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Resumo
A partir do depoimento do pai à Comissão Nacional da Verdade, psicanalista dá seu próprio testemunho dos efeitos traumáticos do mandato paradoxal de não falar e nunca esquecer, presente tanto em sua origem judaica quanto nos momentos de regime autoritário em nosso país. Através da narrativa em terceira pessoa, faz de muitos uma história que é sua, buscando romper o silêncio da memória fundamental para a elaboração do trauma. Esta oportunidade está criada pelo Estado Brasileiro que hoje assume sua responsabilidade na barbárie, conduzindo a investigação dos fatos escondidos e pedindo perdão aos sujeitos e à sociedade pelos crimes cometidos.


Palavras-chave
psicanálise; trauma; testemunho; tortura; silêncio; vergonha.


Autor(es)
Heidi Tabacof
é psicanalista, professora e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1.        Texto apresentado em 30 ago. 2014, na abertura da primeira etapa do Evento: Ditadura Civil-militar no Brasil: O que a psicanálise tem a dizer, organizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

 



Abstract
Starting from the father’s deposition on the National Truth Commission, the psychoanalyst gives her own testimony of the traumatic events of the paradoxical mandate of never speaking and never forgetting, present both in her Jewish origin as well as in the totalitarian regime in our country. Using a third person narrative, the history of one is transformed in the history of many, while endeavoring to break the fundamental memory silence towards a trauma elaboration. This opportunity is nowadays available due to the fact the Brazilian State assumed its responsibility in the barbarism, conducting an investigation of the hidden facts and asking for forgiveness to the individuals and the society for the crimes committed.


Keywords
totalitarianism; shame; silence; trauma; witness.

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 TEXTO

Para não fazer o elogio do sinistro

Let us not sing the praises of the sinister
Heidi Tabacof

Na busca da verdade através do testemunho, vou contar uma história que é minha e de tantas outras pessoas que em alguma medida sofreram os abusos do totalitarismo, com seus efeitos de terror e de angústia muda. Precisamente aí a psicanálise é convocada a tomar um lugar, intervindo com a escuta do sujeito e articulando no social o saber do inconsciente.

 

Freud, pensador do humano, em interlocução constante com os saberes e os enigmas de seu tempo, construiu a metapsicologia e seu método clínico baseado no livre exercício da palavra que põe em marcha o processo analítico.

 

Nesse momento em que o Estado Brasileiro investiga seus crimes ocultos, cujas ressonâncias não cessam de nos ameaçar, somos chamados a fazer falar o ódio, o medo, a humilhação e a culpa, elaborando os lutos necessários para não fazer o elogio do sinistro.

 

A menina tinha nove anos quando em suas incursões secretas pelas gavetas do quarto dos pais encontrou, embaixo de uma pilha de roupas, a pasta cheia de recortes de jornal, algumas fotos e cartas antigas. Ao abri-la, seus olhos curiosos foram atraídos pelo nome do pai seguido pelas palavras: "jovem estudante comunista preso e incomunicável há cinquenta dias".

 

À medida que lia o artigo e tudo mais que ali estava disponível, a representação que tinha dos pais e de sua própria história se transformava, sendo marcada por uma dor que precisava ser escondida.

 

Ela aprendeu também, lendo as cartas daquela época, que o pai fora expulso do Partido Comunista, acusado de traição, enquanto estava preso no quartel ao qual fora conduzido ilegalmente, único civil incluído num processo civil-militar. Tinha sido arrancado de dentro do ônibus, diante do irmão mais novo que estava com ele e assistiu a toda a cena em silêncio, de acordo com as regras de segurança da família. O irmão mais velho, recém-casado, era um militante profissional que vivia na clandestinidade, dedicado inteiramente à luta revolucionária, tendo inclusive abandonado a faculdade que cursava, para o desgosto da família de imigrantes judeus recentes. Naquela altura, além das atividades de formação política em que se engajava, dirigia o jornal do partido comunista em seu estado, em 1952, durante o governo Vargas.

