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Resumo
Parto da hipótese que a ausência de obra, conceito usado para situar o lugar destinado à loucura após ter sido transformada em doença mental, expandiu-se para todos os campos da existência na contemporaneidade, movimento análogo ao que ocorre no campo das artes visuais ao longo desse mesmo período em que uma obra de arte pode ser excluída para o campo da não arte, para me perguntar sobre a obra – e, por consequência, a subjetividade – possível em tempos de sua ausência. Apresento, então, em dois artigos subsequentes, e a partir das indicações oferecidas pelos trabalhos das artistas Nazareth Pacheco, Cindy Sherman e Marina Abramovic, o corpo e o feminino como alguns desses lugares de borda nos quais ainda podemos encontrar uma possibilidade de fazer obra, ou seja, de subjetivação.


Palavras-chave
processos de subjetivação; corpo; feminino; arte e psicanálise; perversão; sublimação


Autor(es)
Alessandra Monachesi Ribeiro
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.


Notas

1.     Artigo baseado em tese de doutorado em teoria psicanalítica pela ufrj, para a qual a autora contou com uma bolsa da capes. A primeira parte dete artigo foi publicada na revista Percurso 47, com o mesmo titulo.

2.     A.M. Ribeiro, "Os artistas, os lugares e as obras possíveis, ou onde a subjetividade ainda encontra lugar de existir". 

3.     A reflexão acerca do trabalho da artista Marina Abramovic se apoia, essencialmente, em tese de doutorado já mencionada (A.M. Ribeiro, Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino), da qual alguns excertos foram apresentados, ainda que não com a presente formulação, no II Colóquio Internacional: Práticas e Usos do Corpo na Modernidade, organizado pela Faculdade de Psicologia da usp, sob o título "O corpo e o feminino na arte contemporânea", no ano de 2010.

4.     M. Abramovic, Marina Abramovic - Performing Body, p. 18.

5.     S. Freud, "Os instintos e suas vicissitudes".

6.     S. Freud, "Além do princípio de prazer".

7.     J. Lacan, O seminário, livro 20 - Mais, ainda.

8.     M. Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões.

9.     S. Freud, "Fetichismo".

10.   P.-L. Assoun, Freud et la femme; idem, Masculin et fémnin.

11.   S. Mijolla-Mellor, La cruauté au féminin; idem, La sublimation; idem, Le choix de la sublimation.

12.   S. Freud, "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos"; idem, "A sexualidade feminina"; idem, "Novas conferências introdutórias à psicanálise - Conferência xxxiii: Feminilidade".

13.   M. Abramovic e G. Celant, Public body - installations and objects. 1965-2001.

14.   S. Mijolla-Mellor, La sublimation.

15.   S. Mijolla-Mellor, La sublimation.

16.   A.M. Ribeiro, "Os artistas, os lugares...".

17.   S. Mijolla-Mellor, La sublimation; idem, Le choix de la sublimation.

18.   G. Agamben, Profanações.

19.   G. Agamben, op. cit.

20.   G. Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.

 



Referências bibliográficas

Abramovic M. (1998). Marina Abramovic - Performing Body. Milão: Charta.

____ ; Celant G. (2001). Public body - installations and objects. 1965-2001. Milão: Charta.

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____. (2007 [2005]). Profanações. São Paulo: Boitempo.

Assoun P.-L. (2003 [1983]). Freud et la femme. Paris: Payot.

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Foucault M. (1987 [1975]). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes.

Freud S. (1996 [1915]). Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, p. 117-146.

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____. (1996 [1925]). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p. 273-288.

____. (1996 [1927]). Fetichismo. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 151-162.

____. (1996 [1931]). A sexualidade feminina. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 231-254.

____. (1996 [1933]). Novas conferências introdutórias à psicanálise - Conferência XXXIII: Feminilidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXII, p. 113-134.

Lacan J. (1985 [1972-1973]). O seminário, livro 20 - Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Mijolla-Mellor S. (2004). La cruauté au féminin. Paris: PUF.

____. (2005). La sublimation. Paris: PUF.

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Ribeiro A.M. (2011). Os artistas, os lugares e as obras possíveis, ou onde a subjetividade ainda encontra lugar de existir. Percurso, n. 47, São Paulo.

____. (2010). Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, IP. Rio de Janeiro: UFRJ.





Abstract
Starting from the idea that the absence of work, a concept used to place madness after it’s been understood as mental illness, has expanded itself through all paths of existence in contemporary times, in a movement similar to what happens within the art field during the same time, where an artwork can be excluded to the field of non art, I ask myself about the works – and, consequently, subjectivity – that are possible in times of their absence. Therefore, I present, within two subsequent articles, from the indications of the artists Nazareth Pacheco, Cindy Sherman and Marina Abramovic, the body and the feminine as some of these frontier places where we can still find a way to make work, hence, subjectivity.


