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Resumo
O texto versa sobre as funções do analista e dos pais na psicanálise com crianças. Parte do caso Hans para assinalar os lugares aí ocupados por Freud e pelo pai de Hans. A seguir, recorre às ideias de Winnicott destacando a necessidade da existência de um espaço transicional no qual a criança possa sustentar suas conquistas. Prossegue com a apresentação de um caso clínico para destacar as funções que devem ser exercidas, em transferência, pelo analista.


Palavras-chave
clínica psicanalítica; clínica infantil; função do analista; funções paternas.


Autor(es)
Maria Vitória Campos Mamede Maia
é prof. adjunto da UFRJ, doutora em Psicologia Clínica, mestre em Literatura Brasileira, psicopedagoga clínica Uniceub- Ceperej, pesquisadora associada do Laboratório de Psicanálise da UFRP. Autora de Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade (Vetor, 2007).

Nadja Nara Barbosa Pinheiro
é prof. adjunto da graduação e do mestrado em Psicologia da UFPR doutora em Psicologia Clínica, coordenadora do Laboratório de Psicanálise (UFPR).


Notas

1 S. Freud, (1909) “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”.

2 Ver M. V. Maia, “Violência na infância, na adolescência e aprendizagem”.

3 Ver M.V. Maia, “O adolescente no amplificador da guitarra social: de onde advém a agressividade do adolescente contemporâneo?”.

4 J. Outeiral, “Adolescência crônica: quando é difícil se tornar adulto”.

5 M. V. Maia, op. cit.

6 J. Outeiral, op. cit.

7 D.W. Winnicott, “O aprendizado infantil”.

8 D.W. Winnicott, op. cit, p. 114.

9 D.W. Winnicott, op. cit. p. 115.

10 D.W. Winnicott, op. cit., p. 115.

11 D.W. Winnicott, op. cit., p. 115.

12 D.W. Winnicott, op. cit., p. 116.

13 M.V. Maia, Rios sem discursos: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade.

14 D.W. Winnicott, Privação e delinquência.

15 D.W. Winnicott, O brincar e a realidade.

16 Ver, também, M.V. Maia, Rios sem discursos…

17 D.W.Winnicott, “A tendência antissocial”, in Da pediatria à psicanálise, p. 416.

18 D.W. Winnicott, “Os objetivos do tratamento psicanalítico”, in O ambiente e os processos de maturação, p. 155.



Referências bibliográficas

Freud S. (1909/1976). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Maia M.V.C. (2007). Rios sem discursos: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade. São Paulo: Vetor.

_____. (2009a). O adolescente no amplificador da guitarra social: de onde advém a agressividade do adolescente contemporâneo? Mimeo.

_____. (20079b). Violência na infância, na adolescência e aprendizagem. Revista Polêmica, v. 8.

Outeiral J. (2009). Adolescência crônica: quando é difícil se tornar adulto. (Palestra proferida no xx Congresso Nacional da abenepi – Desenvolvimento da criança na atualidade – da filosofia às evidências), Campinas, jun. Winnicott,

D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

_____. (1982). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas.

_____. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.

_____. (1996). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.

_____. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
This paper focuses on the functions of the analyst in the practice of children. It starts off from the stoory of little Hans, painting out the places occupied by Freud and by the boy’s father; them it proceeds to Winnicoott’s notion of a transitional space, which allows the child to sustainits conquests. The last section presents a clinical case, in order to show as clearly as posible the functions ascribed to the analyst in the ambience of transference.


Keywords
psychoanalist practice with children; transference; paternal functions; functions of the analyst.

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 TEXTO

Uma torre de Babel a ser decifrada…

onde fica o lugar do analista e dos pais num trabalho clínico com crianças expatriadas?


