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Resumo
A partir de sua experiência pessoal, o autor faz uma reflexão psicanalítica sobre os traumas decorrentes da prisão e da tortura.


Palavras-chave
ditadura; autoritarismo; trauma; tortura; desamparo; sadismo; masoquismo.


Autor(es)
Sérgio Telles Telles
é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor.


Notas

1.        Folha de S. Paulo, 24 jun. 2005.

2.        R. Stoller, "Pain and passion, a psychoanalyst explores the world of S&M", p.?24: "Infelizmente, não tenho base sólida, apenas indicações, como a necessidade que todos temos de dominar os traumas e frustrações decorrentes dos ‘sádicos' da infância - nossos pais".

3.        M. e M. Viñar, Exílio e tortura, p.?52.

4.        No caso, a questão da liberdade de escolha é mais complexa, à medida que envolve a ideologia e suas dimensões irracionais inconscientes, com imenso poder de assujeitar aqueles que a adotam.

5.        M. e M. Viñar, op. cit., p.?147.

6.        Folha de S. Paulo, 26 jun. 2005.



Referências bibliográficas

Stoller R. (1991). Pain and passion, a psychoanalyst explores the world of S&M. New York/London: Plenum Press.

Viñar M.; Viñar M. (1992). Exílio e tortura. São Paulo: Escuta.





Abstract
From his own experience, the author produce a psychoanalytic reflection on trauma, prison and torture.


Keywords
dictatorship; authoritarianism; trauma; torture; helplessness; sadism; masochism

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 TEXTO

Sofridas reflexões

Painful reflections
Sérgio Telles Telles

Há momentos históricos nos quais o Estado é regido por leis de exceção, impostas pelo combate a inimigos internos ou externos. As questões sobre o que ou quem o Estado considera como inimigos e seu porquê é vasta e complexa, transcendendo meu objetivo no momento.

 

Nomeado o inimigo, contra ele o Estado inicia a ofensiva, exercendo seu poder para aniquilá-lo. Para tanto, é necessário conhecê-lo e assim aquilatar suas forças e debilidades. Necessita, pois, de informações.

 

É aí onde entra a tortura. Ela não é um ato impulsivo e irracional, um episódio isolado de violência exercida por policiais contra prisioneiros, ao arrepio da lei. É uma prática estabelecida, segue procedimentos técnicos claros e tem objetivos bem definidos - coletar informações que beneficiem o Estado na luta contra seus inimigos.

 

A tortura é praticada por equipes que se revezam no exercício de diferentes funções, só interrompendo-as quando convencidas de terem conseguido seus intentos. Isso significa que, durante o procedimento, os torturados estarão sozinhos, entregues a si mesmos, em crescente exaurimento, lutando contra uma máquina que se renova constante e implacavelmente.

 

As técnicas de tortura sabem que todo ser humano tem um limite de resistência e atingi-lo é seu objetivo precípuo e cuidadoso, pois é nesse momento que o torturador obtém a informação procurada ou se convence de que o torturado não a retém.

 

Quando o torturado cede, não o faz por identificar-se com o torturador ou por abdicar de suas convicções. É por reconhecer a realidade extrema na qual se encontra, defrontado que está com sua total impotência frente ao poderoso agressor.

 

Mortes podem acontecer durante a tortura. Isso ocorre quando a violência exercida pelos torturadores excede os limites da vítima, tendo ela fornecido ou não as informações procuradas.

 

A tortura não é uma abstrata parte do aparato clandestino do Estado. Ela se concretiza no agônico corpo a corpo entre torturado e torturador. Para exercer seu ofício, o torturador deve ter características psíquicas muitos específicas. Dificilmente alguém que não tenha fortes elementos sádicos em seu psiquismo poderia ocupar esse posto.

 

A tortura, assim, tem uma dupla face. Por um lado, é a maneira perversa pela qual o Estado obtém informações privilegiadas na luta contra aqueles que vê como seus inimigos. Por outro, é a forma pela qual o torturador goza sadicamente.