 

Eram de sua mãe as cartas em que descobria essas coisas. Uma mulher desesperada, indignada com a injustiça que estava sendo cometida. Recebia de volta respostas monossilábicas, em envelopes nos quais eram devolvidas também as cartas que ela própria havia mandado. Só os companheiros mais próximos, os verdadeiros amigos, se arriscavam a desafiar pela última vez a obrigatoriedade disciplinar de ruptura total com o expurgado, e com ela também, por consequência. A menos que o renegasse, o que seria outra traição inconcebível: tinham um bebê de poucos meses que até então o pai não conhecia, por recusar-se a se apresentar ao filho naquela condição indigna, privado de sua liberdade.

 

Decidiu não lhe contar o que tinha acontecido, temendo que a notícia lhe tirasse as forças para resistir ao período em que ainda ficaria preso, agora legalmente. E ainda, para que não desconfiasse do que estava acontecendo lá fora, continuaria a sair do presídio levando no meio da roupa suja, como segunda pele colada ao lenço de algodão usado, os pedaços de papel em que ele transmitia, aos camaradas em atividade, informações construídas com os fragmentos de conversas que ouvia lá dentro.

 

Só que agora, em vez de entregar aos destinatários de sempre, ela faria o papel fino se esfarinhar entre seus dedos. Mesmo sem qualquer contato com os ex-companheiros, sabia que muitos continuavam caindo, mas não como seu marido, acusado de ter revelado nomes sob tortura. E se isso fosse verdade, no que consistiria a justiça?

 

A menina sentia a gravidade terrível daquelas palavras, mesmo que não pudesse compreender claramente o que diziam. Pensava que aquilo devia ter alguma relação com a placa de bronze no hall da escola, porque lhe produzia a mesma mistura de excitação e medo, agora com os sentimentos novos de humilhação e orgulho. Porque também havia algo muito importante ali: o desejo de lutar por liberdade e justiça, uma ideia irresistível.

 

Todas as manhãs, enquanto cantava os hinos do Brasil e de Israel na escola, a menina lia o que estava escrito na placa de bronze presa à parede: Lembre-se dos seis milhões de judeus mortos em Auschwitz, Birkenau e Treblinka.

 

Não conseguia entender por que teria de lembrar todos aqueles nomes que não parava de ler enquanto repetia a cantoria cívica. Por que não preferir esquecer se aquilo era tão triste que não se podia falar sobre o assunto, muito menos com os parentes vindos dos campos de concentração da Europa, com letras e números escritos nos braços? Será que conseguiria lembrar para sempre e nunca falar sobre tudo aquilo?

 

Décadas mais tarde, a mulher em que a menina se tornara, crescida no período de longa e tenebrosa ditadura, divergia do pai em matéria política, identificada ao traço combativo do pai da infância, enquanto se opunha ao judeu humanista que assumira posições conflitantes com as do jovem comunista. No entanto, jamais voltou a "assinar carteirinha". Resposta sarcástica e insuficiente à ferida nunca tratada, à dor sem lugar do sonho destruído, apesar de 20 anos depois o Partido Comunista ter lhe pedido perdão pelo erro cometido.

 

Resta algo até hoje em sua garganta, ela pensa quando o escuta tossir até sufocar tentando expulsar com esforço inútil o que diz ser uma partícula presa, sempre lá, há muito tempo. Parece que o não dito gruda por dentro.

 

Assim, as palavras do pai octogenário lhe soaram como uma oportunidade preciosa, ainda que tardia, quando ele comentou que se quisesse poderia depor na Comissão Nacional da Verdade sobre sua prisão e tortura. Apesar de o foco da investigação ser o golpe civil-militar de 1964, quando a máquina estatal de destruição já havia se instrumentalizado muito, foi estabelecido como marco de início do trabalho da cnv o ano 1946, incluindo, portanto, o período da ditadura Vargas, tempo de sua experiência duplamente traumática.