A Babel tower to be decoded…
Maria Vitória Campos Mamede Maia
Nadja Nara Barbosa Pinheiro

Introdução

O desenvolvimento de processos analíticos com crianças exige do analista um posicionamento clínico específico. Diferentemente do que ocorre na clínica com adultos, em que os personagens importantes de suas vidas nos chegam por meio das narrativas discursivas, sonhos e fantasias, na clínica infantil estes adentram, literalmente e corporalmente, em nossos consultórios. E com eles temos que lidar, conversar, indagar, interpretar, perceber posicionamentos, desejos inconscientes, tramas familiares, composições, arranjos etc., objetivando entender, nessa configuração singular, o que está dificultando o desenvolvimento afetivo de nossos pequenos pacientes.

Nossa experiência, ao longo dos anos, no atendimento com crianças, vem nos indicando uma particularidade interessante: uma crescente dificuldade dos pais em se posicionar diante de seus filhos de forma a poder, desse lugar, exercer suas funções facilitadoras ao crescimento e amadurecimento emocional de seus filhos. Movimento que nos obriga, como analistas, a assumir esse lugar que nos é destinado, via transferência, e, a partir daí, direcionar nossos esforços clínicos no sentido de ofertar aos pais a possibilidade de reassumir suas posições perante seus filhos e exercer suas funções parentais a contento. Tarefa que não é fácil e que nos exige paciência, cuidado e, sobretudo, criatividade. Criatividade que, no sentido winnicottiano do termo, significa aceitar abrir mão de alguns aportes clínicos consagrados e nos lançar ao inusitado de novas configurações em termos de técnica e de setting.

Nossa proposta, no presente artigo, é a de refletir sobre essas questões pertinentes à clínica psicanalítica com crianças, centralizando nossas preocupações em torno do lugar ocupado pelos pais e pelo analista, e sobre o que tais configurações colocam em jogo algo da técnica e de setting. Para tal iniciamos nossas argumentações pelo primeiro paciente/criança da história da psicanálise, o Pequeno Hans [1], que é tomado como paradigma de atendimento infantil naquilo que Freud já nos adianta interessantes questões sobre os lugares ocupados por ele e pelo pai de Hans, tanto no espaço clínico quanto no processo de desenvolvimento afetivo do paciente. Em seguida, algumas contribuições teórico/ clínicas de Winnicott darão suporte à apresentação de um caso clínico, conduzido por uma das autoras do artigo, que nos parece ilustrar de forma princeps as nossas tematizações.

Hans, seu pai e Freud: posições, funções e construções. Vias para o crescimento

A clínica psicanalítica freudiana é conhecida por ter sido efetuada quase que exclusivamente com pacientes neuróticos e adultos. Hans, então, seria uma bela e surpreendente exceção. Freud traz em seu relato uma rara oportunidade de observarmos como o autor conduziria um tratamento com crianças. Porém, de forma curiosa, observamos na descrição do caso clínico dessa criança uma particularidade interessante: seu pai, e não Freud, foi o verdadeiro analista. A ele cabia fazer as intervenções, as interpretações, os assinalamentos. Nesse caso, a Freud coube a função de supervisor. Aquele para quem o pai de Hans se dirigia com o intuito de discutir o caso e receber auxílio em sua condução. O interessante é lermos em Freud que o fato de a análise ser conduzida pelo pai da criança traria vantagens incontestáveis, pois o lugar paterno o asseguraria a autoridade necessária à instalação da transferência, possibilitando o transcurso do tratamento.

Queremos aqui descentrar essa assertiva freudiana. Em nossa opinião tal posicionamento paterno confundiu o crescimento da criança e não permitiu, na verdade, o desdobramento de seus conflitos pelo viés da neurose, mas, ao contrário, permitiu que, diante do conflito edipiano que se apresentava a Hans, a saída possível fosse a eclosão da angústia e da fobia. Ao deixar desocupado o lugar de pai e se alocar no de analista, o pai de Hans abdicou de sua função. Abdicou de ser aquele que insere a Lei e a castração, separando o filho de sua mãe e permitindo com isso que ele venha a se tornar um sujeito singular, autor de suas próprias conquistas e criações.