 

Não é difícil imaginar que o controle desse gozo é bastante problemático. Ele está sempre próximo de uma desmesura que pode custar a vida do torturado.

 

A rigor, o Estado não deseja a morte do torturado, ele quer - antes de tudo - a informação. Assim, o gozo do torturador pode ser um fator complicador para os objetivos do Estado, aumentando-lhe o ônus político da repressão. Mas são conhecidos episódios nos quais o Estado, sem se importar com tal ônus, eliminou pura e simplesmente os prisioneiros, criando a categoria dos "desaparecidos".

 

Durante a Ditadura Militar no Brasil, a tortura de presos políticos era corrente. Mas ainda hoje os mais desfavorecidos continuam sofrendo tais sevícias. Uma polícia despreparada não tem como obter confissões a não ser através da violência física. Mas é preciso diferençar a tortura policial - passível de punição se denunciada às autoridades - daquela exercida a mando das autoridades, como ocorre durante uma ditadura. Na primeira situação, ainda resta uma esperança. Na segunda, o torturado tem sua vida inteiramente à mercê dos humores do torturador, que sabe estar agindo dentro da mais completa impunidade.

 

O imaginário social reage à tortura de forma ambígua. Por um lado, exibe uma convencional e consciente objeção e abjeção a tal prática. Por outro, numa postura maniqueísta, trata a tortura como uma prova de fogo que atestaria o valor moral ou a fibra dos torturados, revelando-os como "heróis" ou "covardes".

 

Essa fantasia é manipulada pelos próprios torturadores, que acusam de "frouxas" e "delatoras" as pessoas que eles mesmos torturaram. Um exemplo disso são as acusações feitas pelo militar da reserva Lício Augusto Ribeiro em sessão solene da Câmara realizada pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), com o objetivo de difamar o deputado José Genuíno[1].

 

Isso é um desplante, um absurdo. Fica ainda mais inconcebível quando companheiros do torturado encampam tal posição, discriminando aqueles que, sob tortura, forneceram as informações buscadas pelos órgãos de segurança.

 

Como entender tal distorção? Como compreender essa situação do imaginário coletivo que, de certa forma, quase absolve o torturador e julga o torturado?

 

É claro que a tortura provoca profundas ressonâncias inconscientes no próprio torturado e no imaginário coletivo. Em primeiro lugar, por concretizar diretamente figuras de sadomasoquismo, importante expressão das pulsões eróticas e tanáticas. O infligir dor e o sofrer dor podem ser fontes de extremado prazer. Elementos de sadismo e masoquismo estão presentes na maioria das práticas sexuais, na medida em que colocam em jogo princípios básicos de atividade e passividade, domínio e submissão, controle e entrega. Além do mais, o sadomasoquismo e a tortura se prestam com facilidade ao imaginário em torno da cena primária - a forma como a criança fantasia o coito entre os pais, supostamente realizado em meio a violências e agressões. A tortura também se presta como representação da temida castração, ficando o torturado na posição de castrado e o torturador como o invencível portador do falo.

 

Assim, podemos crer que a tortura evoca fantasias sadomasoquistas ligadas à cena primária e à castração. Mas essas fantasias, por sua vez, remetem a algo muito mais arcaico e temido: a experiência de desamparo, de estar totalmente à mercê de um outro todo-poderoso - uma das vivências mais primitivas e assustadoras do ser humano enquanto bebê inerme frente à onipotente mãe.

