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Autor(es)
Maria Lucia de Souza Campos Paiva
é psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.6



Notas

1.        S. Freud, "Análise de uma fobia de um menino de cinco anos", in: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. x: Duas histórias clínicas (O Pequeno Hans e o Homem dos Ratos). Rio de Janeiro: Imago, 1909/1980.


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 LEITURA

A incestualidade na cena familiar

Incestuality in the family scene
Maria Lucia de Souza Campos Paiva

Lévi-Strauss apontou que a interdição do incesto é uma regra universal existente nas organizações culturais. Podemos pensar que o fato de as sociedades estabelecerem uma lei que interdita os desejos incestuosos é por si só uma constatação da existência de tais desejos no âmbito familiar. A questão do desejo incestuoso aparece na Antiguidade clássica, como vemos na tragédia Édipo Rei, de Sófocles. Trata-se, portanto, de um fenômeno reconhecido nas sociedades há muito tempo. No entanto, é somente a partir dos estudos freudianos que se tornou possível uma compreensão mais profunda do problema.

 

O livro de Sônia Thorstensen abre um campo para a discussão a respeito da incestualidade à luz da Psicanálise. A autora a coloca na dinâmica familiar como algo universal, necessário e constitutivo do sujeito psíquico, bem como algo aprisionador que pode assumir características patológicas. Fruto de sua dissertação de mestrado, o livro é fundamentado a partir de um atendimento clínico familiar, no qual são analisadas as vicissitudes da circulação dos desejos incestuais.

 

O livro tem como subtítulo páthos familiar, indicando que a autora delimita a concepção que tem de incestualidade. A palavra páthos, de origem grega, significa um tipo de experiência humana. Apoiando-se no referencial teórico freudiano, salienta que, devido à constituição de um inconsciente atravessado por desejos sexuais recalcados, há um sofrimento psíquico, um excesso de dor que fundamenta o páthos no ser humano. A incestualidade, então, é vista sob o prisma de uma experiência humana necessária, mas que gera sofrimento psíquico, já que nem todos os desejos poderão ser concretizados na família.

 

Na obra, a autora toma emprestados os termos incestualidade e incestual, neologismos forjados por Racamier, que apontam para uma dimensão primitiva e regressiva da sexualidade, com sua sustentação na ilusão de completude; ou seja, essas palavras são usadas pela autora com referência a uma das maneiras pelas quais a sexualidade circula na família. Ao usar esses termos, a autora estabelece tanto os aspectos constitutivos da incestualidade quanto os aprisionadores para a vida psíquica do sujeito e diferencia tais termos da palavra incestuoso, que tem sua definição associada ao ato do incesto propriamente dito.

 

Faz uso também do termo escolhas exogâmicas ao referir-se a todas as possibilidades que o bebê tem de escolher, desde a primeira infância, laços afetivos ou até mesmo situações que vão além do vínculo estabelecido com sua mãe. Para que as escolhas afetivas possam ocorrer fora do núcleo familiar, é preciso que a mãe acolha/interdite os desejos incestuosos de seu filho. Desse modo, a autora aponta que o fenômeno psíquico específico da incestualidade tem uma relação interdependente com a noção de escolha exogâmica. Podemos dizer que aí se configura um "fio da navalha": se, por um lado, é preciso que a mãe estabeleça uma relação afetiva muito próxima a seu filho, por outro lado, é necessário que a interdite, favorecendo todos os tipos de escolha exogâmica. O bebê tem o impulso e o desejo incestuoso puro e, no vínculo com a própria mãe, aprenderá a deslocá-lo e a adiá-lo. Assim sendo, dependendo do modo como for vivida a incestualidade no âmbito familiar, haverá maior ou menor possibilidade de que escolhas exogâmicas possam ocorrer no desenvolvimento da criança.

 

Após a introdução, o livro é subdividido em três capítulos. No primeiro, a autora apresenta um caso clínico no qual os fenômenos incestuais assumem um caráter aprisionador, em que o filho do casal é o porta-voz da dinâmica familiar por meio de seus sintomas. Trata-se de um caso de atendimento familiar que acaba sendo rico não só pelas características que permeiam tal tipo de atendimento como também pelo fato de a autora apontar, por meio da relação transferencial, como a incestualidade do tipo aprisionador aparecia no setting terapêutico, bem como as vicissitudes do comportamento de cada membro da família. Diz ela: "Quando a atenção da analista voltava-se para os pais, ele ficava vagando pela sala e mexendo nos objetos que encontrava, inclusive na mesa da analista, sob o olhar complacente da mãe e sem ouvir os débeis protestos do pai, que, por sua vez, parecia não esperar ser mesmo ouvido" (p.?30).

