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Resumo
Este artigo investiga o caráter traumático da ditadura brasileira (1964-1988), a partir de relatos de atendimentos psicanalíticos realizados na Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Se o trauma é da ordem do indizível, como o testemunho e o trabalho da memória operam? Como a palavra permite elaborar as marcas no corpo e o sofrimento? O processo de luto e a transmissão transgeracional.


Palavras-chave
ditadura; trauma; verdade; memória; testemunho; luto.


Autor(es)
Maria Cristina Ocariz
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise do mesmo Instituto, mestranda na Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP.

Ana Maria Rudge
é membro-psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID) e professora-assistente da PUC/RJ.

Maria Carolina Gentile Sciulli
é psicóloga clínica e psicanalista. Aprimoramento em Violência Doméstica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Terapeuta-pesquisadora da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae.

Maria Liliana Inês Emparan Martins Pereira
é psicanalista e mestre em Psicologia e Educação pela usp. Coordenadora do Projeto Ponte – atendimento psicanalítico para imigrantes e migrantes e terapeuta-pesquisadora da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae.

Nana Corrêa Navarro
é psicóloga formada pela puc-sp e psicanalista. Terapeuta-pesquisadora da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1. Comissão de Justiça e Paz, Movimento Brasileiro pela Anistia (ampla, geral e irrestrita), Comissão de Familiares de Presos Políticos, Mortos e Desaparecidos, Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros.

2. I. Lewkowicz, "Conceptualización de catástrofe social. Límites y encrucijadas", p.?65.

3. B. Kucinski, K. Relato de uma busca.

4. B. Kucinski, op. cit., p.?8.

5. L. Conte, "Terrorismo de Estado. El trauma: salidas del lenguaje", p. 185.

6. B. Kucinski, op. cit., p.?69.

7. B. Kucinski, op. cit., p.?166.

8. B. Kucinski, op. cit., p.?168-169.

9. S. Freud. (1915). "Luto e melancolia", p.?276.

10. F. Rousseaux e L. Santa Cruz, "De la escena pública a la tramitación íntima del duelo".

11. F. Rousseaux e L. Santa Cruz, op. cit., p.?161.

12. S. Freud (1916 [1915]), "Sobre a transitoriedade", p.?347.

13. S. Freud, op. cit., p.?348.

14. P. Calveiro, Poder y desaparición: los campos de concentración em Argentina, p.?128.

15. A. S. Gueller, "Memória e Atemporalidade".

16. A. S. Gueller, op. cit., p.?39.

17. Santo Agostinho, Livro xi das Confissões, "O homem e o tempo", apud A. S. Gueller, op. cit., p.?38.

18. Apud A. S. Gueller, op. cit., p.?38.

19. J. M. Gagnebin, "O rastro e a cicatriz: metáforas da memória", p.?113.

20. S. Freud, Psicología de las masas y análisis del yo, p.?67. Tradução livre.

21. V. Galli, "A clínica psicanalítica durante e depois do terrorismo de Estado", p.?25.

22. S. Daldry, As horas - Longa Metragem (2001). Adaptação do Romance de Michael Cunninghan.

23. S. Freud (1924), "O problema econômico do masoquismo".

24. S. Freud (1924-[1923]), "Neurose e psicose", p.?169.

25. S. Freud, op. cit., p.?168.

26. E. Tomazelli, Autopoiese, p.?110. Inédito.

27. S. Freud (1914), "Recordar, repetir e elaborar", p.?168.

28.  Nossos dispositivos clínicos: Conversas Públicas, terapias individuais e grupais, grupos de reflexão e testemunho, oficinas de capacitação de profissionais da Saúde e da Justiça.

29. J. C. Rolland, Conferência no V Colóquio da Associação Primo Levi. "Linguagem e violência. Os efeitos dos discursos sobre a subjetividade de uma época".

30. M. Vinãr; M. Vinãr. Exílio e tortura, p.?149.



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Tomazelli E. Autopoiese. Inédito.

