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Resumo
Tornou-se lugar comum apontar as mudanças em todos os setores da cultura na contemporaneidade, o que nos levar a pensar que o espetáculo da vida humana, assim como seus dramas, não para nem se cristaliza em falas e cenografias imutáveis. Cada época histórica apresenta uma forma singular de os indivíduos pensarem, agirem e interpretarem o mundo. Também há um consenso acerca do caráter revolucionário do pensamento freudiano, que provocou um rombo na lógica linear da concepção dualista e determinista do conhecimento científico moderno ao inaugurar um novo modo de cada indivíduo em particular interpretar e enunciar a sua experiência da vida cotidiana...


Autor(es)
Cláudio Laks Eizirik
é psicanalista, professor associado do Departamento de Psiquiatria da ufrgs, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e ex-presidente da IPA.

Maria Laurinda Ribeiro de Souza
é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise desse Departamento. Publicou Violência (Casa do Psicólogo), Vertentes da psicanálise (Pearson), Mais além do sonhar (livro de crônicas), Quem é você? (livro de contos infantis).


Marcelo Vinãr Munichor
é médico, psicanalista, membro efetivo, didata e ex-presidente da Sociedade Psicanalítica do Uruguai, presidente da Fepal e representante da Junta Diretiva da ipa. É autor de vários livros, entre eles Psicoanalizar hoy – Problemas de articulación teórico clínica (Montevideo, Trilce, 2002).


Notas

1 W. Baranger; M. Baranger, “La situación analítica como campo dinâmico”, in: Problemas del campo psicoanalítico. Buenos Aires: Kargieman, 1969.

2 J. Derrida, Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003, p. 54.


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 DEBATE

Psicanálise: entre o mal-estar e o bem-estar

Psychoanalisys: between uneasiness and well-being
Cláudio Laks Eizirik
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
Marcelo Vinãr Munichor

Realização: Gisela Haddad e Vera Zimmermann

Tornou-se lugar comum apontar as mudanças em todos os setores da cultura na contemporaneidade, o que nos levar a pensar que o espetáculo da vida humana, assim como seus dramas, não para nem se cristaliza em falas e cenografias imutáveis. Cada época histórica apresenta uma forma singular de os indivíduos pensarem, agirem e interpretarem o mundo. Também há um consenso acerca do caráter revolucionário do pensamento freudiano, que provocou um rombo na lógica linear da concepção dualista e determinista do conhecimento científico moderno ao inaugurar um novo modo de cada indivíduo em particular interpretar e enunciar a sua experiência da vida cotidiana. Em cem anos, a psicanálise constituiuse como um saber a ser explorado e compreendido sob diferentes ângulos por vários setores da cultura, e é possível que seu vigor se mantenha graças a sua descoberta principal, verdadeiro paradoxo da existência humana: a ideia de que o que falamos, fazemos ou lembramos pode ter significados ocultos que fogem à esfera da razão, ou seja, de que em grande parte somos governados por impulsos e inibições cuja força e sentido ultrapassam em muito nossa consciência. Nascida em uma época caracterizada por uma relação verticalizada, sustentada pela hierarquia e obediência, o recalque, o interdito e a lei seriam as condições privilegiadas da constituição do psiquismo e da cultura, e o binômio autoridade/repressão impregnava a subjetividade, funcionando como fonte das principais formas de estruturação e defesas do psíquico. Ao longo deste último século, ao ser questionada, a repressão deixou de ser exigida como disciplina moral e social dos sujeitos, fazendo com que a cultura adquirisse tons mais permissivos. Radicalizou-se a aposta na capacidade de cada indivíduo em construir soluções e sentidos próprios para a sua existência na expectativa de constituição de um alargamento das experiências humanas, o que acentuou seu desamparo e sua impotência. De uma compreensão do funcionamento psíquico e seus percalços que privilegiava a reconciliação entre o ser e o dever ser passou-se a incluir a criação de algo entre o ser e o poder ser. Mergulhados em um conjunto nem sempre coeso de teorias e práticas clínicas, os psicanalistas vindos de diferentes escolas veem-se convidados a pensar sobre seu lugar na era atual, uma tarefa que pode tomar proporções imensas ao requerer, para além do atendimento clínico aos seus pacientes, reflexões sobre ele, leituras assíduas e atualizadas sobre as produções teóricas da área, análise pessoal sempre renovável, participação em eventos que possam confrontar suas ideias com a de seus pares e principalmente um tempo em que seja possível processar este arsenal, gerando novas perspectivas do pensar e fazer psicanalítico. Ainda que o contato privilegiado – via inconsciente – que cada psicanalista pode obter de sua experiência tanto com as singularidades dos sujeitos quanto com sua inserção na cultura possa ajudá-lo, o exercício desta leitura diferenciada das práticas, discursos, ideologias, sexualidade, ideais, desejos e proibições exige um confronto com suas crenças teóricas e sua percepção de verdade e sentido sobre suas escolhas. Sair da zona desse conforto é passar a habitar um território antes não habitado, ou enfrentar continuamente a inquietação e o estranhamento do novo.