A trajetória clínica de Hans nos permite perceber inúmeras facetas importantes e interessantes. Hans constrói com sua mãe uma intensa e rica relação amorosa. Em termos winnicottianos, podemos suspeitar que tal relação fundou um espaço transicional igualmente rico no interior do qual Hans pôde ir construindo seus objetos internos e sua realidade compartilhada. Sabemos, pelo relato do caso, que Hans era uma criança esperta, conversada, bem disposto a promover brincadeiras com amiguinhos e amiguinhas. Nesse espaço, o vemos brincar e compartilhar afetos contraditórios entre o amor e o ódio, a competição e a camaradagem, a curiosidade e a vergonha sexual etc. Enfim, vemos Hans se desenvolvendo de forma criativa e intensa.

Vemos, igualmente, que sua trajetória saudável se vê interrompida no momento em que, ao ingressar no conflito edipiano, seu pai não sustenta seu lugar de interditor. Ao não sustentar a inserção da Lei, ao não fornecer o limite necessário ao redor do qual o desejo se organiza em termos conscientes e inconscientes, o pai de Hans o deixa no tormento e na errância. A angústia nos parece ser, aqui, a alternativa possível que paralisa a busca de um saber que não deve mesmo ser sabido: a possibilidade de se efetivar os dois desejos incestuosos e proibidos, casar com a mãe e matar o pai. A angústia precipitada em Hans nos parece significar a resposta possível ao impossível de se saber caso o recalque não se estabeleça. E para que este se estabeleça, cabe ao pai exercer sua função.

Porém, o interessante neste caso clássico é que coube a Freud exercer a função paterna. Ao ser situado, pelo pai de Hans, como aquele que, acima dele, sabia como ajudar a criança a sair de seu conflito e medo, seu pai permite que Hans instale Freud no lugar do Pai. Um lugar transferencialmente ocupado e para o qual Hans se dirige em busca de respostas: o doutor sabe, diz ele ao próprio pai. Ao se posicionar em sua função de analista, Freud descentra o poder paterno e insere os dois, Hans e seu pai, no interior da castração, no interior da Lei, no interior da lógica fálica que sustenta o recalque e a saída neurótica. Com essa interdição, Hans retoma sua criatividade estagnada utilizando-se de inúmeras fantasias, a das girafas, a do bombeiro, a da banheira, culminando espetacularmente com sua última fantasia: casar com sua mãe, ter filhos com ela e ao pai… este deveria casar-se com a mãe dele e pronto. Se Freud percebe nesse movimento uma saída neurótica para o conflito edipiano, nós vemos, igualmente, que aqui Hans retoma a sua potência criativa. Aquela que permite que, via Freud, sustentado pelo poder paterno, ele se aproxime, sem temer, sem se angustiar e sem se paralisar de seus desejos mais íntimos. Abre-se aqui novo espaço para a construção do saber.

Esse caso levanta, a nosso ver, questões importantes quanto às funções a serem exercidas no atendimento clínico de uma criança: continência e sobrevivência do analista/terapeuta. Para que essas funções sejam exercidas, cabe ao analista discernir, na transferência, o lugar que ele está ocupando na dinâmica psíquica daquela criança. Igualmente é nosso trabalho dar aos pais continência em suas angústias e fazê-los retomar o seu lugar de potência.

Os pais nos chegam desvitalizados e fragilizados. Não conseguem exercer plenamente a função paterna. Muitas vezes confundidos com seus filhos em seus sintomas, esses pais nos apresentam seus filhos para que cuidemos, quando muitas vezes, senão na maioria, principalmente em uma clínica com crianças, estes são somente o veículo de um pedido maior de entendimento: entendimento da dinâmica da família como um esquema social que funcione, como diria Winnicott. A família nos chega fragmentada, dividida e muitas vezes confusa. Mas, sabemos que há um sofrimento e por isso nos procuram. Sabemos que há queixas que nos são explicitadas. Sabemos que há uma demanda que nos é colocada em nossos colos junto com essa criança que recebemos. Nem sempre devemos acolher a demanda que nos é endereçada, mas, é preciso ouvir para saber o que fazer com tudo que, de repente, nos é derramado, despejado e pedido.