Viñar M.; Viñar, M. (1992). Exilio e tortura. São Paulo: Escuta




Abstract
This article researches the traumatic nature of the Brazilian dictatorship (1964-1988) on the basis of narratives from psychoanalytical attendances at Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Considering trauma as unspeakable of, how testimoy and memory work? How do the spoken words allow elaboration body marks and suffering? The mourning process and transgenerational transmission.


Keywords
dictatorship, trauma, truth, memory, testimony, mourning

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 TEXTO

O trauma, a palavra e a memória na Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae

Trauma, language and memory in the Sedes Sapientiae Institute
Maria Cristina Ocariz
Ana Maria Rudge
Maria Carolina Gentile Sciulli
Maria Liliana Inês Emparan Martins Pereira
Nana Corrêa Navarro

O racionalismo cartesiano nos diz que todo fenômeno é produto do cogito; a natureza existe mediante a elaboração do pensamento humano.

 

A partir disso, a célebre especulação sobre a árvore que desaba estrondosamente no meio da mata virgem, sem o testemunho visual nem auditivo de nenhum ser humano, se torna um não acontecimento, uma vez que não passou pela percepção humana e não foi, portanto, aferido racionalmente. Da mesma forma, a avaliação do que houve durante a ditadura pode também ser considerada não acontecimento; esse é o esforço dos responsáveis, interessados em que assim permaneça.

 

A ditadura brasileira (1964-1988) foi uma catástrofe social que impôs uma política de terrorismo de Estado instaurando medo, silenciamento e violação sistemática de direitos humanos fundamentais, o que dificultou a elaboração do vivido de forma individual e coletiva.

 

O papel das Comissões da Verdade, em sua tarefa de reconstruir o não acontecido, é investigar o período e elucidar os efeitos sobre os sujeitos e as consequências político-sociais na sociedade como um todo.

 

Pais que perderam filhos, filhos que perderam pais, irmãos que perderam irmãos e amigos que perderam amigos. A história da ditadura brasileira, como em todos os momentos de ruptura do contrato social, é relato contínuo de perdas, cuja memória se faz preciso buscar para recompor a estabilidade social.

 

O não saber e o não lembrar são fatores que impedem a cicatrização de feridas no tecido social, além de alienar do ser do presente o seu passado, bloqueando seu projeto de futuro. A pura negação de uma árvore que tomba na floresta não significa a negação do estrondo que reverberou sobre as vidas de toda a Nação.

 

De uma forma ou de outra, toda memória - bem como sua contrapartida, o esquecimento - traz em si uma série de conceitos passados pelo filtro dos mecanismos inconscientes de quem elabora, sobre o qual atuam fatores como sensibilidade pessoal, nível de informações, de diversidade cultural, preferências políticas e até mesmo influências adquiridas da vivência familiar e social.

 

Para elucidar o período ditatorial brasileiro, o Estado democrático tomou para si a missão de administrar os procedimentos para a coleta de sua memória recente, mediante a criação da Comissão da Anistia (Lei 10.559/2002) e da Comissão da Verdade (Lei 12.528/2011). Começaram a se coletar testemunhos dos agentes da repressão e das vítimas diretamente envolvidas em violações flagrantes dos princípios universais - internacionalmente aceitos - no que se refere aos direitos humanos básicos do indivíduo, como prisões arbitrárias, desaparecimentos e torturas. É ação polêmica por natureza, porque confronta a noção do esquecimento pactuado durante o processo de redemocratização.

 

A memória dos fatos, assim como o seu esquecimento, atende, portanto, a um duplo interesse: subjetivo, dos que sofreram diretamente as consequências das ações e procuram por justiça; e do corpo social, que precisa que a verdade apareça para criar a possibilidade de cicatrização de sua ferida e para permitir, ao ser de hoje, construir o devir.