Keywords
subjectivity’s processes; body; feminine; art and psychoanalysis; perversion; sublimation

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 TEXTO

Os artistas, os lugares e as obras possíveis

ou onde a subjetividade ainda encontra lugar de existir: ainda algumas considerações


Artists, places and the possible artworks
or where subjectivity still finds place to exist: some considerations
Alessandra Monachesi Ribeiro

O corpo e o feminino são dois temas de borda para a psicanálise, duas tentativas de abordá-la tanto quanto de dar voz a essa borda de onde o sujeito nasce. Ao percorrer esses dois conceitos, a psicanálise me pareceu tentar aproximar-se daquilo que sempre e desde Freud nos escapa, o que está fora do campo da linguagem, fora da representação, esse pedaço do real que desafiou Freud como pulsão vinda do corpo e como mistério do desejo feminino, ambos levando-o ao mesmo lugar, quer o chamemos de gozo feminino, real ou pulsão de morte.

 

A esses lugares de borda cheguei após ir buscar as possibilidades para a subjetivação no campo das artes, das artes contemporâneas e daquilo que alguns artistas nos informam acerca das condições de subjetivação em nossa época. Ou seja, os lugares de borda não consistiram nos pontos de partida de minha pesquisa, mas sim nos pontos de chegada aos quais fui conduzida pelo estudo aprofundado dos percursos artísticos de algumas artistas contemporâneas vivas e em atividade. Ou seja, ao partir da hipótese da ausência de obra e ao buscar os lugares em que ela ainda é possível em um campo quase clichê como o da arte contemporânea, chego aos lugares onde tais obras discutem o corpo e o feminino, o que me permitiu colocá-las em relação com o corpo e o feminino tais quais apresentados pela psicanálise como lugares de subjetivação.

 

Em artigo anterior[1] busquei apresentar, a partir do trabalho de duas outras artistas contemporâneas, o que poderia ser considerado como uma indicação dos lugares possíveis para a subjetivação em nossos tempos, ou seja, o corpo e o feminino. Apresentei o corpo feminino como tendo sido tomado e representado na arte sempre como corpo asséptico, em ligação estrita com a economia do olhar que, a fim de contemplá-lo, fez e quis ali ver outra coisa que não a constatação da castração e da falta. O corpo asséptico da mulher sendo, assim, a negação dessa falta e do feminino propriamente dito, um corpo subtraído de toda sua materialidade como corpo. O que propunha a artista Nazareth Pacheco, uma das artistas mencionada em artigo precedente, era uma reintrodução do corpo carnal na obra para fazer frente a esse corpo asséptico da mulher apresentado pela arte, por meio da captura e do aprisionamento que ela faz do olhar entre os brilhos e cortes de seus objetos, alusões a um corpo despedaçado, sangrando e que, mesmo em ausência, se presentifica através dos materiais ou de seu sangue propriamente dito.

 

Apresentei, ainda, o corpo feminino, sempre ligado a essa economia do olhar, enquanto corpo/desvelamento, o feminino guardando a verdade última da castração em seu próprio desnudamento. O que propunha Cindy Sherman, a outra artista acerca da qual desenvolvi uma reflexão em artigo anterior, era colocar em questão a lógica fálica de uma verdade última proposta na assunção da mulher como desvelamento, através do apagamento do sujeito em suas obras, o trajeto em direção ao vazio e à ausência de figura humana tanto quanto à ausência de origem apresentada em suas obras de máscaras, manequins ou cópias de pinturas pertencentes à história da arte mas às quais, entretanto, faltam os originais.

 

Cada uma à sua maneira, as artistas reenviavam o olhar na direção do espectador, voyeurismo deste que, nesse momento, era olhado ao olhar. Fim do conforto e da proteção de sua posição. As obras o olham. Fim, também, da passividade do feminino que se dá ao olhar do outro.

 

Cheguei a levantar, a título de hipótese, que os trabalhos dessas artistas que nos levam às bordas do feminino e do corpo como lugares possíveis para a subjetivação o fazem a partir do objeto-fetiche que, posto em movimento pelas estratégias presentes em suas obras, coloca em questão o feminino e o corpo como lugares possíveis para que haja um movimento. A possibilidade subjetiva residiria, com isso, nos lugares de borda, próxima da localização fetichista que transita pelas fronteiras visando à ultrapassagem de um limite.

 

O fetichismo suprime os sinais da castração tanto quanto a arte e o olhar suprimem os sinais da materialidade do corpo e do corpo feminino. Quando não há essa confrontação com o lugar fetichista a partir dele mesmo, como o fazem as duas artistas a fim de colocá-lo em movimento e em questão, ou quando tal confrontação atinge o limite do traumático - como veremos na obra de Marina Abramovic -, o que pode ocorrer é um recuo a uma dimensão imaginária que distancia as bordas do corpo e do feminino, suprimindo sua materialidade e negando sua ligação. É a essa terceira possibilidade que gostaria de fazer referência neste texto.