A importância de um espaço de pertencimento: a infância excluída

Atender famílias expatriadas marca necessariamente atender em um tempo diferente, em uma situação diferente, e quase sempre em uma língua diferente da nossa. Acolher crianças expatriadas é lidar com a construção de um código de entendimento, já que a língua pátria dessas crianças normalmente não é a que falamos e nem é o inglês – língua principal de comunicação entre elas nas escolas bilíngues que frequentam quando chegam ao Brasil.

Elas são pequenas, passaram por muitos lugares. Na maioria das vezes um ano ou ano e meio em cada lugar. A referência de pátria, de cidadania, de continuidade, de vínculo é diferente das crianças que atendemos no nosso dia a dia clínico. Não há pátria, o Brasil é mais um lugar pelo qual eles estão passando. Não há cidadania, eles não são brasileiros e muitas vezes nasceram em algum país que não os dos pais. Não há continuidade dos vínculos, na maioria das vezes o que ouvimos é: – não tenho amigos por aqui. Tentam se adaptar ao espaço escolar e social, mas, muitas vezes, a angústia os impede de se adaptar, até porque muitos estão sendo alfabetizados em inglês, mas, em casa, falam outra língua, ou mais duas línguas, uma paterna e outra materna. Sabem, por experiência de vida na pouca vida vivida, que hoje estão aqui, mas que logo não estarão e, assim, temem se mostrar demais, falar ou gostar de alguém – não confiam muito naqueles que os circundam… Motoristas, babás, cozinheiras, além dos pais, habitam o universo dessas crianças – têm muitos cuidadores, todos especialistas, escolhidos muitas vezes pelo trabalho do pai, assim como acontece com a escola e com a casa na qual habitam. É frequente o pai viajar sempre e ficar a mãe no encargo do cuidado de muitas coisas, como gerenciar os empregados, lidar com a escola, mas, como os filhos, essas mães estão sós nessa empreitada. Estranham… quase tudo, já que “tudo onde eu vivia é diferente, aqui as coisas são mais liberais, são mais…”. Pedem-nos referenciais de conduta, de forma de analisar o que os filhos, em uma vivência mais estreita com os colegas (em sua maioria estrangeiros, mas igualmente muitos brasileiros), aprendem e querem passar a fazer ou ter como referência de viver na escola (sim, na escola, porque o fora da escola é o estar em casa). Eles vivem na escola, todos em período integral e dentro dela ainda fazem todas as atividades de esporte, de recreação e de estudo. A referência de vínculo de pertencimento é a ambiência escolar necessariamente. Quando se mudam é a escola que continua, pelo nome e método com eles e com as famílias. Elas são a escola x ou y.

Com uma agenda de executivos, igual à dos pais, quando chegam em casa estão exaustos. O pai chega cansado e a mãe, igualmente cansada, não tem, muitas vezes, espaço para brincar com seu filho. São crianças que não têm infância na maioria das vezes, tal é a falta de tempo para poder simplesmente brincar ou fazer nada [2].

Hoje em dia sabemos que a infância, como fase de desenvolvimento, está passando por transformações. Há um eclipse acontecendo e muitos de nós não o percebemos. Hoje, crianças com 8 anos já são consideradas adolescentes precoces. A adolescência precoce já é aceita por muitos teóricos e igualmente pelos pais e professores, uma vez que aos 8 /9 já achamos normal crianças pintarem as unhas, fazerem chapinha, irem para academia, tomarem remédios para emagrecer, para crescer, para hiperatividade, para déficit de atenção. Grandes consumidores de tudo, roupa, brinquedos eletrônicos e remédios, os adolescentes precoces estão sempre sendo incensados pelos seus pais e competem com seus pares pela popularidade e pela aparência mais fashion do momento [3]. Como nos diz Outeiral [4], essas crianças-adolescentes vivem o isolamento e, no fundo da sala de aula, conversam com os amigos. Ao conversarem e não prestarem atenção, o que se rotula na escola é a existência de uma síndrome de déficit de atenção e hiperatividade. Mas o que temos com certeza é um déficit de atenção parental a essa criança com agenda de adulto, com olhar sobre ele de ser um adolescente, esquecendo-se de que é uma criança com necessidades de criança; em outras palavras: ter tempo para brincar de ser, sem ter de ser nada ainda [5].