 

Nos longos anos ditatoriais sempre houve, através da arte (música, cinema, teatro, artes plásticas, escrita) e dos movimentos sociais e políticos[1], vozes que denunciaram o que estava sucedendo e que lutaram pela volta da democracia. Este processo incluiu uma polêmica Lei de Anistia Política (1979), a formação de uma Assembleia Constituinte e a volta de eleições diretas para presidente. O Estado inicia, então, o processo de Justiça de Transição. Em 2012, são criadas as Clínicas do Testemunho para oferecer reparação psicológica aos anistiados pela lei 10.559/2002. Através da potência da memória, da verdade e da fala dos diretamente afetados pela violência de Estado, toda a sociedade pode elaborar coletivamente o trauma vivido.

 

Possibilidades de elaboração do luto  nos processos de catástrofe social

O difícil trabalho de reconstrução do ocorrido na realidade social e psíquica em particular incide na forma como cada um viveu e pôde recordar e elaborar esta história.

 

Na Clínica do Testemunho, os diferentes dispositivos clínicos possibilitam que todos sejamos testemunhas do que é falado, rememorado, construído: os pacientes, os colegas do grupo terapêutico, as psicanalistas. Esta é uma das formas de elaboração do luto que durante tantas décadas ficou sufocado, pela recusa coletiva de escutar, testemunhar e compartilhar a dor. Este lugar de testemunha não se refere apenas ao que se viveu, mas à atualização do trauma hoje. Por isso, não acreditamos que o atendimento psicológico tenha "chegado tarde demais". O trabalho de reparação se atualiza dialeticamente nesse tempo diacrônico da memória, da verdade e da busca pela justiça.

 

Romper com a compulsão à repetição significa poder escutar as várias versões sobre o acontecido, admitindo esta multiplicidade. Na Clínica do Testemunho, os dispositivos grupais ou individuais funcionam como uma tela protetora que, ao reatualizar o vivido por meio das memórias, amortece seu impacto traumático. Este amortecimento é efeito da continência do grupo e da escuta cuidadosa das psicanalistas. Se produz uma recuperação identitária da experiência traumática vivida: a que grupo pertenciam e quais eram seus ideais, qual o tipo de militância e como vivenciaram o ocorrido, onde estudavam e trabalhavam na época, como era composta sua família, quais as escolhas feitas, etc.

 

A inscrição do novo na experiência traumática significa poder entrelaçar o que se foi, o que se é hoje, e o que se projeta como futuro. Frente às situações de autoritarismo e dominação, podemos ofertar fala e pensamento como forma de resistência e movimento, pois "Pensar é quebrar, romper enquanto que dominar é fixar, cristalizar"[2].

 

O difícil trabalho de luto

No Brasil a literatura de testemunho proliferou nos últimos anos, tanto em nível de denúncia, depoimentos oficiais, reconstrução histórica, como literatura ficcional.

 

Kucinski no livro K. Relato de uma busca[3] exprime, através da história da procura de uma filha desaparecida, uma narrativa entre o factual e a ficção. Ao advertir o leitor sobre a necessidade de entrelaçamento entre realidade e fantasia, escreve a seguinte epígrafe: "Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu"[4]. Em uma das passagens mais intensas da narrativa do processo de desaparecimento e perda da filha, relata a dificuldade de elaboração do luto quando não existe o corpo como representante concreto da morte e a impossibilidade de se efetuarem os rituais e homenagens ao falecido. Como nos alerta Conte, nas situações de desaparecimento de pessoas há um duplo luto: "a morte por privação da vida e a morte por privação da morte"[5].

 

K. enfatiza: "A falta de lápide equivale a dizer que ela não existiu e isso não era verdade: ela existiu, tornou-se adulta, desenvolveu uma personalidade, criou o seu mundo, formou-se na universidade, casou-se"[6]. Este trecho mostra a importância do reconhecimento social da morte que funcionaria psiquicamente como a constatação do ocorrido; sem isto, a dura certeza se torna uma dúvida angustiante em torno do enigma da morte e da sua causa, fazendo com que o pensamento se torne circular. Conte considera que o luto nestas situações seria um "luto sob tortura", ou seja, vivido com violência, impotência e terror. Uma suspensão interminável do luto entrelaçado à culpa de ter sobrevivido. "Por que sobrevivi e eles não? É comum esse transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos"[7].

