. Como o escritor-viajante Nikolai Leskov por Walter Benjamin, o exilado acaba reunindo pela experiência as duas famílias de narradores - a dos camponeses sedentários e a dos marinheiros mercantes - homens de senso prático, aqueles que se projetam tanto na distância espacial quanto na distância temporal[6]. Ainda que muitas vezes tenha perdido a liberdade de ir e vir, preserva-se a sua liberdade de permanecer estrangeiro, a liberdade de mudar aos outros e a si próprio. Ainda segundo Flusser, ele "é o Outro dos outros. [...] Sua chegada ao exílio permite que os outros descubram que podem criar sua identidade somente em relação a ele. Ocorre uma abertura do ‘eu', e uma abertura à alteridade. Um estar junto". O alhures é continente de silêncio e ambiguidade, de necessária reconstituição subjetiva, estimulada pela ruptura de expectativas e consequente desconstrução do eu. Ruptura por meio de uma língua estranha que se apresenta para o exilado e ecoa sua sonoridade musical, a princípio arbitrária, desconhecida, como diante de um infante que balbucia. Uma língua que vem anular a linguagem do estrangeiro e converge a atenção para o dizer, para a palavra em sua forja.

 

A expatriação e o exílio brotarão como resultado dessa constatação de que o eu não é tão sólido e continente quanto se esperava, cujos limites se tornam vagos na errância temporal e espacial. Eu sou porque estou presente; ademais, sou eu porque costumo estar aqui - nesta casa, nesta cidade - e a materialidade do espaço empresta corpo ao meu corpo. Se me distancio no tempo, as experiências vividas se tornam vagas, e o protagonista de meus atos pretéritos deixa, pouco a pouco, de ser tomado como eu. Desconheço o sujeito que fui, e cujos atos se tornam estranhos a mim. E ainda, quando viajo, a transitoriedade da paisagem, essa consciência de estar de passagem, de observar as coisas de fora, de ser dispensável, a ausência de amigos e familiares, esse estado de solidão radical diluem a integridade subjetiva, tornam-na suscetível, identificam o sujeito com essa ausência, com o remoto de onde provém. De alguma maneira, o viajante é um fantasma: inquietante, inominável, ininteligível.

 

O viajante está desnudo nesse umbral entre dois mundos (entre muitos mundos), e o escritor autoexilado elabora sua criação artística como testemunho de um estado aéreo, inenarrável, de vulnerabilidade. Esse umbral representa um momento de cognoscibilidade, traduzido pela imagem de um despertar, conduzindo o saber a um "giro copernicano", uma interrupção do curso linear do tempo e que é, paradoxalmente, a sensação máxima de estar presente, de ser e estar em um espaço. O véu gris do hábito vislumbrado do avesso. Esse assombro é conhecido como fundador do pensamento, o espanto-centelha da filosofia[7].

 

Tal sentimento inquietante se apresenta na obra dos autores contemporâneos que assumiram a atopia como condição da modernidade, converteram-na em proposta poética e produziram testemunhos ficcionais, em que se pode reconhecer a imanência entre biografia e literatura. Teorizada inicialmente por Baudelaire, em especial entre os anos de 1859 e 1861, essa poética encontrará nítida expressão em seu Salão de 1859 e em O pintor da vida moderna, onde o verdadeiro artista é retratado como um homem do mundo, um viajante que esboça croquis e fragmentos do que vê, e que nunca se entrega à ilusão do absoluto, ao embotamento e ao provincianismo de seus conterrâneos. A nudez para o espanto é por ele traduzida na figura do anonimato. "Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo..."[8] O artista é ninguém. Empreende uma suspensão temporária - súbita ou gradual - das vigas que sustentam a coerência subjetiva. Um antiafeto - a aparente consciência de um vazio, de um princípio abismal da palavra, de mergulho em um continente sem nome, que a ficção confessional de Imre Kertész e Roberto Bolaño, os dois autores da virada do século que iremos analisar mais detidamente, dá testemunho:

 

O vazio infinito quando um sentimento nos abandona. Quando acabamos um volumoso romance em cujo mundo submergimos; quando termina uma relação amorosa; quando nos abandona o incentivo da inspiração... de repente se vê e experimenta o mundo sem objetivo, nem desejo, nem vontade, nem quaisquer manipulações próprias, mas simplesmente tal como é. Você repassa a sua insensibilidade e compreende que este vazio do mundo é, em certa medida, sua obra[9].