Segundo Outeiral [6], a palavra brincar, dentre muitos significados, vem do latim vínculo, ou seja, pelo brincar se criam vínculos. Se isso não ocorre, o que poderá advir é a violência e a agressividade como formas de comunicação. Hoje em dia o prazer está no comprar o brinquedo, e, logo em seguida, o tédio e o abandono da novidade. Ele, rapidamente, perde seu caráter de novidade e depois, logicamente, outro brinquedo novo…

Diante de crianças-adolescentes, diante de crianças expatriadas, acreditamos que o que lhes marca e lhes falta é a existência real de um ambiente facilitador e todos os desdobramentos que essa existência faz existir na vida delas. Winnicott [7], em “O aprendizado infantil”, marca com ênfase que a característica essencial de um ambiente facilitador é requerer uma qualidade humana e não uma perfeição mecânica. O possuir coisas recorta um espaço de posse mecânica; a nosso ver, não há prazer na descoberta e no brincar, pois logo advêm o tédio e a necessidade de troca. A família deveria ser “uma grande área de débito não reconhecido, que não é débito algum. Ninguém deve coisa alguma, mas ninguém atingiria a maturidade estável quando adulto se alguém não tivesse se encarregado dele ou dela nas etapas iniciais” [8]. No entanto, o que vemos, nas famílias, é a existência de muitos débitos, poucos créditos… é a existência de pais fragilizados pela ausência, pela não permanência em cidades, em países, culpados pelo desraizamento de seus filhos; vemos crianças que têm tudo, querem tudo e no fundo nada têm porque lhes falta o essencial, o cuidado humano – muitos cuidadores, muitos lugares, tudo muito… faltando-lhes no fundo de tudo a confiabilidade no ambiente – ele não é facilitador, ele não sustenta, ele não segura nem é seguro.

Diz-nos Winnicott [9] que “essa questão de segurar e manusear traz à baila toda a questão da confiabilidade humana. Um computador não poderia fazer o tipo de coisa que tenho mencionado aqui; tem que haver confiabilidade humana (ou seja na verdade, inconfiabilidade)”. Isso quer dizer que a criança aprende a confiar por meio da inconfiança, mas não na desconfiança. Ela confia apesar de… mas não desconfia. Ela consegue manter a imagem da mãe dentro de si. Porém se espera e não obtém retorno, a imagem da mãe que o bebê tem dentro de si esmaece e começa a morrer. Quando a mãe volta, ela é outra pessoa. É difícil manter viva a imagem dentro de si. Dessa forma surge o sentimento de desconfiança.

No caso de crianças com comportamentos antissociais ou das crianças que aqui denominamos de expatriadas, acreditamos que o que se rompe é a confiança no ambiente, elas desconfiam da segurança e do manuseio deste ambiente por parte daqueles que delas cuidam. Tudo muda sempre e rápido, e elas se tornam crianças carentes.

O que Winnicott denomina de crianças carentes são crianças que não experimentaram uma comunicação muito antes que o discurso signifique algo, ou seja, “o modo como a mãe olha quando se dirige à criança, o tom e o som de sua voz, tudo isso é comunicado muito antes que se compreenda o discurso” [10].