 

O corpo como feminino:
Marina Abramovic[2]

Marina Abramovic trabalha para desconstruir o vínculo entre corpo e feminino. Ela descobre a performance através do som, com sua instalação Airport em 1972. Mesmo sendo considerada uma das pioneiras, não se trata, segundo diz, e no que diz respeito a seu trabalho, de uma discussão sobre o corpo feminino, mas do corpo como meio de experimentar um limite e ultrapassá-lo, o corpo desligado de sua equivalência ao feminino e à mulher - presente frequentemente na obra de muitos artistas - apresentado como corpo nu, para o qual a sexuação não faz qualquer diferença no sentido de estabelecer aquilo que a artista vai colocar como limite. Ou seja, o limite trazido pela desconstrução do próprio corpo, por sua morte ou por sua imobilização em um quadro puramente imaginário.

 

Isso quer dizer que, ao contrário de suas contemporâneas, Marina não se interessa pela performance como meio privilegiado de pôr em questão a mulher, o feminino e os lugares sociais a elas atribuídos durante séculos. O feminino não é questão e a artista toma seu corpo como sujeito e objeto de uma outra que, mesmo sendo próxima, não é totalmente assimilável às questões que ligam corpo e feminino colocadas pelas outras artistas, que quiseram pôr em causa o papel das mulheres em sua época. Será graças a essa não vinculação que a artista chegará ao limite do corpo em toda sua radicalidade, pois, uma vez distanciado de seu aspecto sexuado, não restará nada além de uma pura materialidade próxima de uma mortalidade desse corpo real sobre as quais ele poderá nos informar.

 

É por causa dessa diferença que seu trabalho me interessa, pois ele propõe uma terceira via através da qual posso me aproximar dos lugares possíveis para a subjetivação em nossos tempos ou, talvez, dos lugares em que essa possibilidade subjetiva encontra seu limite e deve recuar. Lá onde Nazareth Pacheco sugeria recolocar o corpo carnal a fim de fazer face ao corpo asséptico sem corporeidade propriamente dita como um caminho possível, e onde Cindy Sherman sugeria o esvaziamento da verdade e da origem para fazer face ao feminino como desvelamento e confirmação dessa lógica fálica como um segundo caminho, penso que Marina Abramovic teria sugerido como terceiro caminho o desligamento entre corpo e feminino levando quer ao limite desse corpo mortal, quer à sua ultrapassagem pelo recurso a um deslocamento imaginário.

 

Em 1974, com Rhythm 5, no qual ela queima uma estrela comunista ficando deitada em seu interior até perder a consciência e ser salva pelo público, Marina Abramovic se deu conta de que seu trabalho explorava os limites do corpo, seu uso da performance testava limites físicos e psíquicos.

 

Ora, o corpo do artista, em que a falta está sempre presente e estabelecida na cultura ocidental, torna-se o lugar em que se vai jogar a possibilidade de existência de uma obra, inclusive a do artista como seu produtor. Lugar de falta torna-se lugar de existência. Além do mais, no corpo, a partir desse momento, joga-se a disputa entre os mecanismos de poder e as técnicas de resistência.

 

Na obra de Marina Abramovic, o flerte com o limite começa com o limite do corpo diante da dor e da morte e se desloca ao limite contornado pela semelhança entre suas performances e os ritos primitivos. Isso quer dizer que não se trata de uma mudança de tema em seu trabalho, mas de uma mudança de enquadre, como se a artista buscasse uma maneira menos perigosa, na medida em que inscrita nos padrões culturais, em vez das experiências solitárias do começo de sua carreira. A artista afirma seu objetivo de "[...] levar o corpo a um estado borderline que nos permitisse realizar um salto mental a fim de entrar nas dimensões diferentes da existência e de eliminar o medo da dor, da morte ou dos limites do corpo"[3].

 

A ultrapassagem do limite pelo recurso a um deslocamento imaginário é um retorno à posição perversa, aí incluída sua imobilização, a respeito da qual me deterei a seguir. Não por acaso muitas das obras de Marina Abramovic em que ela convida o espectador a fazer parte demandam uma imobilização do corpo e uma ultrapassagem imaginária dessa imobilidade, que ela liga a uma possibilidade de transcendência. Então a transcendência, se seguirmos as indicações dadas pelo percurso e pela obra da artista, tem algo a ver com um desvio do corpo à imaginação naquilo que diz respeito à possibilidade de movimento do sujeito, quer dizer, à possibilidade sublimatória. Mas retornemos ao percurso da artista para pensarmos melhor sobre esse tema.

 

Seu processo de produção de obra começa com os perigos das primeiras performances em que ela está só, como as que já mencionei, assim como aquelas feitas com Ulay, em que a confrontação com a dor e a extenuação da força física são importantes na medida em que elas lhe dão a experiência da "presença total de seu próprio corpo".