 

A partir de um ponto externo, a retomada do momento fundador do encontro. A busca dos meios possíveis de entrada:

 

Quase não tinha amigos e o único que fazia era escrever e dar longos passeios que começavam às sete da tarde, depois de acordar, momento em que meu corpo experimentava algo semelhante ao jet-lag, uma sensação de estar e não estar, de distância a respeito do que me rodeava, de infinita fragilidade[10].

 

Dos campos de saber que mais se debruçaram sobre essa experiência do inquietante, a psicanálise seguramente é a que mais desenvolveu uma exploração rigorosa da subjetividade, e a que mais investigou o processo, por meio da metapsicologia. Segundo Rella, "Este é o lugar do Unheimliche freudiano, que não é ‘perturbador' como já foi traduzido o termo: é o ‘desorientador', ou melhor ainda, a ‘expatriação', a ‘dessituação' das habituais regras de conduta intelectual e cognitiva"[11],[12].

 

O inquietante estrangeiro

É no conceito formalizado no artigo de 1919, Das Unheimliche, que a temática do estrangeiro surge com toda a sua força na obra freudiana, e se coloca como estatuto por excelência do sujeito psicanalítico. A alteridade do Inconsciente reconstrói aí a sua cena.

 

Com a noça?o freudiana de inconsciente, a involuça?o do estranho no psiquismo perde o seu aspecto patolo?gico e integra no seio da unidade presumida dos homens uma alteridade ao mesmo tempo biolo?gica e simbo?lica, que se torna parte integrante do mesmo. A partir de enta?o, o estrangeiro na?o e? nem uma raça nem uma naça?o. [...] Inquietante, o estranho esta? em no?s: somos no?s pro?prios estrangeiros - somos divididos[13].

 

Contemporâneo de Além do princípio do prazer, o artigo nos introduz ao argumento etimológico da ambiguidade da expressão unheimliche, para afirmar que, tal como algumas palavras primitivas, pode-se depreender dois sentidos antitéticos do termo: o estranho e o familiar. Para além dos limites da compreensão e da continência possível pelo psiquismo, o fenômeno alude aos conceitos de pulsão de morte e compulsão à repetição. O estranho é um afeto que indica uma indiferenciação entre o outro e o eu, o mundo exterior e o sujeito, e presentifica o retorno de formas primitivas de pensamento como o animismo e a onipotência, aparecendo vinculado ao horror, ao mistério e à fantasmagoria. Tal forma de pensamento foi inicialmente uma defesa contra a mortalidade, um modo de denegar na doutrina da alma e de entidades divinas o termo inexorável da existência. Esse desdobramento do eu na figura anímica constituiu a base do que em seguida vem a ser a figura paterna, conceitualizada na instância do superego, um "duplo" introjetado que, ao retornar, provoca a angústia que acompanha o primitivo complexo de castração do protagonista da obra de Hoffmann. O pai falecido e a visita do "homem da areia" atestam essa duplicação subjetiva que irá reeditar o corte narcísico primordial. Estrangeira, a aparição fantasmagórica exerceria a função de reeditar a figura paterna que, ao perturbar a fantasia de completude que acompanharia a composição unitária mãe-bebê, incutiria no psiquismo infantil uma ambivalência de afetos como o medo, o amor e o ódio.

 

Atravessando os estudos sobre Rank (1918) acerca do duplo, Freud retoma as ocasiões sinistras que nos acometem em práticas corriqueiras. Desse modo que, em seu relato sobre uma viagem que fez a uma pequena cidade italiana, Freud conta como, ao buscar o caminho de volta a praças e ruas conhecidas, via-se sempre retornando à mesma rua "suspeita", zona de meretrício local. Abre-se então o caminho para o fenômeno da recorrência sinistra, "que confere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco"[14] e que dá sinais de um excesso de sentido relacionado a um impulso repetitivo que denuncia os limites da linguagem e da simbolização. Uma tal "coisificação" de signos, segundo Kristeva[15], sinaliza a fragilidade de nossa repressão e a experiência do unheimliche como indício de nossas psicoses latentes e da inconsistência da linguagem como barreira simbólica e estruturante do material reprimido.