 

Se na tortura é encenada uma arcaica relação dual na qual o torturado fica no papel do indefeso, o torturador ocupa o lugar complementar de figura má todo-poderosa. É o que se depreende do filme "A Morte e a Donzela", de Roman Polanski, baseado em peça de Ariel Dorfman. O torturador Miranda, ao ser desmascarado, confessa o gozo que o dominava durante a tortura, gozo advindo do sentimento de onipotência decorrente do absoluto domínio sobre o desvalimento do outro, algo completamente desvinculado das questões político-ideológicas que sustentavam o procedimento. Dessa forma fica claro que a motivação do Estado (obtenção de informação) se dissocia da motivação inconsciente do torturador (gozo com o controle onipotente do outro). Isso reforça a ideia de que, na tortura, o Estado manipula as condições psíquicas do torturador, seu sadismo, para atingir seus próprios objetivos.

 

A tortura evoca antigas e reprimidas situações da infância, naquele momento quando éramos vítimas do "sadismo" de nossos pais[2].

 

Por concretizar na realidade uma situação que evoca as vivências mais arcaicas do desamparo infantil, a tortura desestrutura psicologicamente o torturado, levando-o a posições psíquicas muito regredidas e primitivas. Por esse motivo, qualquer postulação de resistência e heroísmo nesse momento é despropositada.

 

A atualização, no imaginário coletivo, dessas vivências arcaicas do desamparo poderia explicar uma identificação com o torturador e um desprezo pelo torturado.

 

É menos angustiante fazer uma "identificação com o agressor", identificar-se com a força e a onipotência - características do temido pai fálico castrador ou da mãe onipotente portadora do seio mau persecutório que promove o desamparo - representadas pelo torturador, do que se identificar com o torturado - totalmente impotente, frágil, incapaz de se defender.

 

No torturado, fica projetada a vivência insuportável do desamparo, da submissão mais radical ao outro, da perda de qualquer autonomia ou iniciativa, o estar completamente à mercê dos acontecimentos, o ser castrado.

Diz Viñar:

Quer dizer que, além daquilo que é objetivamente horrível na tortura, os relatos que daí emanam lhe conferem um lugar limite entre o real e o fantástico, um suspense e uma incerteza que são a mistura do delírio e dos acontecimentos reais. Ponto de intersecção que Freud privilegia para a emergência da inquietante estranheza (Unheimlich). Ao lado do terrível real, a tortura é uma tela projetiva que, como no fantasma de "Uma criança é espancada", reúne a emergência do fantasma sádico com a satisfação voyerística e masturbatória[3].

 

Os torturados, por sua vez, emergem da tortura - onde, além do sofrimento físico, reviveram o desamparo - com a autoestima destruída, o narcisismo estraçalhado, condenando-se por terem tido um comportamento distante dos exigentes padrões ideais e superegoicos que compartilhavam com o imaginário social. Como não agiram como grandes heróis, sentem-se como desprezíveis covardes. Desta maneira, muitas vezes e sem se aperceberem, internalizam a tortura: fica o ego sofrendo ininterruptamente o aguilhão da culpa e da vergonha empunhado pelo ideal do ego.

 

A fantasia coletiva sobre tortura transparece na forma como usa a linguagem. É comum se ouvir que um torturado teria "delatado", "denunciado", "dedurado" amigos e companheiros.

 

É uma forma sutilmente perversa de se referir à situação, pois "delatar", "denunciar" e "dedurar" (um neologismo da ditadura, derivado do "dedo duro", aquele que aponta e denuncia) são verbos de voz ativa. Expressam ações, atos, deliberações que o sujeito executa ativamente, por iniciativa própria. Jamais deveriam ser usados para qualquer abordagem da tortura.

 

Qualquer informação que o torturado forneça, ele não o faz espontaneamente, gratuitamente, deliberadamente, voluntariamente. Essa informação lhe foi extorquida, sacada, extraída dentro de uma situação na qual a manipulação psicológica, a dor física e o risco de vida estão agudamente em jogo. 

 

Assim, é fundamental discriminar entre a informação obtida pelo Estado através da delação e da traição conscientes e deliberadas, voluntárias, realizadas por informantes movidos por interesses venais ou ideológicos, da informação obtida através da tortura.

