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TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
53
O Estranho em nós: clínica, sociedade, cultura
ano XXVII - Dezembro de 2014
203 páginas
capa: Nayra C. P. Ganhito
  
 

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Resumo
A interpretação de um sonho angustiante abre caminho para que uma paciente compreenda o sentido de uma imagem-chave na sua análise, e, a partir daí, encontre palavras para falar (sua) feminilidade e da relação sexual.


Palavras-chave
angústia; feminilidade; interpretação; sonho.


Autor(es)
Pierre Fédida
(1934-2002), foi psicanalista, fundador do Laboratório de Psicopatologia da Universidade de Paris VII, membro da Association Psychanalytique de France (APF).


Abstract
The interpretation of a nightmare opens for a woman the way to understand the sense of a key image in her analysis. From this point on, she can find words to speak of (her) feminity and of the sexual relation.


Keywords
anguish; feminity; interpretation; dream.

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 TEXTO

A Trança

The Braid
Pierre Fédida

Foi uma imagem de trança que se impôs a esta jovem mulher - Francine - numa sessão de análise. Esta sessão propiciava uma espécie de trégua, quase de tranquilidade, em meio a um longo período extremamente atormentado, durante o qual a angústia não cedia. A análise, iniciada há cinco anos, durante muito tempo tinha deixado em segundo plano a evocação da mãe - como se, de fato, qualquer representação de cenas passadas nas quais devesse figurar uma presença materna - fosse mantida afastada. Nas fotos de infância que ela gostava de olhar, podia se ver e se descrever carregada pelo pai, enquanto a mãe estava isolada, e por assim dizer ausente do quadro. E as poucas intervenções que eu tinha feito me confirmavam, a cada vez, que ela não podia falar sobre o tema.

 

A sessão na qual apareceu a imagem da trança tem a particularidade de ser uma sessão muito silenciosa, na qual Francine se diz aliviada por conseguir acabar com o "emaranhado" inextricável da sua relação com um homem casado. Ao longo dos meses anteriores, ela se esgotava por não poder nem prosseguir nem romper, não conseguindo mais saber do que se tratava nesta relação. Se a palavra não conseguia decidir nada, o sexual tinha perdido toda a magia e abandonava os corpos como se fossem destroços. O homem "desfeito" pela violência das crises que se manifestavam nela ao menor detalhe revelador da "covardia" - era assim que ela designava o vínculo do homem com sua mãe - "uma covardia da alma e do corpo" - que tomava, na maior parte das vezes, a via das garantias e das promessas. Mas seria tão simples trançar!

 

Pois a imagem da trança - por assim dizer formada a partir do e pelo silêncio - parecia resultar de livres associações acerca do trabalho da análise, e da percepção interna que os pensamentos comportam na transferência dos movimentos que se trocam e se respondem. Assim a angústia depressiva tinha cedido.

 

Quando Francine diz simplesmente que se sente interpelada por um quadro que não identifica, que deve ter visto em algum lugar, mas do qual não se lembra, ela só pode expressar o seguinte: uma menina de doze anos está em pé, na frente de um espelho; sua mãe, atrás dela, a penteia, e lhe faz uma trança. É fato que a criança usava com frequência o cabelo trançado. Ela se lembra perfeitamente deste momento em que a mãe a penteava. Pode até sentir a sensação das mãos dela nos seus cabelos: é uma sensação muito erótica. Mas por que, na análise, ela precisou afastar durante tanto tempo a lembrança dessa mãe vista no espelho, tão esplendidamente bela e feminina?

 

A feminilidade da mãe seria, para uma mulher, o que a separa e a priva dessa mesma mãe, da qual ela precisa? E o segundo plano não provém de uma estranha dor da beleza feita somente para o olhar do homem - sem dúvida o pai - enquanto a angústia não pode se desprender do informe corpo materno ? Pois este é o objeto da angústia da jovem naquele momento: o informe materno, como se fosse uma aranha, equivalente ao pesadelo que penetra todas as sensações do corpo, sem jamais permitir um descanso.

 

Precisamente, se a imagem da trança põe fim ao emaranhado e aparece - por meio da cena de uma menina com sua mãe atrás, diante do espelho - como uma nova aliança capaz de libertá-la do tormento da relação amorosa, é que esta imagem tranquila da troca (transferencial) acontece neste lugar onde o vínculo do homem com sua mãe exercia uma violenta atração. Mais tarde, Francine terá palavras próprias para expressar este engodo da exaustiva paixão amorosa por um "homem casado". Ela vai dizer que a busca, pelo homem, de uma doçura, a faz ficar presa nas malhas de um amor desmedido de uma mãe por seu filho. E o homem não penetra o corpo de uma mulher com seu sexo para "tomá-la": na realidade, ele vem se aninhar nela como se buscasse refúgio no corpo da sua mãe. Uma mãe não larga o filho: o sexo dele continua a lhe pertencer, e inconscientemente o homem sabe disso.