 

Rhythm 10 de 1973 - em que a artista brinca com uma faca entre seus dedos e, a cada vez que se corta, muda de faca, gravando o som de seu jogo até que termine de utilizar 20 facas e que deva, então, escutar a gravação e tentar fazer o jogo como na primeira vez, com os mesmos cortes, pausas e ritmos... Thomas Lips de 1975 - na qual ela come um quilo de mel, bebe um litro de vinho, quebra a taça com a qual bebeu o vinho, corta uma estrela de 5 pontas em sua barriga com uma lâmina de barbear, se chicoteia até que não sinta mais dor, deita-se sobre uma cruz feita de blocos de gelo e coloca sobre seu ventre um aquecedor, de modo que a estrela sangre enquanto todo o seu corpo congela... Rest energy de 1980 - na qual ela e Ulay seguram um arco e uma flecha apontados para seu coração, o peso dos dois corpos em equilíbrio precário mantendo a tensão do arco e os batimentos dos corações sendo registrados... Imponderabilia de 1977 - na qual estão os dois nus na entrada da galeria, deixando aos visitantes a tarefa de escolher de frente para quem eles entrarão... Cleaning the mirror I de 1997 - na qual ela limpa um esqueleto humano... Balkan Baroque de 1997 - uma instalação apresentada na Bienal de Veneza em que ela mostra vídeos de seus pais, um vídeo em que ela canta músicas de sua infância enquanto faz uma performance na qual ela limpa uma pilha de ossos de vaca... Todas essas obras são apenas um extrato de seu percurso em que ela nos confronta de maneira radical com o limite do corpo até o limite último da morte. A intensidade, a atmosfera densa e perturbadora nos oferecem uma indicação de tal limite, da consistência dele. De que se trata, então?

 

A pulsão como intensidade vinda do corpo e demandando trabalho ao psiquismo[4], a pulsão de morte como única pulsão que fica fora da possibilidade de ser absorvida por esse psiquismo, transformada em desejo e, consequentemente, representada[5], o inominável, o fora da linguagem ou, se levarmos em conta o vínculo entre corpo e feminino desfeito pela artista, o gozo e o gozo feminino como suplementar e fora do campo simbólico[6].

 

O desligamento do corpo de seu feminino, será que isso nos mostra onde o feminino e o gozo outro se distanciam da diferenciação, da existência de um corpo feminino à existência de um corpo em que o feminino não joga nenhum papel? Se a diferença sobre a qual o feminino define pode ser ignorada em relação ao corpo na obra de Marina Abramovic, será que podemos conceber que ela põe em jogo um corpo sem feminino, sem diferença, um corpo pura materialidade? Será que isso nos informa dessa outra possibilidade do feminino, disso que está fora da diferença e para o qual ela não tem nenhuma importância? O gozo outro, dito suplementar, terá ele alguma relação com esse corpo real do qual a artista nos traz notícias?

 

Ainda em 1974, com Rhythm 0, na qual ela deixa vários objetos à disposição das pessoas, liberadas para utilizá-los sobre seu corpo - desde um chicote até um revólver carregado, passando por maquiagens, uma pluma, uma rosa e assim por diante -, trata-se do momento a partir do qual ela nunca mais deixará tanto controle nas mãos de seu público. E, a meu ver, tratar-se-á em seus trabalhos, cada vez mais, de tentar tomar o controle sobre as experiências do espectador, propondo a ele interagir e experimentar suas obras. Uma busca de transcendência, certamente, uma busca de viver e fazer viver experiências verdadeiras, é inegável. Mas, também, uma busca de controle sobre o corpo e sobre as experiências dos outros, por meio da imobilização do corpo e da pressão para que o outro experimente o que quer que seja, o que nos leva novamente ao campo da perversão, da maneira que eu o havia descrito antes em relação às obras de Nazareth Pacheco e de Cindy Sherman.

 

O controle dos corpos - do seu e dos de seus espectadores - remete à ideia do poder disciplinar que incide sobre os corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis, tal qual Foucault[7] nos apresenta. Pode-se depreender daí o campo sobre o qual a artista parece buscar incidir: trata-se de jogar com esse controle e com essa submissão dos corpos. O que está posto como estratégia de poder e saber sobre os corpos é o lugar de onde ela parte - ou no qual ela aprisiona seu público -, a partir do qual tentará criar uma possibilidade de movimentação.

 

No caso de Marina Abramovic, esse enclausuramento do corpo domesticado em suas estratégias de controle, por meio das propostas da performance, será aliado à sua proposição de que o movimento possível se dê pelas vias da fantasia e da imaginação, ao contrário do que fazem Nazareth Pacheco e Cindy Sherman, para as quais esse aprisionamento nos lugares cristalizados do objeto-fetiche - quer seja o corpo ou o feminino - serve apenas como ponto de partida para uma possibilidade de movimentação que não retorna ao lugar do fetiche, mas se lança a um outro. As duas parecem sustentar a convulsão no âmbito do corpo em sua materialidade mais estrita, a fim de incitá-lo a uma resistência, tema ao qual retornarei posteriormente ao pensar suas estratégias como um movimento de uma fixidez perversa a uma condição de fluidez sublimatória, movimento esse que também Abramovic inicia em toda sua radicalidade para, posteriormente, fazer retornar ao lugar fixo, salvo pelo imaginário.