 

No âmbito clínico, segundo Loffredo, a instauração do inquietante é condição de possibilidade da análise[16]. Nessa mesma linha, aproximando as situações do estranho e da transferência na clínica psicanalítica, Fédida argumenta que o lugar do analista na cena psicanalítica é o do sítio do estrangeiro, de ausência e pertencimento, este mesmo que é identificado à função paterna[17]. O risco está em se deixar seduzir por esse lugar que a ele é sugerido pelo paciente, de conceder respostas, de procurar expressar-se por meio da função comunicativa da linguagem, e nomear as coisas independentemente delas mesmas, conduzindo assim a uma "des-instauração" da situação analítica. Como recurso para a permanência nessa posição, deve-se tomar a literatura - em sua potência metafórica e de transmissão - como modo de abdicarmos das intenções conscientes da palavra. A fala deverá conter essa ambiguidade radical, essa polissemia que o amor concede à linguagem, possibilitando que o paciente possa alijar-se de seu discurso direto, automático e pragmático, e abrir-se para o que nele há de estrangeiro. E a partir dessa distância, desse não lugar, apropriar-se do próprio.

 

Com base em tais referências, podemos nos perguntar: como se daria a experiência da alteridade na figura do escritor exilado na virada do século XX para o XXI? Em que medida a viagem opera como processo analítico e formação do escritor, por meio da alteridade constitutiva que lhe permite apropriar-se do próprio? E como as noções de corte instaurado pela figura paterna, do retorno do reprimido ante o inédito inassimilado, da ambiguidade da linguagem e da dissolução da identidade e do juízo de realidade podem dizer deste que, sozinho, vai ao encontro do mundo e o elabora em partes, aos poucos e de súbito, assumindo que a experiência excede os limites de simbolização de nosso aparato anímico, provocando isso que nos surge como inquietante, espantoso e sedutor?

 

Nas palavras de dois escritores autoexilados podemos encontrar alguns sinais.

 

Roberto Bolaño

Bolaño atirou-se ao mundo, segundo ele, porque não acreditava em exílio ou em fronteiras, ou acreditava que o exílio era uma opção literária (uma opção como a literária)[18]. Escrevia como que para seguir lendo e resgatando autores mais ou menos esquecidos, mais ou menos injustiçados, e ler seus comentários de leitura é deixar-se projetar sobre um país desértico com muitas estradas sob a intempérie[19]. A figura triste dos poetas de classe média que aspiravam a uma "respeitabilidade", instituição muito conhecida na América Latina, essa "mistura de pântano e Las Vegas". Chileno, passou a juventude no México. Com vinte anos retorna ao Chile "para fazer a Revolução", onde é encarcerado por alguns dias pelo regime ditatorial instaurado em 1973, e libertado apenas porque um dos soldados que o apreenderam havia sido seu amigo na escola. Em alguns relatos fala do episódio com terror; em outros, com fascínio. Parte do Chile, e é quando se inicia o seu exílio voluntário. De lá, volta ao México, e segue para a Espanha, onde consegue seu sustento em diversos trabalhos pequenos. Só retornará à terra natal, e por poucos dias, com o sucesso de Detetives selvagens, em 1998.

 

Bolaño considera mentirosa a canção do sofrimento dos exilados. Não crê possível a nostalgia da pobreza, da intolerância dos países de origem, e preserva uma imagem bastante amarga do Chile e de outros países latino-americanos. Para o autor, sua pátria é sua biblioteca perdida e refeita, e o exílio é uma forma de ser. A condição estrangeira se traduz na experiência de afirmarem que, por seu modo de falar, ele parece provir sempre de outro lugar. Os chilenos afirmam que ele fala como um espanhol; os mexicanos, como um chileno; os espanhóis, como um argentino. Um sotaque expatriado, que não o insere a nenhum grupo ou identidade nacional, que não condiz com uma terra, mas que é signo de sua errância.

 

O exílio é qualquer coisa que projete o autor para fora de uma posição de conforto identitário. Um exílio pode ser o abandono da infância, ou da casa parental, ou o mudar-se de uma cidade pequena para uma cidade grande. E toda literatura a carrega:

 

Literatura e exílio são, creio, as duas faces da mesma moeda, nosso destino colocado nas mãos do acaso. "Sem sair de casa conheço o mundo", diz Tao Te King, e até mesmo assim, sem que se saia da própria casa, o exílio e o desterro se fazem presentes desde o primeiro momento[20].

 

Em Literatura e exílio, Bolaño acrescenta matizes mais sombrios ao narrar o exílio e a morte trágica de seu maior amigo, o escritor Mario Santiago. À luz da errância de Santiago, afirma que o escritor caminha por uma tierra de nadie ("terra de ninguém"), "terra erma, terra morta, terra onde não há nada". Se o poeta é cidadão deste continente desértico, desta terra de ninguém, considera justo que nenhuma nação reivindique sua pertença. Questionando as fronteiras e o caráter nefasto de nacionalismos, cita um poema de Nicanor Parra, quando este diz que os dois maiores poetas chilenos não eram chilenos, mas viajantes - Alonso de Ercilla e Rubén Darío - que passaram pelo Chile sem intenção de permanecer.