Segundo este autor, e com ele concordamos mais uma vez, “a única coisa que pode ser aplicada de modo lógico a uma criança carente é o amor, amor em termos de segurar e manuseio. A dificuldade provém da necessidade que a criança tem de fazer testes e de ver se esse amor, esse segurar e esse manuseio pré-verbal aguentam a destrutividade ligada ao amor primitivo” [11].

Outra afirmação importante de Winnicott sobre a questão da criatividade de uma criança e da capacidade de ela poder brincar e viver de forma digna de ser vivida é quando ele nos afirma que

pode-se roubar um momento importantíssimo das pessoas quando o sentimento é: sinto um impulso de fazer isso e aquilo, mas também… e aí elas chegam a alguma fase pessoal de desenvolvimento que poderia ter sido totalmente interrompida se alguém dissesse : – não vá fazer nada disso, que está errado. Então, ou eles vão concordar, o que caracteriza uma desistência, ou vão desafiar, o que caracteriza uma situação onde ninguém sai ganhando e não há crescimento. [12]

Podemos perceber bem essas questões que aqui apresentamos quando procuramos analisar crianças expatriadas. Nelas há o surgimento da angústia de uma forma tal que, por não terem lastro psíquico para lidarem com essas exigências sociais e igualmente com tantas mudanças ao mesmo tempo em um curto espaço de tempo de suas vidas, muitas vezes não aprendem e podem apresentar quadros de comportamentos antissociais [13]. Diante do esvanecimento da imagem materna, diante das diversas perdas de referências, muitos podem manifestar sintomas tais como a agressividade e destrutividade, enurese, encoprese, fobias, mutismo, isolamento ou apatia. Muitos desses sintomas, em nossa leitura clínica, se enquadram naquilo que Winnicott [14] denominou de comportamentos antissociais, e o que esse tipo de clínica nos pede é uma outra forma de fazer psicanálise. Por ser uma clínica onde a questão da fratura acontece na constituição da transicionalidade, ou seja, na passagem da dependência absoluta para a relativa, esse tipo de clínica, denominado por Winnicott [15] de clínica da transicionalidade, pede, antes de tudo, management (gerenciamento) e placement (ter um lugar) [16].

Winnicott nos delimita bem o que é fazer psicanálise de outra forma, ou ser um psicanalista fazendo outra coisa em seu artigo “A tendência antissocial”:

Em termos sucintos, o tratamento da tendência antissocial não é pela psicanálise. É a provisão de cuidados que podem ser redescobertos pela criança, no interior dos quais a criança pode fazer novas experiências com os impulsos do id e pode testá-los. A terapêutica é dada pela estabilidade da nova provisão ambiental. Para que façam sentido, os impulsos do id devem ser experimentados em uma estrutura de relação egoica e, quando o paciente é uma criança que sofreu deprivação, a relação egoica deve conseguir apoio do lado da relação ocupado pelo terapeuta. De acordo com a teoria formulada neste trabalho, cabe ao meio ambiente fornecer uma nova oportunidade de relação egoica, pois a criança percebeu que foi um fracasso ambiental em termos de apoio ao ego que levou originalmente à tendência antissocial. [17]

Era uma vez uma princesa… uma torre de Babel a ser decifrada

Um dia chegou a meu consultório uma menina, clara, olhos azuis, cabelos quase transparentes de tão louros. Seus pais, indicados a mim porque saberia fazer um atendimento em inglês, já que nenhum deles falava português, chegam com Sara. Todos juntos e uma angústia avassaladora – Sara decidira há 3 anos não falar. Sara tinha 6 anos. A escola me encaminha porque não sabe mais o que fazer para poder avaliar Sara. Escola bilíngue, totalmente imersa em um único idioma que não o português, recebia sempre profissionais de todo o mundo, os expatriados, fruto do boom do petróleo.