 

De todo modo, as três artistas partem do campo do aprisionamento no olhar, no lugar de objeto-fetiche, no clichê do feminino, na assepsia do corpo tomado pelo campo da arte ou, em outras palavras, do campo da perversão. E é por meio dele que constituirão suas produções artísticas como projetos de desconstrução.

 

A perversão - como fetichismo - é um deslocamento e uma fixação do olhar que evita todo o deslocamento ulterior e, assim, a percepção da castração da mãe, objeto último que faz agir a castração como um limite para o sujeito. Freud[8] coloca em relevo no seu texto: tão fundamental quanto a ameaça de castração que sofre a criança para que ela possa renunciar a seus objetos primários de amor e se investir noutro lugar é sua constatação da castração da mãe, para que ela possa não ser deixada em uma posição histérica na qual sua falta poderia ser compensada pela não falta do outro que, assim, a ajudaria a ultrapassar a sua. Eis a perversão ligada à falta e às manobras feitas pelo sujeito a fim de evitá-la e, ainda mais, por meio das estratégias que dizem respeito ao olhar.

 

Deslocamento e fixação, como eu havia dito acerca do olhar depositado sobre a mulher, ou seja, o olhar durante boa parte da história da arte, do qual Nazareth Pacheco nos informava por meio de suas obras, que o deslocavam e o aprisionavam através do mesmo movimento utilizado para deslocar e aprisionar a mulher num lugar de mulher vista passivamente como corpo asséptico de suas materialidades capazes de distingui-lo, ou até do olhar do saber psicanalítico que desloca e aprisiona também facilmente a mulher no lugar do desconhecido. A mulher e a feminilidade têm relação com a perversão na medida em que sua referência nos leva sempre a um lugar fora da linguagem e fora do simbólico, fixando-a aí. O que pode ser visto, mas não tocado, a perversão e o sagrado terão algum tipo de ligação íntima?

 

Não vou me aproximar do sagrado senão a partir do conceito de sublimação, tendo em conta que o que pode fazer o sagrado tem algo a ver com a renúncia a uma satisfação pulsional direta. Ao mesmo tempo, levo em consideração que certos psicanalistas contemporâneos aproximarão o feminino e a sublimação da perversão, especialmente Assoun[9] e Mijolla-Mellor[10], o que coloca diretamente em relação vários aspectos daquilo acerca do que escrevo neste momento: o feminino levando à perversão e ao sagrado e esses enviando à sublimação e à obra de arte, o que retorna à perversão e às questões do deslocamento do investimento libidinal.

 

O feminino aproxima-se da perversão naquilo que diz respeito ao interdito e ao Outro. A mulher, ao ter que construir-se em relação ao sexo que é apenas um, a partir do qual a criança se define segundo tê-lo ou não tê-lo, o que fará com que Freud[11] assinale que ser mulher é sobretudo uma construção à qual é necessário dedicar-se por meio do deslocamento de uma escolha de objeto da mãe ao pai, assim como de uma experiência de satisfação ativa, fálica e clitoriana em direção a outra especificamente feminina, passiva e vaginal. Nesse movimento, se há qualquer coisa que se atinge em relação à castração e à referência fálica ao lado da qual a mulher advém, na medida em que substitui seu desejo da mãe por um desejo do pai e, em seguida, por um desejo de um filho, resta também algo de não atingido.

 

Quando Marina Abramovic volta sua atenção ao público e à maneira pela qual ele reage e vive o contato com sua obra, tenta ter mais controle sobre eles criando performances em que deverão participar, de maneira frequentemente bastante calculada. Ao mesmo tempo, trata-se também de apostar que o público não deve ser passivo diante da obra de arte, mas tomar parte. Ela afirma a importância da experiência como o único meio de mudança, dizendo que uma pessoa não pode viver através das experiências de uma outra[12]. Busca de transcendência e de controle, talvez a obra de arte como sublimação nos leve à perversão tanto quanto aos domínios do sagrado.

 

Em relação aos seus Transitory objects (1989), por exemplo, a artista nos informa que seu objetivo era deslocar a atenção do olhar em direção ao ser ligado ao objeto. Então, um objeto que depende do público para existir e o espectador a quem é solicitado substituir sua posição confortável de voyeur por aquela mais difícil de ser aquele que vive a experiência. Não se trata de objetos simbólicos, mas de objetos que guardam sua função de esvaziar, preencher ou criar uma mudança mental no público, daí sua utilização de pedras brutas, de cristais, aos quais a artista atribui o poder de movimentar a energia dos seres humanos. Um recurso à idéia de energia, assim como uma referência quase religiosa a uma transcendência possível por meio das experiências corporais. Um deslocamento do corpo na direção de sua sublimação em energia, transcendência, iluminação? Uma nova negação do corpo a partir dele mesmo?

 

No que diz respeito à sublimação, não vou me aprofundar agora, visto que se trata de uma vasta discussão. Em todo caso, tomando a obra de arte como um de seus produtos, o que me parece interessante é que novamente a questão do deslocamento é o que está sendo posto em causa. Deslocamento da obra de arte, deslocamento que a sublimação propõe à pulsão em direção a um outro alvo e um outro objeto por meio de uma modificação da pulsão propriamente dita, bem diferente dos mecanismos de defesa.