 

Ao concluir seu testemunho, conduzido e acompanhado por integrantes da Comissão Nacional da Verdade, já de pé para partir o homem declarou aos presentes: senhores, eu nunca falei sobre essa história antes!

 

Os cumprimentos que se seguiram rasgaram a pele frágil de sua mão, reabrindo uma ferida e deixando marcas de sangue na mesa, no chão e no espaldar das cadeiras. Ao deixarem a sala, pela primeira vez se questionou: são sessenta anos, por que nunca falei sobre essa história? Por vergonha, sugeriu a filha, ao que o pai respondeu: taí, agora você me deu uma boa ideia! Mesmo que aparentemente paradoxal, a vergonha fazia sentido como efeito da impotência aviltante daqueles que em situações de violência extrema, impossibilitados de reagir, sem escolha, se submetem. Vivências desumanizantes nos termos precários de uma civilização que nos exige transformar impulsos destrutivos em laços eróticos sublimados, capazes de atender à necessidade comum de sobrevivência. Uma operação psíquica complexa, cujas falhas e consequências convocam a psicanálise a trabalhar, mobilizando seus recursos para lidar com os efeitos do traumático no sujeito e na cultura.

 

No metafórico 7?x?1 a vergonha retorna como marca indelével no discurso do povo brasileiro, que, por assimilação à imagem que o opressor lhe oferece, sofre por não corresponder aos ideais narcísicos e sociais que parecem conjurar o medo ao outro, ao estrangeiro que ameaça nossa existência e nos lança no sinistro.

 

A resposta do caído na vergonha pode encontrar a trilha da reparação, configurada pelo empenho na afirmação ética do valor do humano, posto em xeque aos olhos do Outro na esfera pública e privada, mas, sobretudo, diante dos próprios olhos. Nesse plano é possível enfrentar os conflitos pela palavra, brigar e estabelecer acordos provisórios, articulando pensamentos singulares em processos de ação coletiva no exercício da política, na busca do possível que contempla a castração e a lei. Porém, se a vergonha toma a via da vingança ou do sacrifício e se converte no desejo arbitrário de esmagar quem humilhou, as consequências podem ser devastadoras.

 

Nos casos de atentado a vida perpetrado pelo Estado, assim como no extermínio genocida, se infiltra no corpo e no psiquismo dos que passam pela experiência, se instalando como herança inconsciente em sua descendência, o medo primordial ao outro como ameaça à própria existência, o que justifica eliminá-lo antes que o faça comigo. O horror da cultura de morte comum à guerra e ao superego melancólico nos solicita dar voz ao sofrimento que precisou ser escondido, buscando produzir deslocamentos da cena traumática pela possibilidade da palavra. Lembrar para esquecer, estabelecendo a memória dos fatos no registro da história, para que o sujeito elabore seu medo, seu ódio e sua culpa, trabalhando os lutos necessários para que haja um devir.

 

Quando pai e filha se despediram no dia da oitiva ele estava muito cansado: agora eu entrei para a história, declarou, recuperando a dignidade de sua experiência, após relatá-la aos representantes do Estado Brasileiro que finalmente assume responsabilidade na barbárie. Mediação simbólica que também permitiria à filha sair da prisão imaginária a que se havia condenado, fixada à posição infantil de cúmplice e testemunha silenciosa.

 

Hoje, a tragédia de Gaza repercute na família, atualizando traumas e intensificando conflitos que ameaçam os acordos que permitem o convívio. A dimensão fundamentalista eclode na intimidade, abalando as bases da saída civilizatória. Se lá não opera o interdito simbólico que pode deter o ato, aqui a violência se multiplica não deixando lugar para a diferença. O que re-produz a legitimação do assassinato, da lógica do extermínio que, mais do que pelo ódio, é engendrada pelo medo de que o outro me aniquile.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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