A família de Sara não era diferente. Pai norueguês, mãe argentina, filha norueguesa, mas tendo passado os seis anos de sua vida em torno do mundo. Um dia, ao vir para o Brasil, Sara resolveu que não falaria. E não mais falou. Chegou a mim com um diagnóstico – mutismo seletivo. Chegou a mim manchando todo o consultório, todas as paredes, derramando todas as tintas enquanto conversava com os pais. Ele falava em um inglês que eu não entendia direito, a mãe ouvia e traduzia o meu inglês para o norueguês, e ela falava com a filha em espanhol e o pai em norueguês e eu tentava administrar tudo isso em inglês.

Sara gosta e fica. Meu trabalho com ela foi de estabelecer um código mínimo de entendimento. Usamos cores, usamos tinta, usamos pés e mãos e mímicas e desenhos quando ela se permitiu desenhar, e igualmente gesso, argila. Para mim Sara falava… seus olhos expressivos tudo me diziam mas nenhum som saía de sua boca. Um dia arrisco dois manejos para diminuir a angústia de Sara e sua família, sentida em mim a cada final de sessão quando ia limpar toda a sala, sempre deixada em estado de caos.

O primeiro foi perguntar a Sara se ela gostava de histórias, de fairy tales. Ela abriu um sorriso que jamais tinha visto, ela não costumava estar risonha e disse que sim. Falando das histórias para que ela me escolhesse uma e eu providenciasse algo para ler em inglês para a próxima sessão, falamos da Branca de Neve e ela me disse que adorava o Dunga… o menor dos anões, aquele pequeno ser desajeitado que somente depois eu me dei conta de ser este anão mudo e que se expressava pelas mímicas e pelos olhos; e falamos da Bela Adormecida.

Trouxe para ela a Bela Adormecida, depois os Três Porquinhos, depois a Branca de Neve, depois… Um dia o pai me diz na sala de espera – sara sonhou que ela falava com as amigas da escola. Eu lhe disse que se ela disse que falaria, assim o faria, no tempo dela. E continuamos nossas sessões, que foram diminuindo em caos e se organizando em forma de fantoches e histórias e desenhos e construções em gesso.

O segundo manejo foi chamar esses pais para mais conversas, mesmo sendo eles avessos a elas. Assim fui ouvindo a história dos dois, como eles se conheceram, como foi passar cada ano em um lugar e, no meio desses encontros que duravam sempre pelo menos 2 horas e meia, eu vi uma mãe igual à filha, assustada quando teve de largar tudo e ir para a Noruega, inclusive suas duas filhas do primeiro casamento, alguém desajustada em seu trabalho, não aceita, e que permanece quase muda até aprender um pouco do norueguês. Vi um pai que não conseguia ser pai, que se sentia culpado por ter levado a esposa para uma terra dita fria não somente pelo clima. Da conversa dos dois que eu ouvia, alguns pontos foram sendo costurados… a angústia entre eles pode ser falada e de certa forma ouvida por um e pelo outro. Um dia, numa dessas conversas a mãe me falou: parece que sou Sara, nem me lembrava mais o que eu tinha passado, tanto tempo fiquei calada…

Um dia os pais de Sara me comunicam que sairão de férias e iriam viajar com Sara para a Argentina e depois Noruega. Sara, na sessão, me olha e pega a caixa de trabalho e quer levá-la. Essa caixa foi pintada, colorida e montada ao longo das sessões para guardar o livro de fairy tales que fizemos e um que encontrei em minhas coisas e todo material de pintura e de colorir e folhas para Noruega… Sara quis levar os meus fantoches e eu disse que poderia, se ela me trouxesse de volta ao retornar… Ela olhou para mim e me devolveu os fantoches. Eu olhei para ela e disse – Sara, pode levar, sei que você cuidará deles bem. Ela me olha e balança a cabeça dizendo não. Arrisco uma fala: você está querendo me dizer que não saberá cuidar dos fantoches? Ela balança a cabeça e diz que sim e desenha no quadro fantoches destruídos. Falo: – Você quer me dizer que eles seriam destruídos e então você prefere que ele fique comigo até a sua volta? Ela desenha uma flor, um coração e uma boca sorrindo. Não mais insisti, ela saiu com a sua caixa cheia das nossas coisas feitas e construídas, deixando em minhas mãos os três porquinhos fantoches. Deixa comigo sua roupa de brincadeira para ser lavada. Os pais não suportavam que ela ficasse suja, assim ela tinha essa roupa que eu cuidava para a cada sessão poder estar ali, disponível para ser usada de novo.