 

Se é importante analisar a pecha de covardia que a fantasia coletiva pode atribuir ao torturado, o mesmo se dá com o outro lado da moeda, a aura de herói.

 

A psicanálise sabe que os registros históricos, a memória, os arquivos - quer sejam pessoais ou sociais - não devem ser tomados ao pé da letra. Todos eles sofreram processos de revisão, repressão, negação, idealização. Todos eles exigem um longo e cuidadoso trabalho de análise e desconstrução, como dizia Derrida, para que se desvele o que se esconde atrás das mitificações e mistificações.

 

Não se pode negar que efetivamente há pessoas capazes de dar a vida por uma ideia, por um ideal. A complexidade desse gesto se evidencia na forma controvertida pela qual é avaliado: considerado "heroico" pelos que comungam com a causa daquele que se imola, tido como "terrorista e louco" por seus adversários. Um exemplo incontornável são os ativistas islâmicos, que adquiriram grande importância depois do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001.

 

É necessário fazer uma discriminação entre a decisão de dar a vida por uma causa - um "terrorista/herói" suicida que resolve explodir-se com uma bomba, por exemplo - e a decisão de não ceder informações sob tortura. A primeira situação é uma deliberação ativa, na qual o sujeito detém o poder de levar até o fim sua decisão[4]. Na tortura, como já vimos, o sujeito está totalmente submetido, não tem poder decisório nenhum, nem mesmo o de se calar, pois a direta e massiva manipulação física e mental da qual é vítima força a entrada em campo de fatores emocionais que impossibilitam qualquer decisão autônoma. A dor física, o pânico real e fantasmático, a ameaça iminente de morte, desestabilizam-no completamente, fazendo-o regredir a estágios psíquicos muito arcaicos. Ele já não é mais dono de si mesmo.

 

A psicanálise sabe quão pouco confiável é a memória, sujeita que é a interferências de muitos desejos conscientes e inconscientes.

 

Não poderia ser diferente com os relatos de resistência à tortura. Ao evocarem experiências traumáticas de fortíssimo impacto emocional, os relatos dificilmente poderiam ser a expressão fática da realidade. Elas estão permeadas - necessária e inevitavelmente - pela fantasia, pela realização de desejos, pela negação, pela denegação. São modeladas pelas pressões internas do superego e do ideal do ego, além das pressões externas, os ideais sociais, os compromissos políticos com a militância, etc.

 

 Essa postulação não implica demérito algum para aqueles que passaram por tão radical experiência. Pelo contrário, visa proporcionar uma acolhida mais realística e solidária para tão extremado sofrimento, possibilitando ao torturado melhores condições de elaborar seu trauma, sem terem de sustentar penosas ficções para contentar exigências internas e externas.

 

Não é outra coisa o que diz Viñar:

Se não devemos negligenciar nem apagar as consequências históricas e políticas da distância ética entre o resistente e o colaborador, entre herói e traidor, convém não permanecer aí, a um nível manifesto. Porque nossa posição frente à miséria humana não é a mesma no âmbito da consulta e da vida, mas sobretudo numa perspectiva mais operacional e pragmática, porque a alternativa maniqueísta entre herói e traidor é própria da psicologia do rumor; na nossa prática clínica, a glória e a fragilidade do comportamento consciente e da fantasmática são mais matizados e contraditórios. O martírio apaga, ao menos parcialmente, os limites do sujeito lúcido e consciente. É na vizinhança entre o onirismo e a confusão que se fazem as escolhas (esse também não é um bom termo aqui) e fabricam-se as lembranças. Não é pois evidente traçar os limites entre o segredo e a confissão, entre o que calamos e o que cedemos na realidade consciente e na realidade fantasmática. Do mesmo modo, a elaboração da experiência não acontece na reles transparência do testemunho. Atravessa-se um labirinto de glória, miséria e humilhação, nos fundamentos do ser. A persistência, a insistência do dilema do herói e do traidor ultrapassa a aposta da verdade histórica. Esta alternativa, veiculada pelo rumor, exprime estruturas mais essenciais. Ela extrai sua importância do fato de que ela permite representar e figurar uma parte do impensável do terror. Tal como o protagonista e o coro da tragédia grega, o sujeito e seu meio dramatizam uma figuração da realidade onde se desvelam os pontos fixos da estrutura. No interior da estrutura, curvar-se ou resistir são polos necessários: é a necessidade de distingui-los e dominá-los pela repetição que dá sua força às repercussões do traumático[5].