A sessão Debate da Revista Percurso reservou um espaço para que alguns colegas pudessem escrever livremente sobre o tema.

CLÁUDIO LAKS EIZIRIK O texto que coloca a psicanálise entre o bem-estar e mal-estar capta uma dicotomia ou conflito dialético entre duas posições, que marca a psicanálise desde sua criação: entre a pretensão freudiana de que se tornasse uma ciência “séria”, aceitável pela comunidade científica, e sua irrecusável vocação subversiva, entre uma posição relativamente bem-comportada e uma inevitável tendência a proclamar que o rei está nu. Com a introdução de uma nova lógica, que subverte a conhecida, a psicanálise coloca a presença do inconsciente em todas as manifestações humanas, mas o texto também destaca a necessidade de os conceitos e compreensões do mundo evoluírem, e enfatiza que os insights freudianos tiveram de ser progressivamente revisados, em princípio pelo próprio criador e, a seguir, até os dias de hoje, pelos sucessivos pensadores psicanalíticos que continuam fazendo dessa disciplina uma obra em construção. Parece muito bem colocada a dicotomia entre o ser e dever ser, e o ser e poder ser. Ao longo das décadas do século passado e na primeira deste século, a cultura contemporânea deslocou-se para diversas formas de expressão em que se destacam as imagens, a falta de limites, uma certa liberação desenfreada da sexualidade, a velocidade e a globalização e rapidez nas comunicações. A repressão não dá mais conta para entender esses novos cenários, e surgem a ênfase na desmentida, e nas diversas expressões pulsionais em que o narcisismo, a perversão e as condições psicossomáticas tomam posição relevante, bem como uma certa sensação de vazio que domina muitas mentes dos novos pacientes que procuram análise em nossos dias. Na medida em que a cultura se transforma, também a psicanálise acompanha esses novos desdobramentos, e a clínica de hoje exige do analista uma postura mais aberta, receptiva, não preconceituosa, que lhe permita, em cada campo analítico – como bem o definiu o casal Baranger [1]–criar com seus pacientes formas renovadas de escuta, entendimento e diálogo específico. Dessa forma, a cultura contemporânea coloca em cena novos desafios, tanto na clínica, como na teoria, como ainda na forma de procurar entendê-la. O malestar na cultura, portanto, hoje é outro, e nosso desafio diário é ter uma escuta analítica que receba essas novas expressões com um ouvido atento, que permita ao analista não repetir fórmulas, mas se munir da atitude drummondiana : “Oh, vida futura, nós te criaremos”.

MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA O texto proposto suscitou-me, de imediato, duas cenas. Uma em que poderíamos imaginar o mundo contemporâneo como uma grande loja de brinquedos cheia de crianças. Excesso de ofertas, ânsia de apropriação do máximo de objetos possíveis, ilusão de que isso seria viável, desejo de eliminar os que concorressem à mesma posse, perder-se num corre-corre ininterrupto, já que o tempo de permanência é limitado. Ao final, insatisfação, cansaço e um olhar nostálgico para o que não pode ser usufruído.

Muitas das queixas persistentes no cotidiano de nosso trabalho clínico (depressões, fadigas, desânimos, impotências, apatias, compulsões) presentificam a intensidade do trabalho psíquico necessário para se fazer frente à luta incessante entre a convocação narcísica da onipotência, do pensamento mágico, das promessas de invencibilidade, e a limitação e o corte infligido pelas figurações da castração e pelo temor da solidão.

A segunda cena surgiu quase como uma oposição a esse mundo frenético. Trata-se da lembrança de um encontro recente com um homem de meia idade, artista extremamente criativo que no decorrer da vida criou um mundo a que poucos têm acesso permitido. Ele cria objetos a partir de materiais de sucata, mas não os comercializa, não os expõe; são seu refúgio secreto, fazem parte de seu corpo. Ele também compõe; é um músico sensível e tem um parceiro a quem admira e, então, em sua companhia, faz algumas aparições públicas. Não fosse pela abertura, convocada por essa parceria, pouco se saberia a seu respeito.