 

Ao contrário do político, ou do médico, para os quais no exílio permanecem, ao menos por um tempo, como peixes fora d'água, o escritor como que ganha asas fora de sua terra natal. No cárcere ou no hospital, o escritor é o único artista que pode seguir trabalhando: "Exilar-se não é desaparecer, mas apequenar-se, ir diminuindo lentamente ou de maneira vertiginosa até alcançar a altura verdadeira, a altura real do ser"[21].

 

As designações seguem como aforismos que não se fixam. O exílio é experiência multiforme e produto da vontade. Projeta o autor em um mundo sem fronteiras, desolado, onde este conquista uma emancipação de identidades ou nacionalismos, "ganha asas" para o trabalho em condições as mais ignotas.

 

Imre Kertész

Com exceção de seu Detektívtörténet ("Um relato policial"), realizado para satisfazer uma exigência editorial, Kertész jamais escreveu um romance que não brotasse de uma necessidade existencial imediata e angustiante[22]. A experiência dos anos de adolescência nos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald lhe infundiram a marca do exílio que atravessaria toda a sua obra, sendo objeto direto de sua narrativa ficcional em Eu, um outro, A língua exilada e Sem destino. A circularidade de Auschwitz, essa fuga-perseguição vital e criativa, e a ditadura socialista que se instaurou na Hungria e impôs uma existência cerceada e autovigilante se inscreveram como estilo e incisão traumática de esvaziamento subjetivo. Kertész, como relatam muitos autores que inicialmente exilados assumiram a anti-identidade circunscrita pelo apátrida, faz orbitarem suas reflexões a partir dessa exterioridade do corte histórico e pessoal ("Sou filho incorrigível da ditadura, minha particularidade é o fato de estar marcado. Esta é minha experiência mais inexplicável, e ao mesmo tempo, a mais real que tive na terra, entre os homens")[23]. O trauma histórico faz deslocar o sujeito em relação ao eu. O eu enquanto entidade identitária, culturalmente erigida, psiquicamente necessária, torna-se um problema, um continente ignoto e inconciso. O problema que Rimbaud apresenta, Eu é um outro, é epígrafe da crônica da mudança pessoal que se superpõe às viagens profissionais pela Europa após a abertura da Europa Oriental. Quem é esse eu com o qual não me identifico?

 

Vale a pena visitar os cenários onde se produziram os acontecimentos decisivos de nossas vidas, porque assim tomamos consciência de que não temos nada a ver com nós mesmos. É uma descoberta grave, que tentamos encobrir mediante as diversas formas e sublimações da fidelidade, pois senão a instabilidade de nossa pessoa deixaria entrever a loucura em sua nudez[24].

 

O eu não pode ser simplesmente abandonado, portanto, uma vez que se constitui como ponto de referência sem o qual restará apenas o abismo, o "nada subjetivo" ("Quando deixo o envoltório, desaparece também o conteúdo; tudo acaba")[25]. A apatria torna-se a única pátria a explorar. É a desolação inevitável, o esvaziamento de sentidos e ao mesmo tempo a tonalidade melancólica que recai sobre presente e memória. O que liga o viajante? Decerto que não a identidade húngara. Às vezes a língua (a que lhe permite entender os seus assassinos), às vezes o ato da escrita, de fazer-se na escrita. Às vezes a companheira e esposa, cuja morte abrupta por câncer é vivenciada como mais uma morte pessoal ("Minha história consiste em minhas mortes; se eu quisesse contar a minha história, deveria contar as minhas mortes")[26]. Persiste o imperativo vago de um renascimento, de uma transformação. "Mas em quem?"[27]

 

Esse renascimento será feito, quem sabe, pela apropriação do sofrimento, pela tomada ativa daquilo que lhe foi inoculado inicialmente pelos algozes. A vontade assassina dos outros converte-se em pulsão criativa. Essa compulsão raivosa se transfunde em sublimação crítica, e em algo que se apresenta vagamente como um desejo.