 

  •   

 

Embora até aqui tenha tentado falar com a neutralidade que o tema possibilita, a tortura é um assunto que me toca muito de perto.

 

Explico melhor. No segundo semestre de 1972, fui preso na OBAN (Operação Bandeirantes), em São Paulo: não tinha nenhuma militância política naquele momento. Tinha, sim, amigos envolvidos e intensamente procurados. Minha prisão visava recolher informações que permitissem sua captura. Para a obtenção dessas informações fui espancado, levei choques elétricos, fui colocado em solitária, fui ameaçado de morte (com um revólver no ouvido) e de sofrer represálias contra meus familiares. Aguentei três dias sem dizer o pouco que sabia. No quarto dia, falei. A consequência imediata foi a prisão de minha mulher. Fiquei preso por 16 dias intermináveis, ela por 12 dias.

 

Para mim o uso da palavra "tortura" é complicado. Ora ela me soa esvaziada de sentido, insuficiente para exprimir o terror e sofrimento pelos quais passei. Ora parece excessiva, pomposa, grandiloquente demais, a ponto de me fazer pensar - será que aquilo que lá vivi era a tal "tortura", eu que sequer passei pelo pau de arara?

 

Talvez a palavra "tortura", sob o prisma daquele que a sofreu será sempre inadequada, insuficiente, incapaz de abranger uma realidade inapreensível.

 

A partir do que vivi, penso que ser torturado é algo da ordem da catástrofe. Como disse antes, é estar absolutamente à mercê de um Outro maligno, com inquestionáveis poderes de vida e de morte sobre você. É a concretização negativa mais perfeita do Hilflosichkeit, é estar no Estado de Desamparo infantil descrito por Freud, tendo um adulto (uma mãe) louco e assassino para "cuidar" de você.

 

Talvez o pesadelo recorrente que tinha na prisão, nos momentos em que conseguia dormir, ilustre bem essa situação. Fugindo de um grande perigo, tentava escalar as paredes de lama do imenso buraco negro onde estava encurralado. Era uma tarefa quase impossível, pois não tinha ponto de apoio firme e a todo momento escorregava para baixo, tendo de começar tudo de novo. Quando, graças a um extraordinário esforço, conseguia subir e me aproximar das bordas que levavam para a superfície, mulheres velhas, imundas, esfarrapadas, esqueléticas, criaturas que viveriam naquele buraco, me puxavam pelos calcanhares e, aterrorizado, voltava à estaca zero.

 

Na prisão, vi-me coagido a fornecer as informações que possuía. Por sorte, era pouco o que sabia e acrescentei irrelevâncias ao que já era conhecido pelos órgãos de segurança. As informações que tinha não produziram consequências desastrosas ou fatais. Os amigos procurados não foram presos. É verdade que outros companheiros e conhecidos, com o mesmo tipo de envolvimento que tínhamos, eu e minha mulher, foram detidos a partir de meu depoimento. Ao que sei, sofreram a violência da prisão, o pavor de interrogatórios truculentos e tiveram uma detenção mais curta que a minha, o que não é pouco.

 

Se estando tão pouco envolvido com a militância política e sabendo que as informações que cedi sob tortura não provocaram efeitos dramáticos irreversíveis, mesmo assim esse episódio teve um alto custo emocional para mim, imagino como não é com aqueles que não tiveram a mesma sorte que eu. Falo dos que sabiam muito e sabiam coisas importantes, informações que foram obrigados a fornecer desencadeando efeitos calamitosos e fatais.