 

As crises que submergem Francine são desencadeadas pelo desespero de um estupro realizado. Tal desespero não aparece somente no sentimento de que o homem não faz amor com ela como deveria fazer com a sua "mulher"; é amplificado por esta certeza tão violenta de que ele lhe "rouba" sua sexualidade. Então o desespero deveria levá-la à vingança. Agir de maneira que o homem nunca mais tenha sossego, que seja aniquilado pelo seu crime. Francine percebe o que há nela de excessivo, mas me pede, em sessões muito angustiantes, que avalie o ultraje para a mulher quando um homem a desperta para a própria sexualidade, depois toma esta sexualidade para si, sem dar a ela nada em troca. Quando um homem toma uma mulher nas mãos, e com seu sexo, sem saber que poderia lhe dar o dom da liberdade. Mas seria preciso que o homem se separasse, naquele momento, de sua própria mãe - sem dúvida, que a matasse simbolicamente. Se não for assim, a mulher é que será oferecida em sacrifício à mãe, e talvez às mães.

 

Eu nunca tinha escutado, numa análise, expressar-se com tão extremo pudor a força determinada que está em jogo numa relação sexual. Francine pressente que foi sua necessidade de uma presença materna que a conduziu a se ver às voltas com um "caso tão emaranhado", onde o que se revelava aos poucos era a homossexualidade do homem na sua dependência sexual à mãe dele. Curiosamente, a angústia lhe dava a impressão de se agarrar ao seu próprio corpo, enquanto ela teria desejado conservar a ilusão de uma sensação maternal própria ao homem. Mas então, por que ter - a ponto de se enganar - tanta fome de mãe, ela, a quem não tinha faltado atenção por parte da sua?

 

As figuras da Antiguidade mostram com frequência, como se sabe, uma mulher segurando uma roca e um espelho, ou uma roca que poderia ser um espelho. Seria isso a feminilidade? Sem dúvida sim, nos símbolos, mas o que vale da mesma forma, se não mais, são os gestos que carregam uma troca em movimento. Após a sessão na qual tinha ficado na contemplação interna deste "quadro" da trança, Francine procurou lentamente nomear a dor sentida ante a beleza da sua mãe. Por que a perfeita beleza feminina de um corpo e de um rosto de olhar maravilhosamente azul podia lhe causar tanta dor? Por que os doces gestos que a mãe lhe dirigia pareciam destinados a um outro? Por que conservar em si, como uma imagem, esta expressão da feminilidade, sem poder se identificar, exceto pagando o preço de uma verdadeira destruição da sua mãe?

 

Francine sonhou com frequência que a via morta, deitada na cama e usando um dos seus maravilhosos vestidos. Este pensamento tinha para ela a função de um "exercício" antes de adormecer. Há muito tempo - confessa - ela convoca esta imagem enquanto brinca com seus pelos pubianos. A esperança do sono e do sonho é acolher a mãe morta, mas capaz de se animar "do interior". Talvez este seja o segredo da identificação, que teria este poder de animar o inanimado para que os gestos, o rosto e seu olhar, o corpo inteiro, a modelem como uma mulher dentro do sonho. A feminilidade seria isto : uma forma de mulher modelada pelo sonho da noite, graças à presença exclusiva da mãe-mulher. Não haveria outro caminho a não ser o de um incesto onírico mãe-filha, estas semelhantes idênticas nas quais se busca a semelhança.

 

Francine acredita que uma mulher só pode fazer amor com um homem se for suficientemente mulher para impedir o engodo materno que ele carrega consigo ao seduzir as mulheres. Uma vez expresso, este pensamento lhe parece banal. No entanto, foi certamente por não saber disto que acabou descobrindo o terrível estrondo que a ameaçou até o mais profundo do seu ser. Os homens ignoram o crime que podem cometer ao fazer amor com uma mulher e dizer "você é minha mulher". A expressão é realmente terrível. A culpabilidade dos homens em relação à sexualidade não consiste em uma traição edípica, mas bem poderia ser a máscara falsamente trágica que adotam para que a mulher os perdoe pelo abandono a que a submetem.