 

Outro aspecto interessante é como, por meio de uma análise das heranças geracionais em que trabalha as histórias das famílias de origem do casal parental, a autora analisa em que medida a família se constituiu gerando diversos sintomas. Então, o processo identificatório da mãe é delineado e, com isso, é possível compreender o lugar que o filho ocupa no imaginário materno e o vínculo simbiótico que a dupla mãe/filho estabelece.

 

Ainda nesse capítulo, a importância do discurso do pai e a relevância de sua presença são apontados, uma vez que a função paterna de corte no vínculo mãe/filho não é exercida. A autora aproveita a ilustração clínica para discutir e explicar teoricamente o emaranhado que se configura entre o desejo materno, a função paterna e as fantasias incestuosas presentes na família. A mãe relata, em uma sessão, que toda noite o filho ia para a cama do casal e já havia um colchonete preparado para o pai dormir nele. "Essa fala contém, provavelmente, a explicação para boa parte do estado ansioso de Antônio [nome fictício dado ao filho pela autora], a quem era permitido (ou incentivado) desbancar o lugar do pai no leito conjugal" (p.?33).

 

No segundo capítulo, depois de ter apresentado o caso clínico, a autora busca, por meio da teoria psicanalítica, uma compreensão dos fenômenos incestuais. Mergulha, inicialmente, no conhecido trabalho freudiano sobre o pequeno Hans (Freud, 1909)[1], para discutir o impulso incestual primitivo próprio do ser humano. O aspecto interessante da análise apresentada decorre da forma como a autora vai dissecando os jogos pulsionais presentes na dinâmica familiar de Hans, tecendo uma leitura intersubjetiva sobre o que ali se passa.  Aponta os desejos edípicos de Hans por sua mãe e o sintoma apresentado pelo menino como uma solução de compromisso para tais desejos. O comportamento da mãe passa a ser abordado como um discurso de dupla mensagem: ora rejeita os desejos do filho, ora os estimula proporcionando situações de maior intimidade entre os dois. A presença do pai, enquanto interditor da dupla mãe/filho, é questionada, o que leva a autora a estabelecer uma aproximação entre os dois casos: o Pequeno Hans e o caso por ela apresentado. Encontra em ambas as situações um enlaçamento entre as estruturas emocionais dos pais, os impasses conjugais do casal parental e a formação de sintoma nos filhos. Aponta que, tanto no caso do Pequeno Hans como no caso por ela atendido, os sintomas dos filhos não são nada mais do que uma reação ao que é vivido no âmbito familiar. "O pai cede à mãe, não impõe seu lugar, não interdita a mãe para Hans" (p.?63). No outro caso, a ausência paterna levava a mãe colocar seu filho "[...] em situações de ocupar o lugar do pai, fosse na cama, fosse como companhia constante" (p.?64). A falha na interdição é a característica presente que aproxima os dois casos clínicos e, por isso, os fenômenos incestuais acabam sendo aprisionadores e sintomáticos.

 

Após o minucioso exame do caso do pequeno Hans, a autora explicita a função simbólica do pai à luz de Lacan e seus seguidores. Afirma que é necessário que exista uma aliança entre o casal parental para o desenvolvimento do filho, ou seja, que a mãe e o filho possam ser interditados por um terceiro. É importante relembrar que, na teoria de Lacan, a mãe é que apresenta o pai, ao intermediar e validar o discurso paterno. A autora adverte que, mesmo em famílias monoparentais, em que a mãe não tem um companheiro, a interdição pode ser realizada por ela mesma. Entretanto, salienta que a presença real de um pai pode modificar o jogo pulsional vivido na dinâmica familiar. O terceiro presente reforça as várias possibilidades e facetas do triângulo edípico, num interjogo de inclusão/exclusão vivenciado pelos vários pares (pai/mãe; pai/filho; mãe/filho). Pensando sobre o aspecto da inclusão/exclusão vivido no cotidiano familiar, a flexibilidade no processo de aproximação e de afastamento dos membros de uma família leva à possibilidade de que os fenômenos incestuais, tanto os constitutivos do sujeito quanto os aprisionadores de seu desenvolvimento, possam ser vividos ou interditados e, finalmente, elaborados. A incestualidade assume, nesse interjogo, um caráter benéfico e não aprisionador.

 

Para discutir a faceta aprisionadora que a incestualidade pode assumir, a autora apoia-se no próprio caso do Pequeno Hans e em sua vasta experiência clínica para abordar a dificuldade que um pai pode ter em interditar os desejos incestuosos de sua parceira em relação ao filho e vice-versa. Discute que tal dificuldade pode estar sustentada no medo de perder o amor do filho, bem como por se identificar com os desejos edípicos dele ou, ainda, por não ter vivenciado em sua família de origem a presença de um pai interditor.