 

A declaração da então Ministra Dilma Rousseff ilustra perfeitamente minhas conjecturas, não só quanto à internalização das acusações fantasmáticas como ao reconhecimento da completa vulnerabilidade sentida pelo torturado:

 

Todos nós somos extremamente frágeis à tortura, que é o nível da destruição humana. Um cara que foi obrigado a renunciar ao que ele pensava, ao que ele queria, não merece crítica. Fazê-la seria aceitar que a tortura tivesse dado certo. E não aceito que a tortura deu certo, eu não aceito a lógica dela. Eu estou falando dos que abriram a boca. É imperdoável a tortura ter obrigado uma porção de gente a trair os seus próprios ideais. É imperdoável terem roubado a alma deles. Não falo dos que aguentaram e piraram um pouco, como a Dodora [Maria Auxiliadora Lara Barcelos, da VAR-Palmares, presa e torturada, que depois suicidou-se na Alemanha]. É dos que sobreviveram e que carregam esse fardo. Eu tenho essa culpa, todo mundo tem essa culpa, porque diante da tortura ninguém é herói. É um troço que é de uma dor inimaginável. Eu vi gente sofrer feito um cão, depois, mais do que na tortura. É consequência da tortura, da hora que a pessoa falou, o sentimento de culpa que o torturador inflige. Porque a tortura é a dor física, e acabou. Mas aquele saco ela carrega e vai carregando e vai carregando, e é complicadíssima essa relação de culpa[6].

 

Gostaria que minhas considerações pudessem ajudar especialmente a essas pessoas, dando-lhes força para não se deixarem esmagar pelas implacáveis exigências superegoicas ou do ideal do ego.

 

Foi duro o processo de recompor-me, sair da paranoia e do sentimento de culpa, da ferida narcísica - sentimentos característicos de todos os sobreviventes, como mostra a literatura que aborda o assunto.

 

Essa recuperação foi ainda mais difícil, pois, apesar de não termos sido oficialmente condenados, já que nosso envolvimento político "subversivo" era praticamente inexistente, recebi a penalidade de comparecer semanalmente, durante um ano, à sede da OBAN, para assinar o que era chamado de "ménage" (nunca soube o significado exato da palavra ou mesmo sua grafia; alguém me sugeriu que seria do francês, "ménage" - limpeza). Isso significava ter de ir semanalmente à OBAN assinar um papel para provar que não tinha fugido do país e declarar não ter conhecimento de nenhuma atividade "subversiva".

 

Não é difícil imaginar o que representavam para mim essas idas semanais à portaria da OBAN.

 

Sei, é claro, de outros que passaram por sofrimentos físicos muito maiores do que aqueles que a mim foram dispensados, além de terem ficado longamente encarcerados.

 

Em janeiro de 1973, minha mulher e eu fomos novamente detidos em Fortaleza, onde, por mera coincidência, estávamos de férias. Ao serem informados de nossa prisão anterior em São Paulo, após prestar novos depoimentos, fomos liberados.

 

Relembrando tudo isso, revejo a dimensão do quanto tudo isso me custou. Anos de medo, angústia, culpa, paranoia. Quanto desassossego, quanta preocupação com nosso primeiro filho, que nasceria nesse clima de total insegurança.

 

De qualquer modo, com nosso mútuo amparo e a indispensável ajuda de meu analista na ocasião, Dr. Arlindo Cunha, já falecido, sobrevivi. Sobrevivemos.

 

 Um pouco dessa minha vivência, num esforço sublimatório, deu origem a um conto meu, "O décimo dia", publicado em meu primeiro livro, Mergulhador de Acapulco.