 

Com frequência, Francine dizia - sem acreditar nisso - que sofria de uma angústia de abandono. Ou, pelo menos, acreditava que podemos ser simplesmente abandonados por alguém, como teríamos sido abandonados por nossa mãe. Era não tomar ao pé da letra a palavra "abandono", significando que o corpo de uma mulher pode se desfazer, ou se aniquilar, se for despossuído da "pequena identidade" que o sustenta. Esta "pequena identidade" está contida na muito vaga e muito forte intuição que o gozo só se dá a um único homem. Aqui ainda, dito assim, o pensamento já é comum. No entanto, se só pudermos falar de gozo restringindo o termo para aquele que a filha reserva ao seu pai, já seria como um sonho: pensamento que daria testemunho do absoluto em relação ao qual deve se avaliar todo homem que pretende "tomar" uma mulher.

 

Esta breve sequência de análise nos coloca muito exatamente no cerne de uma questão presente na contra-transferência. E dir-se-ia aqui que a contra-transferência é trabalhada por uma angústia que despedaça todas as representações imaginárias (paternas e maternas) sustentadas pelo cuidado, pela solicitude, pelo apoio, etc. Em alguns tratamentos analíticos, dir-se-ia facilmente que a angústia expressa pelo paciente leva o analista a se desfazer de qualquer atitude psicoterápica, até se tornar uma simples superfície de silêncio inteiramente afinada com a linguagem, sem a menor expressão de sentimentos. Nos momentos mais difíceis, o que me importava era apenas fazer com que Francine escutasse a ressonância das suas próprias palavras. Mas devo acrescentar que o que me aparecia com maior nitidez era o irrepresentável e o não-nomeável do que acontecia sobre o corpo de angústia.

 

No entanto, um sonho muito assustador tinha ajudado a formar uma interpretação: Francine estava para dar à luz, mas o parto se apresentava difícil. No sonho, ela não sabe mais com certeza se se trata de dar à luz ou de abortar. O obstetra - cujo rosto ela não vê - parece estar tomado pelo pânico. Ela grita que não está grávida: o médico ameaça estrangulá-la e aproxima as mãos de seu pescoço. De repente, aparece uma parteira cuja cabeça ela percebe entre suas pernas abertas, bem à altura do sexo. O obstetra desaparece, e a hemorragia cessa.

 

Nas associações que surgem depois do sonho, ela relata uma masturbação que se impôs imperiosamente na véspera, no momento em que procurava dormir e sentia excitação na angústia. Isso resultou num mal-estar, e no seguinte pensamento: ela odiava sua mãe por "tê-la feito aberta, com este sexo de mulher". E acrescenta: "será que a angústia não seria toda a hemorragia que sai do meu sexo?". Intervenho para comentar que o personagem do obstetra poderia ser o psicanalista, impotente para acabar com a angústia hemorrágica. Ela recusa essa interpretação, ao mesmo tempo em que reconhece que, quando está muito angustiada, espera de mim que consiga fazê-la "dar o seu grito". Digo-lhe então que as mãos que ameaçam estrangulá-la para fazê-la parar de gritar poderiam ser as mãos que liberam o grito. Ela concorda, pensando na cena de parto de um filme na qual o obstetra tinha mãos de estrangulador, e ia extrair a criança do corpo da mãe. Aqui, digo eu, trata-se de libertar da angústia - de "fazer a angústia regurgitar". Enquanto no sonho a angústia hemorrágica diminui, surge entre as pernas afastadas essa cabeça de parteira e seu rosto reconhecível. Falo: "Então era sua mãe que você dava à luz, com seu sexo".

 

Francine reencontra então este pensamento, que lhe veio um pouco antes do sonho: ela andava no vilarejo, ao lado de sua mãe. Um senhor idoso, amigo do seu avô, disse ao cruzar com elas: "parecem duas irmãs: mesma altura, mesmo penteado, mesmo porte de cabeça" . Dirigindo-se a Francine, acrescentou : "Sabe, vi sua mãe nascer, eu era o médico da família. Ela era tão pequena e tão magra que poderia caber na palma de uma mão!" Francine pensou então que bastava uma pequena abertura para fazer "passar uma menina". Eu digo: "Já que são tão parecidas, você poderia ter estado grávida da sua mãe."