 

A sublimação tem em conta o interdito e o ultrapassa[13] e é graças a isso que podemos aproximá-la da perversão, na medida em que se trata, nas duas, de tentar contornar tal interdito.

 

Assim, temos a sublimação (que implica a obra de arte) tanto quanto o feminino (assunto de certas obras) ligados à perversão, seja como processo através do qual a arte toma forma (sublimação), seja como assunto mesmo de tal obra (a discussão sobre o feminino), seja ainda como relação entre a obra, o sujeito e o espectador (o olhar do público e a busca do controle pela artista).

 

O olhar retorna igualmente como ponto de vinculação entre o feminino, a perversão e a sublimação e, se eu já havia apresentado a economia do olhar em relação ao feminino e à perversão, faz-se necessário adicionar que ele implica também a sublimação em seu jogo.

 

As pulsões particularmente envolvidas pelo processo sublimatório são as pulsões parciais independentes das zonas erógenas, tais como a pulsão de ver, nos lembra Mijolla-Mellor[14]. Ela é analisada por Freud como alvo preliminar do ato sexual, fixação perversa e derivação sublimada na contemplação artística e na pulsão de saber, fixação e derivação reencontrando-se novamente.

 

A negação do corpo pelo próprio corpo aparece nas obras mais recentes de Marina Abramovic, nas quais o público é convidado a fazer parte do trabalho, porém sem poder realmente participar por causa da impossibilidade que a artista constrói, aprisionando o corpo e solicitando um deslocamento apenas mental, ou imaginário, como podemos constatar em Double edge (1995), em que quatro escadas são oferecidas ao público para que ele as utilize, contudo a primeira é feita de madeira muito fina, a segunda é feita com facas, a terceira é de ferro quente e a quarta é de gelo, o que impossibilita os movimentos de serem realizados; ou em Escape (1998), em que ela aprisiona o público em uma sala de uma antiga prisão em Melbourne, amarrando-os e cobrindo suas orelhas, obrigando-os a fugirem... apenas por sua imaginação!

 

Ainda mais recentemente, em retrospectiva realizada no MoMA em Nova York, a artista apresenta uma performance intitulada The artist is present (2010), na qual passou três meses sentada em uma cadeira, durante os horários de abertura do museu, no átrio deste, completamente imóvel e em silêncio, tendo à sua frente uma cadeira onde qualquer espectador poderia sentar-se. Quando isso ocorria, a pessoa e ela se olhavam durante um período até que o indivíduo se retirasse e desse lugar ao seguinte, com quem a situação se repetia. O olhar da artista oco, vazio, inexpressivo não possibilitava um encontro, nem uma descoberta do outro, mas uma ausência. A artista não estava presente, e convidava seu interlocutor a também retirar-se. Ao público sobrava a possibilidade de participar de seu modo calculado de um simulacro de encontro com uma presença que não estava lá, a não ser talvez no campo da fantasia e da imaginação de cada um acerca daquilo que encontrou em seu olhar morto.

 

São exemplos que retornam a obra de Marina Abramovic para o corpo, para seu limite e, além do mais, para a perversão do desejo de controle sobre esse corpo, seu limite e o recurso à imaginação a fim de substituir o que o corpo não pode fazer. Frente ao limite do corpo, a artista escolhe um deslocamento imaginário que supõe ignorá-lo, sua obra levando esse fora na direção de alguns lugares distanciados de sua busca de carnalidade inicial. O desligamento provocado pela artista entre o feminino e o corpo é o que a faz chegar a essa solução imaginária?

 

O desligamento entre o corpo e a referência à sexuação através do feminino que o inclui e exclui simultaneamente deixa lugar, contraditoriamente, a um corpo menos real e mais imaginário. O corpo asséptico no qual Nazareth Pacheco recoloca, em suas obras, todos os aspectos mais carnais que haviam sido suprimidos a fim de que se tornasse objeto de arte e do olhar parece ser o mesmo corpo que Marina Abramovic põe em jogo através de sua materialidade nua[15]. Mas contrariamente a Pacheco que o faz por meio de sua ausência e através da alusão às suas dores, Abramovic o faz por uma presença extrema, radical, invasiva de todas as fronteiras precedentes anteriormente estabelecidas entre o público e a obra e, ainda mais, entre o artista e sua obra, no sentido de que o corpo do artista nunca esteve tão presente nas suas obras do que quando ele foi diretamente implicado pelas performances. Um excesso de presença da artista, uma saturação de materialidade por meio de seu corpo que se torna obra. Desse modo, Abramovic começa por recolocar o corpo e sua materialidade carnal e sanguínea como contraponto do corpo asséptico distanciado de si mesmo da produção artística anterior. É sua crítica a essa arte e à maneira como o corpo e o feminino ali estão postos.

