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ÍNDICE TEMÁTICO 
52
Figuras políticas do mal: limites do humano
ano XXVI - Junho 2014
213 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Autor(es)
Eveline Alperowitch
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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 LEITURA

Perguntando, transmitir: o entrevistar [Psicanálise Entrevista]

Questioning, transmitting: on interviewing
Eveline Alperowitch

Na tradição judaica, por ocasião da festividade de Pessach, que comemora a libertação do povo judeu que era escravo do Egito, conta-se e se reconta a mesma saga todos os anos.

 

Esta narrativa é estimulada por perguntas que são feitas pelas crianças mais jovens durante um jantar em que toda a família está reunida. Esta narrativa se chama Hagadá (narração) de Pessach, e vários estudiosos a reescreveram e a contam segundo sua própria interpretação. Uma Hagadá muito interessante é a de Moacir Scliar, o qual começa agradecendo aos mais jovens - os incumbidos de perguntar - a oportunidade que lhe é dada para lembrar e narrar acontecimentos de alguns milhares de anos atrás. A cada ocasião, mesmo que sejam feitas as mesmas perguntas, o narrador tem a oportunidade de rever (e eventualmente recriar) o modo de contar, de maneira a prender a atenção dos ouvintes.

 

Estamos falando da transmissão de uma tradição, assim como falamos de transmissão quando escutamos psicanalistas contando e recontando sua prática, questões e teorias para ouvidos interessados naquilo que eles têm a dizer.

 

Este é o formato de uma entrevista: alguém pergunta, alguém responde, e a tradição vai sendo transmitida e recriada.

 

Desde seu primeiro número em 1988, em cada edição, Percurso tem dedicado um bom número de páginas a Entrevistas. Deste modo, dos 51 exemplares que foram publicados até o primeiro semestre de 2014, Mara Selaibe e Andrea Carvalho tiveram a ideia de selecionar 35 e constituir o livro Psicanálise Entrevista, editado em dois volumes, dos quais o primeiro acaba de ser lançado. Nelas, várias pessoas que têm algo a dizer sobre Psicanálise - tanto do ponto de vista teórico como sobre sua prática clínica - responderam ao serem questionadas, compondo uma importante argamassa de conceitos e reflexões que ao se solidificar permite voos do que foi chamado por Renato Mezan, na brilhante introdução ao livro, de "Convite ao Pensamento Livre".

 

Mezan usa uma bela imagem para se referir àquilo que vamos ler, quando nos fala sobre como a iniciativa de reunir estas entrevistas "faz surgir um panorama fascinante, um pouco como se alguém que estivesse espiando por uma fresta da janela de um trem abrisse a cortina por completo e deparasse com toda a beleza da paisagem". Refere-se Renato Mezan à produção dos últimos sessenta anos de psicanálise, às "dezenas de vozes que nos chegam de vários países (e portanto de tradições diversas), porém ancoradas num território comum, balizado pela referência a Freud e a seus sucessores..."

 

As questões abordam não somente o interesse pelo pensamento e prática psicanalíticos, como também "o interesse quanto à sociedade e à cultura na qual habitam os analistas e seus pacientes", como exemplifica a entrevista com Paulo Sérgio Rouanet, ensaísta e pensador da cultura, que se dedicou profundamente a estudar Freud reconhecendo o "extraordinário enriquecimento" que a psicanálise promoveu ao ser humano, como se poderá ler em um dos capítulos de Psicanálise Entrevista.

 

Nos livros e textos, nas pesquisas e teorias que elaboram, nas conferências que proferem, os autores veiculam seu pensamento. Numa entrevista se podem costurar dúvidas, comentários, discussões, enfim, aproveitar o conteúdo veiculado a fim de construir novos pensamentos numa relação mais associada entre autor-entrevistador.

 

Daí a grande importância do entrevistar.

 

Minha intenção nesta resenha é focar não nos entrevistados, figuras sobejamente conhecidas, mas no entrevistar. Como durante um bom tempo fiz parte da equipe de entrevistadores, gostaria de falar um pouco sobre o processo de preparação que antecede o encontro Percurso-autor, salientando sobretudo que embora não seja esta a intenção, as reuniões da equipe durante o processo de preparar uma entrevista se assemelham a um grupo de estudos.

 

Feita a escolha do autor a ser entrevistado, às vezes aproveitando a visita de algum psicanalista ao Brasil ou América do Sul, passam-se algumas reuniões descobrindo e escolhendo o material possível de ser disponibilizado. A partir disso, os textos são distribuídos para cada membro do grupo, e estabelece-se um prazo para que as leituras sejam feitas. A dinâmica das reuniões seguintes consiste num debate, no qual cada membro do grupo traz pontos importantes das leituras feitas, surgem concordâncias e oposições, as discussões vão se aprofundando, até que o grupo como um todo - considerando diversos enfoques dos colegas - elabore uma síntese do que interessa naquele momento questionar ou apontar, e algumas perguntas-roteiro são elaboradas.