 

Creio que sempre quis viver assim: em um agradável piso alugado (que não seja meu), entre móveis acolhedores (que não sejam meus), sem um lar, com independência, fazendo o que me toca (neste momento, traduzir Wittgenstein), sem preocupações substanciais de tipo econômico, no estrangeiro, em um lugar onde me acompanham recordações de fatos que imagino, mas que talvez nunca existiram...[28]

 

Algumas hipóteses metapsicológicas

Ao questionar as situações comuns que suscitam em nós o Unheimliche, e o que elas podem nos dizer acerca de nosso aparelho psíquico, Freud procurará demonstrar que tais fenômenos são reedições de uma modalidade inconsciente de pensamento, uma regressão ao infantil, suscitados pelo estímulo atual que dá forças aos impulsos recalcados pela instância mediadora, o eu, cuja função é também a de preservar uma suposta coesão identitária. Constituído no contato com o mundo externo por desdobramento das superfícies sensoriais, o eu opera por meio de uma lógica de não contradição, de fronteiras entre o inclusivo e o exclusivo, e de escansão espaçotemporal. O afeto consciente do inquietante é suscitado por duas situações de caráter econômico: um abrandamento da contenção egoica, como ocorre durante o sono, ou o fortalecimento do material reprimido por algo que suscite a recordação.

 

Aventamos aqui a hipótese de que o fascínio e o assombro suscitados pela viagem, assim como a busca do exílio pelo artista decorrem do fato de que a situação que ela engendra realiza este duplo movimento, de distensão do eu e de fortalecimento da dimensão estrangeira em si, suscitando uma reconfiguração da coesão do eu, esgarçando temporariamente suas fronteiras. Tal fenômeno - angustiante, abismal - poderia encontrar analogia na situação analítica e fornecer subsídios para o ato criativo do artista, justamente por propiciar:

 

  a. uma reestruturação da instância mediadora, suscitada pela relativização identitária na imersão em novos hábitos, suspendendo o eu de um espaço-tempo que o ancora e o configura, reconciliando-o com um familiar recalcado, inadmissível à coesão do eu pregresso;

  b. a remissão do sujeito, no confronto com um idioma incógnito, ao momento de aprendizado da língua materna que o transporta ao balbuciar fundante dos sentidos;

  c. uma nova perspectiva de finitude nesse movimento erótico de habitar a atopia, e uma postura ativa em relação à falta constitutiva instaurada pela função paterna, resultando em reconfiguração narcísica.

 

Podemos reconhecer dos comentários de Flusser a dinâmica da barreira de proteção contra estímulos descrita em "Além do princípio do prazer". Se o exilado está diante de um afluente incontrolável de estímulos na experiência da viagem, afluente análogo à formação traumática, a experiência demandará um contrainvestimento equivalente que procura ligar a energia livre, o que pode justificar a disposição aérea (luftmensch) do exilado. Esse esforço de ligação diante do "tufão do exílio" mina as energias do viajante, e o torna parcialmente disfuncional. Algumas das funções do eu ficam debilitadas, como o juízo de realidade e o recalque. Ele poderá parecer introspectivo, por uma demanda interna de ligação. Disperso, o viajante está ocupado. Atravessada pelo transbordamento simbólico, a viagem poderia provocar uma mobilização equivalente a um trauma (e pode ser, justamente, vivida como tal). A distinção entre as duas situações - o trauma e a viagem - residiria no fato de que a barreira de proteção a estímulos não é necessariamente rompida no caso da viagem, ainda que o afluxo excessivo de estímulos se assemelhe ao do fenômeno traumático. Tal afluxo poderá deslocar a energia anteriormente mobilizada de compulsões ordinárias. O sujeito é outro porque o presente o brinda com outras "feridas". A viagem pode, nesse sentido, exercer com o tempo a mesma função do choque físico nas neuroses traumáticas atenuadas, na medida em que contribui para uma redistribuição da libido.

 

Ligada à perda do objeto de amor primordial, por sua vez, e alheia ao princípio de estabilidade homeostática, a viagem pode brotar do impulso conjugado de recriar o estado originário de descoberta e ignorância que o hábito adormeceu. É a repetição da vivência de um desarvoramento, de um abandono, para que esta seja porventura ligada a representações mais aceitáveis e válidas, como a liberdade e a autonomia. Como no fort-da, descrito por Freud, a viagem se apresentará como uma possibilidade de apropriação, uma oportunidade criada voluntariamente ao fazer-se desaparecer, apropriação do próprio, continuação do processo sempre inconcluso de ruptura narcísica e projeção do impulso destrutivo ao lar originário, tanto daquele que o exilado deixa em sua terra quanto aquela porção introjetada da própria cultura que, identificada como repulsiva, é constitutiva e não pode ser extirpada.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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