 

Ao contrário do que se poderia supor, não tenho lembranças muito vívidas daqueles momentos. Rostos, vozes, sons, gritos, situações, tudo se mistura e se condensa num forte sentimento de angústia que, apesar de ter-se atenuado com o tempo, persiste até hoje. Ainda é difícil falar sobre isso. Cada vez que esse assunto ameaça voltar à baila, sinto-me incomodado e minha primeira reação é de fuga.

 

Em 2005, participando de um grupo na internet formado por colegas médicos, levantou-se o tema da ditadura. O mote era: "quais são suas lembranças daquele tempo?". Para minha própria surpresa, me vi motivado a escrever sobre o que vivi naquela ocasião, coisa que até então era impossível fazer. Penso que essa decisão evidenciava que um longo trabalho interno de elaboração psíquica tinha chegado a um novo estágio.

 

O mesmo ocorreu agora, quando da proposta da nossa Percurso de fazer uma reflexão psicanalítica sobre os 50 anos do golpe de 1964. Retomei o texto escrito em 2005, no qual fiz várias alterações, mantendo deliberadamente sua estrutura um tanto peculiar, talvez reveladora de quão perturbadora foi e continua sendo minha aproximação com esse tema. Para escrevê-lo não procurei bibliografia. As raras citações - como o livro de Viñar e as notícias de jornais - praticamente caíram-me nas mãos enquanto escrevia o artigo. As interpretações sobre tortura, torturado e torturador são tentativas de colocar em termos teóricos a experiência que vivi diretamente.

 

Não sei se algum dia retornarei ao assunto. A disposição para escrever - sobre esse assunto ou qualquer outro - não depende da volição consciente e sim dos subterrâneos movimentos do inconsciente.

 

A tortura, como o exílio, a imigração, são situações políticas sociais que têm relevância para a psicanálise, à medida que enfatizam a importância da realidade externa na clínica do trauma. O mesmo vale para a pobreza, a miséria, a exclusão social, a condição de pária - tão frequentes em largas partes do mundo de hoje. Sem falar na real loucura presente na família, instalada por pais incapazes de exercer suas funções paterna e materna.

 

Passados todos esses anos, está claro para mim que a tortura não é a única violência que o Estado exerce sobre o cidadão. É, sem dúvida, a mais espetacular, a mais visível e chocante. A lenta destruição de gerações pela fome e pela ignorância, a instituição da corrupção, a falta de transparência no manejo da coisa pública, a manipulação da lei são práticas que não têm a dramaticidade da tortura, mas que são tão ou mais danosas que ela.

 

Acredito que não é possível avançar numa reflexão mais aprofundada sobre o autoritarismo ditatorial, do qual a tortura é decorrência, sem enfrentar psicanaliticamente duas questões de magna grandeza - as ideologias e as estruturas de poder. No que diz respeito às ideologias, como a psicanálise poderia melhor lidar com esses sistemas de crenças, verdadeiros delírios socialmente compartilhados? Quanto ao segundo ponto, a psicanálise nos ensina que, para nos constituirmos como sujeitos, temos de nos submeter ao poder inicial da mãe e depois ao do pai, poderes que não podem abdicar da violência para romper nossa onipotência narcísica e passar-nos pela castração simbólica. Esses poderes sofridos diretamente na infância tomam depois a face mais distanciada da Lei. Terá sido tão traumática essa experiência que nunca a superamos e dela fazemos a base de nossa vivência política, oferecendo-nos apenas duas saídas insatisfatórias: para uma minoria, a identificação com o pai onipotente da horda primitiva, o que permite o exercício mais deslavado do poder; para a maioria, a submissão masoquista a políticos a quem delega de forma acrítica o poder, como crianças frente a um pai poderoso? Pode a psicanálise propor saídas para esse impasse? Será possível uma verdadeira democracia sem que essas questões sejam reconhecidas e trabalhadas? Não é esse um passo imprescindível na construção da democracia, esse processo em perene por vir, como dizia Derrida?


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