 

E, no entanto, contrariamente a Nazareth Pacheco, que sustenta sua posição de recolocar o corpo em suas produções artísticas, o que parece fazer Marina Abramovic é se distanciar progressivamente, começando pela negação da ligação entre o corpo e o corpo feminino, na medida em que afirma não colocá-lo em questão - seu corpo como corpo feminino - em suas obras. O corpo tão radicalmente posto em jogo está fora da referência à sexuação e à diferença e se torna, mais e mais, um corpo imaginário que se desloca na medida em que o corpo material fica imobilizado pelas propostas feitas por seus trabalhos. Como uma crítica a uma assepsia do corpo no domínio artístico pode levar novamente a sua negação através de sua imobilização? Negar o corpo para não negar o deslocamento diante de seu limite é o percurso que a artista parece sugerir. Retorno ao lugar do objeto-fetiche. A origem é o corpo (Nazareth Pacheco); a origem não há (Cindy Sherman); o corpo não há (Marina Abramovic).

 

As estratégias de borda:
da perversão à sublimação...

Seria possível a obra de arte ser um objeto que apele a uma posição fetichista do espectador? E, em caso afirmativo, não seria ela uma maneira de colocar essa posição em movimento por meio de si mesma, perturbando o olhar mediante o convite a um apaziguamento que não se alcança nunca? A obra de arte teria essa função de colocar em movimento, que faz a diferença entre a perversão e a sublimação tão próximas naquilo que diz respeito à ultrapassagem dos limites? Não seria ela o registro propriamente dito do caminho que leva de uma à outra?

 

Através da leitura que Mijolla-Mellor[16] faz da sublimação próxima à perversão como ultrapassagem e deslocamento, depreendi minha leitura da estratégia que as artistas efetuam para recolocar algo no campo das artes visuais, de um lugar cristalizado a uma possibilidade de movimentação. Parece-me que as possibilidades de subjetivação que se dão nos lugares de borda - trazidos aqui pelo corpo e pelo feminino - podem existir como tais na medida em que se constituam nessa busca de recolocar em movimento algo que ficou cristalizado. A subjetivação seria, assim, esse movimento que o percurso dessas artistas vêm nos indicar como a ultrapassagem e o contorno de um limite, do campo de um enclausuramento perverso em direção a uma mobilidade sublimatória e que se faz no campo das bordas. Faz-se necessário, neste ponto, finalmente deter-me um pouco mais sobre o conceito de sublimação, a fim de explicitar sua possibilidade de movimento e de ultrapassagem que traz para a subjetividade contemporânea uma brecha por onde acontecer.

 

Sublimar pode ser entendido, então, como uma recolocação em movimento. Ela é tão pautada pelo prazer que proporciona quanto pelas satisfações diretas ou perversas. Não se trata de uma possibilidade etérea e abstrata, distante do campo pulsional, mas, sim, de uma estratégia de deslocamento e ultrapassagem que busca igualmente a satisfação.

 

As fixações da libido são, então, entraves a esse movimento, quer sejam da ordem das inibições, dos sintomas ou da fixação perversa, o que quer dizer que a sublimação não é jamais um dado estabelecido de uma vez por todas, ponto em que ela se diferencia da perversão que, nesse sentido, e por sua característica de fixidez, aproxima-se mais do campo da idealização ao qual o processo sublimatório se opõe, como veremos adiante.

 

Na sublimação, o ideal não está projetado sobre um objeto externo, como ocorre com a idealização (perversa, talvez?). Por outro lado, tanto a perversão quanto a sublimação operam um movimento de contorno do interdito e conseguem, de algum modo, não apenas manter o escoamento do fluxo libidinal como reforçá-lo desde que lhe haja um obstáculo. Mas isso a que se contorna, no caso da perversão, é por ela recusado, enquanto, para a sublimação, é deslocado, como objeto e alvo, para um outro lugar. E onde Mijolla-Mellor vê ambos os processos aprisionados em uma fixidez de seus objetos e alvos, penso que se marca uma diferença entre o movimento que a perversão faz de ultrapassar e refixar-se noutro ponto, já que tem que evitar a castração, e o movimento estabelecido pela sublimação, que pode deslizar indefinidamente.

 

A sublimação cria novos objetos para a pulsão, inscrevendo-a na experiência da cultura. E ela traz, como possibilidade interessante, justamente a ultrapassagem e o deslocamento, na busca da criação de um movimento que não se restrinja a uma fixidez imposta pela organização psíquica, o que faz com que sua mobilidade sirva como condição de criação de campos para que a subjetivação tenha lugar.

 

Assim, quando chegamos ao que discutem as artistas que escolhi para me ajudarem a buscar o lugar para a subjetividade em nossos tempos, é ao tema das bordas que chegamos. A subjetividade não tem lugar além das bordas de si mesma, ou seja, no corpo e no feminino como duas das possibilidades dessa borda em que o psiquismo se constrói.