Os pais se despediram de mim, levaram a caixa de Sara e Sara… e nunca mais voltaram, mesmo que eu tenha entrado em contato diversas vezes.

Passado um ano, ou seja, este ano, eu recebi em meu celular um torpedo em inglês: Sara falou com os amigos, com os professores, hoje ela fala com todos mesmo sendo tímida… você estava certa, obrigado por tudo.

Nesse dia custei mais para entrar no carro e voltar para casa… ela falara como prometera a mim entre cores, pés e mãos porque, quando eu perguntara a ela se ela não falava porque não podia, não queria ou não sabia, ela disse que não queria e que falaria quando quisesse… E ela falou… Tinha de parar de tremer de emoção antes de dirigir.

Quase concluindo… porque no “Era uma vez” o final não conclui mas abre espaço para outro era uma vez

Acreditamos que com esse caso clínico tenhamos demonstrado como o sintoma, tanto em Sara quanto em Hans, aparece como designativo de um impasse. Impasse que deveria ser suportado e sustentado pelos pais e não o são. Esses casos nos fazem pensar a questão da função materna de acolher e significar, conter e integrar, erotizar a dispersão, tornar suportável o insuportável; e a função paterna de limitar, discriminar, separar, legislar e permitir com isso a saída pelo ingresso na ordem ou na subversão a ela. O sintoma dessas crianças, para nós, denuncia o limbo, o vazio, o nada com que elas se confrontam!

Qual é a função do analista em casos como esses? Sustentar o lugar do vínculo transferencial em qualquer situação. Estar lá, sobrevivendo ao chão todo sujo de tinta, ao mutismo, aos papéis colados de tanta tinta derramada. É acolher pais, filhos, fantasias e medos. É, na falta da palavra, fazê-la advir de alguma forma, nem que seja em cores, com pés e mãos pintados, na roupa suja que ficava para ser lavada, na caixa que continha as histórias das princesas, principalmente a da Bela Adormecida e a do Dunga. Histórias de amor e de medo, de abandono e de sono de que um dia Sara despertaria, como despertou. Era uma vez uma princesa que pode ser princesa porque o era uma vez pôde advir e ser sustentado numa Babel de línguas e de culturas e de medos e de impasses…

O lugar do analista, quando ele não pode atuar de forma standard (e questionamos se hoje em dia pode haver um manejo standard com a clínica da contemporaneidade e dos expatriados), demanda que ele se permita, dentro da ética psicanalítica, ser outra coisa, fazer outra coisa. Essa expressão fazer outra coisa foi utilizada por Winnicott quando ele nos diz:

Se o paciente não necessita análise, então faço alguma outra coisa (pois) análise é para aqueles que a querem, dela necessitam e podem tolerá-la […]. Se o nosso objetivo continua ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriado para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? [18]

Em outras palavras, esse tipo de clínica demanda que haja um espaço de construção em análise que não passe, exclusivamente, pela palavra nem pela interpretação, mas pela instauração de um espaço transicional onde não cabe perguntar quem criou o quê… O importante é que no final algo se simbolize, faça sentido e seja falado…

A tarefa do analista nesses casos, a nosso ver, é convocar os pais a assumirem suas funções, que foram delegadas ao analista em algum momento, que ficaram suspensas por algum tempo articuladas ao nosso fazer. Talvez seja essa a função primordial de um analista em uma clínica com crianças e com crianças que são desterritorializadas: seu território passa a ser seu consultório para depois passar a ser ou ir sendo igualmente o espaço fora do consultório.

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