 

Esta interpretação lhe convém. Por si mesma, compreende que uma menina pode ser fecundada pela mãe, e que pode carregar a mãe em seu ventre. No sonho, diz que não está grávida - de um homem - e que não tem nada para dar à luz, nem para abortar. Não é isto a imaculada concepção - que uma virgem esteja grávida da sua mãe ? O movimento na análise pelo qual a angústia começa a ceder é desencadeado por este sonho de certo modo mítico, no qual a homossexualidade mãe-filha adquire a sua fecundidade. Na análise, este sonho confere uma figura ao irrepresentável, e abre para a linguagem ali onde nada ainda pode ser nomeado (o emaranhado informe). E o que o sonho induz assim - o analista estando presente em pessoa e na sessão - é a formatação do gesto da trança, gesto que, no entanto, permanecera escondido e secreto.

 

Aquém da temática e da problemática que pode se deduzir dela, convém prestar atenção a este trançado que o pensamento efetua diretamente no corpo, com seu trabalho de desenredamento - entre - dois ou, como gosto de dizer, "aqui em dois". Nada pode ser imaginado a não ser assim : como na obra do artista Rouan, é a superfície de escuta da linguagem que engendra a trança. E esta trança, antes de aparecer na imagem do quadro, com seu espelho, é a partenogênese de uma mulher dando-se a maternidade de sua própria mãe, para torná-la materna, dando-a à luz entre as pernas abertas, exatamente no nível do sexo.

 

No seminário sobre "A partenogênese", François Perrier comenta as posições assumidas por Michèle Montrelay no seu livro A sombra e o nome (1977), e comenta: "O parto partenogenético é fantasia (phantasme) de uma mulher que quer dar a luz à filha que ela não foi, para se dar a luz a si própria enquanto filha que não será insatisfeita como foi a sua mãe." Isto seria um tempo edípico da fantasia, correspondente à reelaboração de uma fantasia partenogenética mais primitiva, que se expressaria - sempre segundo Perrier - da seguinte maneira : "Esta filha que se torna a mãe se encontra numa posição impossível, já que ela está na situação presumida de representar o nascimento de sua própria mãe."

 

A problemática do tema mítico da partenogênese remete aqui à angústia do emaranhado mãe-filha: este emaranhado é o vínculo oral-genital - primitivamente sexualizado demais - entre a filha e a mãe. A trophé grega poderia designar este vinculo que, na análise, não é representável, a não ser pela função que toma aqui o idêntico, num incesto prototípico (no sentido que lhe dá Françoise Héritier), evocando a impossível alteridade mãe-filha. Na análise de Francine, fica claro que é a posição perversa do homem - não assumindo seu próprio corpo na sua sexualidade com uma mulher - que torna agudas as pulsões pré-genitais (orais-anais), assim como as fantasias de despedaçamento por uma mãe fálica. O que nos aproximaria de um comentário de Piera Aulagnier sobre "A feminilidade e seus avatares": "A feminilidade, nos dizem, impede a interpretação na medida em que ignora o recalque." O que está certo, se estamos de acordo para pensar que a interpretação consiste num ato discursivo. Mas que é menos certo, se admitirmos que a interpretação se trança silenciosamente na linguagem no decorrer da análise, e que atribui assim à escuta uma decisiva função de ressonância. Montrelay remete a Lol V. Stein : "O que falta, o que seria preciso? Teria sido necessário uma palavra-buraco, uma palavra-ausência... não teria sido possível dizê-la: teria sido possível fazê-la ressoar."

 

A distinção entre recalque e censura merece ser destacada - no sentido em que o fizeram Piera Aulagnier e François Perrier. Afirmar que a feminilidade ignora o recalque, porque é constituída de pulsões arcaicas que se expressam no emaranhado e nas suas crises violentas, desloca a função estruturante da interpretação na análise até o ponto de fazê-la desempenhar o papel de outro da linguagem. De um ponto de vista técnico, nunca é demais lembrar o quanto fracassam miseravelmente atitudes de empatia psicoterápica que respondem a uma ideologia maternante. Estaríamos tentados a afirmar que o insucesso de numerosas análises de mulheres devido à violência do feminino - o que nos faz lembrar que é precisamente este feminino que está em estreita afinidade com o psicanalítico, e que o desafia na contra-transferência do analista. Não existiria tal desafio no cerne da análise, se esta não fosse exigida como único trançado possível do vinculo.

 

Mas deveríamos também aprender que o que chamamos o "feminino" - idealizado na expressão de certas qualidades corporais - é sem dúvida, somente a máscara convencional que assumem as pulsões mais primitivas com as quais lida a análise. E, para nós, a questão permanece sendo a do informe materno que assombra o feminino. É aí que, sem dúvida, devemos deixar formar-se a imagem do mito.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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