 

Paralelamente, o processo indenizatório sem o conhecimento da verdade dificultou a compreensão do que realmente ocorreu, assim como o próprio processo de luto.

 

[...] as indenizações às famílias dos desaparecidos - embora mesquinhas - foram outorgadas sem que os familiares tivessem que demandar, na verdade antecipando-se a uma demanda, para enterrar logo cada caso. Enterrar os casos sem enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investigação. Manobra sutil que tenta fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a história[8].

 

Partindo do pressuposto freudiano, de que o trabalho de luto se dá a partir de um teste de realidade que corrobora que o objeto perdido não existe mais[9], podemos pensar o quão doloroso e difícil se torna este processo nos casos de desaparecimento, onde tal teste não pode acontecer. Como aponta Rousseaux, nestes casos, se dá um tipo de luto congelado "[...] e como tal produz um ponto de coagulação de sentido"[10]. Há um efeito social importante no luto, que é o papel da sociedade através da corroboração do objeto perdido. Nas catástrofes sociais, o sujeito encontra uma resposta esquiva quando não um desmentido, já que existe uma inibição social que impede que o sujeito se confronte com a perda. A autora acrescenta: "Faz falta uma reinscrição do acontecimento sinistro que descongele o sentido obturado no significante que ficou coagulado, e que ponha a circular o sentido que vai em direção à verdade de cada sujeito"[11].

 

A não confirmação da morte do desaparecido funciona, então, como uma espera torturante, que não permite que se possa reinvestir a energia libidinal em outros objetos.

 

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos[12].

 

Muitos referem um longo processo de luto, no qual diferentes situações implicaram desafios para a elaboração: os desaparecimentos, a prisão, a tortura, o exílio, a perda de emprego, as mortes, a crença ideológica, a solicitação de indenizações, os processos empreendidos junto ao Estado, etc. Muitos têm filhos e netos e pensam na transmissão dos legados.

 

Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes[13].

 

Assim, a constatação da luta, da sobrevivência e da tentativa de rememorar, falar e elaborar a experiência traumática são a mostra de que a pulsão de vida se impôs sobre a pulsão de morte; o que implica reconhecer que a repressão e a violência podem ter efeitos devastadores, mas que não dizimam os sujeitos. Pensamos aqui especialmente nas formas de solidariedade e apoio entre os militantes, suas famílias, entre os companheiros de prisão, nas formas criativas de enfrentar a dor, o terror e o luto, o trabalho, a criação dos filhos, as pequenas resistências e vitórias, etc.

 

Pensar na vítima total e absolutamente inerte é também crer na possibilidade de poder total, que desejavam os desaparecedores[14].

 

O trauma, seus rastros, sua transmissão e o trabalho de memória.

Nas Clínicas do Testemunho trabalhamos com os efeitos psíquicos dos crimes cometidos no período da ditadura militar, que incidem nos planos coletivo e singular. A memória traumática tenta, apesar de tudo, se dizer. Afirmação problemática, pois o trauma para a psicanálise é justamente aquilo que corta ao sujeito o acesso à linguagem. Trata-se de pensar, portanto: como o trauma se diz? Como uma experiência dolorosa e desorganizadora pode ser transmitida de geração em geração?

 

Para investigar as operações da memória, na dialética entre lembrança e esquecimento, entre o que se fixa ou preserva no traço de memória e o que se apaga, Gueller retoma as teses freudianas[15]. A autora faz referência a uma conclusão de Freud em Além do princípio do prazer (1920): "Com frequência os traços de memória são mais poderosos e permanentes quando o processo que os deixou atrás de si foi um processo que nunca penetrou na consciência [...] a consciência surge em substituição de um traço de memória"[16].