 

As bordas são espaços de fronteira, sem que esse último termo caracterize o encontro de dois espaços fixos ou, para dizer de outro modo, as bordas são fronteiras retiradas de sua fixação como limites inultrapassáveis entre dois espaços, dois sujeitos, o sujeito e o mundo. E o que pode transformar uma fronteira em borda passível de movimento e de criação subjetiva? Trata-se, na minha opinião, da transgressão trazida por certas condições dessa subjetividade propriamente dita: sua origem pulsional, seu vínculo com o corpo, sua experiência do feminino. São condições transgressivas que dão lugar a uma subjetividade possível. Ora, a subjetivação tem algo a ver com a transgressão.

 

A ideia de transgressão está associada à perversão no discurso psicanalítico, sobretudo por conta da ultrapassagem das normas aí incluída. Mas se nos recordamos da aproximação entre perversão e sublimação acerca da qual escrevi anteriormente, é possível aproximar os dois conceitos da transgressão, buscando suas diferenças e as implicações de suas aproximações e diferenciações para nossa discussão sobre a subjetividade possível nos lugares de borda.

 

Mesmo se pudermos considerar a perversão e a sublimação próximas como movimentos transgressivos, a diferença entre os dois nos auxilia a compreender as diferentes maneiras como a transgressão pode ter lugar. Em suma, a meu ver, a diferença entre perversão e sublimação reside na manutenção ou na recusa do movimento, uma vez atingida a ultrapassagem do limite, não nessa ultrapassagem propriamente dita. Poderíamos, então, supor que a transgressão tem mais a ver com a sublimação do que com a perversão em virtude de seu aspecto de manutenção de um movimento, de criação de novas formas, de deslocamento diante do limite?

 

Agamben[17] nos permite essa aproximação, na medida em que estabelece uma diferença entre profanar e consagrar. Consagrar é retirar as coisas da esfera do direito humano, enquanto profanar significa restituí-las ao livre uso dos homens. Profanar é uma forma de resistir à vida nua. É tocar o sagrado para liberá-lo e para liberar-se dele. O sagrado é aquilo que subtrai as coisas e os seres do uso comum e os transfere a uma esfera separada.

 

No campo psicanalítico, parece-me que os movimentos estabelecidos pela perversão e pela sublimação, esses movimentos transgressivos, aproximam-se também da ideia de profanação apresentada por Agamben, cada um à sua maneira, seja a perversão através da sacralização da coisa e da cessação do movimento, seja a sublimação através da tentativa de recolocá-lo em jogo. Nesse sentido, profanar estaria próximo do que busca o movimento sublimatório, contra uma fixidez/sacralização estabelecidas pela perversão, bem como por outras cristalizações do psiquismo.

 

Agamben[18] nos auxilia, também, a distinguir perversão e sublimação no que tange à relação ao sagrado, na medida em que ele difere profanação de secularização, dizendo que a segunda é uma espécie de remoção que mantém as forças intactas, deslocando-as de um lugar a outro - o que podemos encontrar na perversão como tentativa de profanar que, entretanto, reenvia a um tipo de imobilização ulterior, a um deslocamento que não cessa de aprisionar o outro em uma posição fixa como objeto - enquanto a profanação neutraliza o que ela profana, desativa os dispositivos de poder ali colocados e o retorna ao uso comum - o que podemos supor na sublimação, que não aprisiona o sujeito em um lugar fixo, com um objeto também fixo, mas tenta manter uma fluidez do investimento.

 

Retornando nossa atenção ao campo das artes, podemos pensar que a obra de arte que profana para restituir está implicada política e eticamente, na medida em que restituir não é fazer pertencer a quem quer que seja, mas uma outra coisa. A restituição que uma obra de arte pode fazer é uma profanação, um toque que desencanta, ao invés de tornar algo sagrado, separado, petrificado. Ou seja, uma obra de arte não é um objeto sagrado, mas ao contrário, a profanação dessa esfera do sagrado e a colocação em movimento desses objetos, sua liberação à circulação que os outros possam fazer com eles. É certo que muitas obras de arte servem mais à sacralização ou à secularização do que a liberar o objeto. As obras de certos artistas separam e impedem o uso, mas é certo, também, que há outros artistas que se ocupam mais de fazer um trabalho em que o objetivo é profanar e restituir, por vezes tomando os lugares e as estratégias de separação e colocando-os em tensão até que explodam. Recolocar em movimento.

 

A arte contemporânea e algumas de suas artistas, das quais tratei nesse artigo e no precedente, mostram-nos que os lugares de exceção de subjetividade, os lugares de ausência de obra podem ser utilizados como estratégia de sua recolocação em jogo, de sua recolocação em movimento. É como pensar em recolocar o homo sacer[19] em jogo, em circulação, dessacralizando-o. Recolocar o corpo e o feminino em jogo é dessacralizá-los, retirá-los do lugar de exceção ou, ainda mais, tomá-los em seu habitat de exceção a fim de recolocar esse lugar em questão, a fim de fazê-lo circular, de convertê-lo de fronteira em borda, de profaná-lo. Profanação obtida através de seus próprios instrumentos, dos instrumentos do sagrado, ou seja, do corpo e do feminino



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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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