Sua fonte criativa – objetos construídos a partir de materiais descartáveis – introduz uma positividade no efeito nefasto da compulsão canibalista da primeira cena. Seu ocultamento pode ser pensado como uma resistência a ser consumido, a ser transformado em apenas mais um produto. Permanece na contramão da consigna que garante a existência do sujeito contemporâneo: dar-se a ver, aparecer. É por essa recusa a fazer parte dessa mesmidade que ele se reconhece como sujeito. Mas, se tal recolhimento se organizou, para ele, como uma forma protetora de sobrevivência, não o deixou imune ao surgimento da angústia e do fantasma do desamparo.

Essas duas cenas revelam também a multiplicidade de questões escamoteadas no diagnóstico tão ligeiro e tão banalizado dos ditos transtornos bipolares: em nosso tempo ou se está em mania – inserido no registro onde tudo é possível, ou se está em depressão – afastado do mundo, ensimesmado. Nada que uma boa medicação não possa resolver.

Ora, os lugares subjetivos não são dicotômicos; são múltiplos, singulares, têm uma historicidade. Não há espaços permanentes de conforto. O grande desafio é poder constituir-se como um ser de passagem, manter sua moradia aberta à hospitalidade de quem chega e habitar diferentes lugares com disponibilidade para apreender novas maneiras de ser. Mais do que ficar é poder ir e vir, mostrar-se e recolher-se e, se possível, fazer boas parcerias – como a descrita na segunda cena – que possibilitem a saída dos momentos de fechamento narcísico e convoquem para os encontros criativos; para a amizade.

É por essa abertura à hospitalidade sem convite, àquela que Derrida nomeia de hospitalidade pura ou de visita, radicalmente utópica, que o espaço analítico ainda se constitui como um espaço possível para esses encontros. Paradoxalmente, ele nos diz: “Talvez apenas aquele que suporta a experiência da privação da casa possa oferecer hospitalidade” [2]. As instituições de formação deveriam constituir-se como lugares de passagem, lugares de ir e vir, de experiências de liberdade (mesmo que sempre relativa) e não como lugares soberanos de um saber constituído, demandantes da servidão dessubjetivante (sempre à espreita). Essa é uma tarefa interminável, própria para um ofício dito impossível.

MARCELO VIÑAR MUNICHORComo nos muda um mundo que muda?
Que efeitos têm as mudanças da cultura nas sensibilidades e a erupção de novos dispositivos tecnológicos na organização de nossa mente e no laço social contemporâneo?

De forma resumida assinalaremos alguns fatos que nos parecem relevantes dos tempos em que vivemos, com mudanças a um ritmo vertiginoso e jamais visto na história humana. A velocidade exponencial das mudanças ao longo do século xx tem como efeito o que cremos apreender no momento presente, mas a lógica e os desafios da realidade são outros. Minha impressão é que às vezes caminhamos aturdidos em uma direção desconhecida, em um mundo consumista devorador dos recursos do planeta que não são, como se acreditou, inesgotáveis. Tudo isso sob a guarita de um eufemismo: a economia sustentável, que tenta aplacar as necessidades e as luxúrias de uma demografia incontrolável.

Qual o efeito e as consequências do que anuncia o texto precedente para a prática e a reflexão psicanalítica?

Concordo com a afirmação de muitos pensadores contemporâneos para os quais – ao menos no Ocidente – a emancipação da mulher é a mudança mais relevante do século xx, rompendo milênios de tradição. E quando um dos pilares de uma estrutura é modificado, todo o sistema precisa ser reformulado. Fala-se muito sobre a queda da autoridade patriarcal, sobre as alterações das normas e funções familiares e suas consequências nas filiações e seus destinos. De um sujeito assujeitado à ordem da tradição, às referências religiosas e ao Estado, resta “uma construção identitária”, supostamente autoengendrada e autárquica, em que cada um pode se propor a “ser o que queira”, como disse José Pedro Barrán.