 

Nos casos em que o pai não exerce a função de interditor, a criança fica apenas no lugar de objeto de desejo, assujeitada exclusivamente ao anseio materno, tendo dificuldade, assim, em criar o próprio desejo. Em última instância, a função paterna assume um caráter interditor que poderá libertar o filho do laço incestual e concederá à criança a possibilidade de traçar seus próprios caminhos.

 

Depois de abordar a função paterna frente aos desejos incestuosos do filho, a autora faz uma bela análise a respeito da função materna. Retoma os primórdios da constituição do vínculo mãe/bebê ao descrever as marcas desse relacionamento já na vida intrauterina. Busca, assim, desvendar as raízes do desejo feminino e a importância para a mulher em gerar um filho. Parte da noção freudiana de que o desejo de gerar um filho é o desejo por excelência de uma mulher. No entanto, a autora questiona e amplia tal visão, ao destacar que a experiência clínica demonstra serem vários os fatores que podem colocar um filho no lugar de objeto de maior relevância na vida de uma mulher. As dificuldades vividas na vida conjugal, a dificuldade de desenvolver uma identidade pessoal que vá além do exercício da maternidade, a transmissão transgeracional de valores sobre a maternidade são alguns dos fatores que podem contribuir para que a mãe coloque o filho como objeto central de sua vida. Nesse sentido, a mãe contribui para que o filho fique aprisionado ao seu desejo.

 

No que se refere ao tema da incestualidade, dessa forma, o pai que não chega a compreender sua função de interdição da mãe ao filho terá tido um pai nas mesmas condições, transmitindo, inconscientemente, esse tipo de posicionamento de uma geração para outra.

 

O mesmo acontecerá com a mãe. Ela transmitirá, a seus filhos e filhas, um modo materno aprisionador de se vincular incestualmente que avançará pelas gerações seguintes, se não houver um pai que interrompa a cadeia (p.?111).

 

Libertar o filho do próprio desejo é vivenciar o luto da separação, assunto que é abordado no terceiro capítulo junto com o tema da possibilidade de escolhas exogâmicas. Nesse capítulo, a autora, após ter esclarecido teoricamente a questão da incestualidade, elucida o processo ininterrupto de alternâncias de investimentos em objetos incestuais e objetos exogâmicos ao longo da vida do sujeito. A análise feita busca, mais uma vez, um suporte na teoria pulsional freudiana, o que permite ao leitor um fácil entendimento do circuito pulsional que permeia a dinâmica familiar. Ao descrever o processo da escolha exogâmica, aponta que, em toda escolha desse tipo, há sempre um reencontro com o primeiro objeto de amor na esfera do inconsciente. A ideia está fundamentada no deslocamento da libido, que é feito do objeto incestuoso principal para o objeto exogâmico a ser escolhido. Desse modo, os desejos incestuosos que foram interditados podem ser experimentados em outra dimensão.

 

Nas considerações finais, a autora faz um alerta de que alguns sintomas que certas crianças apresentam podem ter como pano de fundo uma incestualidade patológica, o que muitas vezes acaba sendo difícil de ser diagnosticado. Ressalta a importância de que sejam entendidos, para o atendimento clínico com família, os modos de interdição que a mãe pode exercer. A família, enquanto objeto de estudo, é algo muito complexo, não só pela diversidade de modelos de famílias existentes, mas também por conta de que as diversas dinâmicas familiares se apoiam no circuito pulsional inconsciente vivido pelo grupo familiar. Este livro traz uma fatia de um aspecto fundamental na constituição subjetiva do sujeito psíquico e, por conseguinte, torna-se um livro importante para os estudiosos dos processos que permeiam a família.

 

Tanto o caso apresentado pela autora quanto o caso freudiano referem-se a casais heterossexuais e de famílias cujo modelo de casamento assemelha-se a um modelo tradicional de vínculo conjugal. Thorstensen deixa claro que não teve o objetivo de discutir, neste livro, as vicissitudes da questão da incestualidade em outros modelos de família. Entretanto, com base nos apontamentos feitos, ao longo do livro, é possível que o leitor reflita sobre a incestualidade enquanto páthos familiar presente em qualquer tipo de organização familiar existente na contemporaneidade. Ao se concluir a leitura do livro, percebe-se que é possível um aprofundamento no tema da incestualidade presente em todas as organizações familiares e, até hoje, tão pouco discutida. Nesse sentido, o valor da obra está no tema focalizado, pois a autora assume que na cena familiar há um interjogo de desejos incestuosos que podem ser benéficos ou aprisionadores. Entendo que a autora foi muito cuidadosa ao explicitar que a discussão da incestualidade dizia respeito a um modelo de família, entretanto, chamo a atenção para a possibilidade de se ampliar tal reflexão para os demais modelos familiares.


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