 

Portanto as perguntas contêm pontos-chave que estimulam o entrevistado a outras reflexões ou esclarecimentos e ao mesmo tempo também servem de roteiro, uma vez que o grupo que entrevista vai pensando junto com o entrevistado à medida que este, durante sua fala, remete a algum ponto que o grupo considere interessante aprofundar. Assim novas questões acabam surgindo, e uma outra narrativa é de alguma maneira construída. Em síntese, a entrevista vai se fazendo.

 

Vejamos por exemplo a entrevista realizada com Marcelo Viñar em 2000. Em algum momento o entrevistado faz uma menção à importância de continuar a explorar a questão de como o que ele chama de "a sequela do fantasma originário" se imbrica com o "colorido por aquilo que no coletivo marca a diversidade do posicionamento do jovem em determinado grupo geracional" (p.?230)

 

Segue-se o apontamento da equipe Percurso: "Neste sentido, se há uma penetração exercida pelo universo da vida cotidiana em direção à metapsicologia, seríamos obrigados a reformular a própria metapsicologia?"

 

Ao que responde Viñar: "Provavelmente! Eu, pessoalmente, nunca vou formular uma metapsicologia, mas é preciso pensá-la. Eu não acredito que se deva atirar a anterior no lixo e inventar uma nova, mas é necessário confrontar o que sabemos com os achados que se nos impõem".

 

E novamente a Percurso: "Ao dizer ‘Eu nunca vou formular uma metapsicologia', qual é o problema que, para o senhor, está envolvido em se debruçar sobre essa questão?"

 

Viñar responde que esta é uma questão difícil, e que se poderia ficar horas debruçado sobre ela, e tece considerações a respeito, exemplificando o que anteriormente referi como uma produção conjunta de saber elaborado ao longo da entrevista.

 

Em outro momento no livro, encontramos Radmila Zygouris referindo-se a um estilo próprio de trabalhar, "que possivelmente está relacionado com minha origem eslava. O eslavo chora muito, ri muito...".

 

Percurso: "Ao que parece, a senhora não segue a postura afetiva reservada dos analistas."

 

Responde Radmila: "Bem, você me encontra depois de trinta anos de trabalho. Estou mais sabida hoje..." (p.?135).

 

Respostas como esta disparam uma inquietação na cabeça do leitor, que vai ser compelido a um diálogo com a autora, e principalmente consigo mesmo se ele também for analista, para situar-se dentro da sua própria vivência e perspectiva no exercício do seu ofício.

 

As questões podem derivar dos escritos do autor, assim como de algum pensamento que ele expressou na véspera, em alguma conferência. Assim se mantém e de certo modo se garante a vitalidade na circulação das ideias. Para o autor entrevistado resulta interessante saber como seu público o compreende, quais os pontos de maior interesse ou que tipo de dúvidas e reflexões seu pensamento gera.

 

Ocorre-me enquanto escrevo o quanto este processo é semelhante ao processo analítico propriamente dito. Tomamos como material o que nos dizem nossos pacientes, escutamos dentro de uma chave analítica e perguntamos, apontamos, interpretamos de modo que a cada momento estimulamos a confecção de novas possibilidades de pensar, tanto para nossos pacientes como para nós.

 

Por este motivo é que estou privilegiando tanto os que se dispõem a perguntar. Do bom exercício desta atividade depende a criação e construção de novas bases para outras maneiras de poder ser. A mim particularmente parece ser esta a imagem que condensa a possibilidade de um analista: poder ser livre e criativo e ao mesmo tempo vinculado a uma tradição que constitui a base para transmitir consistências relevantes.

 

Feitas algumas observações que me parecem importantes, gostaria de me referir à organização do conteúdo propriamente dito deste livro. Além da Introdução já mencionada, as entrevistas são todas precedidas por uma apresentação curta e consistente sobre o entrevistado e suas obras, feita por membros do Departamento ou por quem participou daquela entrevista em particular.

 

Ao lado de tradicionais nomes da psicanálise produtores de teorias e experientes clínicos como André Green, Jean-Bertrand Pontalis, Jean Laplanche, Joyce McDougall, Otto Kernberg, Monique Schnaider, Jean Oury, Claude Le Guen, Radmila Zygouris, encontramos também os analistas geograficamente mais próximos de nós, como Marcelo Viñar, Jurandir Freire Costa, Joel Birman, Chaim Samuel Katz, Emilio Rodrigué, Isaías Melsohn, Ivone Accioly Lins e Silvia Alonso, a qual faz parte do nosso Departamento.

 

O material com que o leitor do mencionado livro deparará é de suma valia para quem quer conhecer melhor diferentes abordagens da psicanálise, assim como para quem quiser ter a sensação de ter conversado mais intimamente com os autores.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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