Como ocorre sempre nos processos históricos (de origem humana), brotam junto as flores, as ervas daninhas e as urtigas, ou seja, no interior deste ímpeto emancipatório e de progresso, produzem- se identidades vicariantes, que, em nome de modernismos vanguardistas, formam particularismos identitários intolerantes à diversidade. As tribos, as religiões sincréticas são efeitos laterais da queda dos grandes relatos que cumpriam a função do Outro das referências, aqueles que, mediante a coerção religiosa e do Estado, legislavam sobre a ordem e a transgressão, sobre a moral permitida e o imoral castigável. Esta ordem da modernidade está em decadência e o Outro do código, outrora poderoso, está hoje fragmentado e vacilante, assim como as leis locais das tribos se erguem contra qualquer ordem instituída.

Nada contra os movimentos de vanguarda e de emancipação, desde que assumam seu desafio de criatividade inovadora em vez de usarem sua novidade como fetiche para ocultar seu desassossego identitário (Derrida), próprio da condição humana, na tentativa de uma completude inalcançável como máscara arrogante a ocultar sua fragilidade. A autolegitimação de uma identidade exaltada e o pertencimento mais ou menos intolerante “dos que não sejam como ele” são características por excelência das tribos, que, em sua pretensão vanguardista, caem na lógica dos fundamentalistas mais atávicos, intolerantes com o diferente, subvertendo o traço mais humano do humano, seu pluralismo e diversidade.

Por que a história deixa de ser narrada em sua forma verbal para ser desenhada ou escrita nas peles pelas tatuagens e piercings ou pela simbiose com a máquina (os Otakus do Japão, viciados em computador), que por meio da comunicação permanente parece tentar abolir as distâncias de tempo e espaço ou suprimir as alternâncias entre ausências e presenças, tão necessárias para a produção de vida intelectual e erótica?

As grandes cidades, a velocidade dos transportes, a instantaneidade da informação, a descoberta da informática e suas máquinas emblemáticas (computador, televisão e telefone celular) mudam nosso cotidiano e os ritmos de nosso tempo existencial . Os encontros são mais numerosos, mas mais efêmeros. Progresso ou retrocesso na cultura?

A influência do tecnológico na vida moderna assume uma hierarquia e uma relevância jamais vista. Mas, antes de celebrar ou condenar, avaliar como um progresso ou um desastre, importa não se comportar como a avestruz, e sim tratar de pensar o inédito aí implicado, ao investigar os bem-estares e os mal-estares que necessariamente serão produzidos. A aceleração do tempo social induz a interiorização de um tempo existencial também acelerado. Tempo social e temporalidade interna se articulam e devem produzir efeitos diversos e intensos na configuração das subjetividades atuais (Norah nos fala de um presente “superexcitado” e M. Castells de um timeless time). Seguir a rapidez de tantas mudanças é trabalhoso, motivo pelo qual preferimos celebrá- las ou condená-las antes de compreendê-las. Uma tarefa para um etnólogo ou um semiólogo para esclarecer os códigos e as chaves do conhecimento psicanalítico. Não para utilizar a descoberta freudiana como escora ou porto seguro, mas para identificar-se com o espírito explorador e estilista de seu fundador que não se furtou em se aproximar de terras incógnitas; não somente dessa organização misteriosa que chamamos inconsciente, mas de desafios antes impensáveis que nos lançam nesses novos tempos.

A condição de seres pensantes em transformações civilizatórias está longe de abarcar toda a humanidade. Muito próximos de nós estão os párias e excluídos do sistema que sobrevivem ao presente com o desafio diário e permanente de buscar o que comer, o que fazer, como habitar um tempo vazio, deserto e sem vínculos. Os modos contemporâneos de produção material e produção simbólica (vide Vidas Desperdiçadas, de Zygmunt Bauman) fazem com que aumente de forma excessiva o número de seres sem destino, e o desenlace desta progressão será violento. Ou já é, se tomarmos a complexidade e a precariedade das favelas. No século xix, os pobres e excedentes europeus povoaram esta terra americana que hoje chamamos de nossa. Não há mais continentes a povoar e a demografia em expansão ameaça as reservas planetárias de produtos essenciais. As guerras do terceiro milênio serão por água e petróleo, diz o Pentágono. No “impensável” da velocidade consumista, vejo o mal-estar da civilização do século xxi na vertigem de um fazer sem um descanso reflexivo, na saturação de um acontecer superabundante, que expulsa do psíquico o conflito, a angústia e o sintoma, e coloca no corpo ou na atuação auto ou heterodestrutiva.

Ser freudiano hoje, como sempre é restituir o sintoma ao espaço da palavra e devolver sua espessura ao foro interior do psiquismo, que se esvazia em nossa vida acelerada.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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