 

Gueller se detém na metáfora da escrita, usada por Freud para descrever o trabalho de memória como um processo de inscrição, transcrição e tradução de traços e estabelece algumas relações entre o modelo freudiano e o modelo tradutivo-transcritivo da memória proposto por Santo Agostinho (século IV d.C.)[17]. Segundo Agostinho: "A memória relata, não os acontecimentos que já decorreram, mas sim palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio"[18].

 

Gagnebin também pensa o trabalho de memória a partir da metáfora da escrita, mas acrescenta novas questões: a escrita é um rastro? O que é um rastro?

 

Eis uma possível resposta elaborada por Gagnebin:

 

Agora a escrita não é mais um rastro privilegiado, mais duradouro do que outras marcas da existência humana. Ela é rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara. Rastro que é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente - sem, no entanto, prejulgar sua legibilidade. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não intencionalidade. O detetive, o arqueólogo e o psicanalista, esses primos menos distantes do que podem parecer à primeira vista, devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, de sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não são criados - como são outros signos culturais e linguísticos -, mas sim deixados ou esquecidos[19].

 

Vejamos algumas sutilezas deste processo de apagamento e preservação de rastros ou traços de memória no atendimento psicoterapêutico familiar pela Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Partimos neste caso de algo vivido pelos pais como um esquecimento, entendido por eles como um processo normal, fruto do apagamento paulatino de traços de memória. Além deste esquecimento, estes pais traziam uma série de negativas: "Não sei por que falar", "Não lembro", "Fomos presos, mas não fomos torturados, fomos vigiados mas não a ponto de sermos forçados a fugir para a clandestinidade, ou para o exílio". Nossa hipótese é que os brancos, hesitações e negativas no discurso destes pais indicavam a presença do recalque; ou seja, algumas lembranças tornaram-se inacessíveis à consciência porque não conseguiram tradução como representação-palavra, porque isto provocaria desprazer. Tais lembranças inconscientes não se desgastam com o tempo; ao contrário, são preservadas e produzem efeitos.

 

Apesar de todas as negativas de seus pais, os filhos investem fortemente o espaço de análise, como possibilidade de escutar nas palavras deles um sentido e um reconhecimento dos sofrimentos inenarráveis que experimentaram. Sofrimento de quem? A ambiguidade que aí aparece nos exige pensar algumas vicissitudes da circulação dos afetos na família. O recalque, como defesa utilizada na blindagem contra o sofrimento, compromete o exercício das funções paterna e materna. Sobre isto, os pais conseguem reconhecer algo muito contundente: "Houve abandono, sim". Conta que nos primeiros dias de vida de um dos filhos foram acordados pelo barulho da campainha: era o guarda da rua dizendo que ficou preocupado porque escutou um bebê chorar desesperado. Acrescentam que, logo após este episódio, foram presos, o que lhes disparou o seguinte pavor: "Quem vai cuidar do bebê e das crianças? Eles precisam de nós. Eles são tudo para nós". Destino trágico que inesperadamente possibilita que um laço incipiente comece a ser criado a partir do valor ou sentido que estes pais passam a conferir a seu bebê. Contudo, novos sofrimentos vividos por estes jovens pais durante a prisão e no seu regresso reforçam sua blindagem, sua surdez e seu mutismo. Assim, grande parte das vezes em que os filhos se veem angustiados ou desorganizados, é preciso que urrem e gritem para que os pais reconheçam a presença de feridas a serem tratadas.

 

No trabalho que realizamos, não é pouco o esforço feito para recuperar suas lembranças que, literalmente, lhes escapam. Curiosamente, aparece algo que vai numa direção oposta: a mãe conta que não consegue se desprender de alguns objetos como roupas que desenhou e costurou ou objetos decorativos e mobílias que comprou ou herdou. Com o passar do tempo, tais objetos deixaram de ser usados, mas foram preservados, como relíquias que lhe trazem lembranças preciosas. O problema é que, por vezes, tais objetos tornam-se anacrônicos e incabíveis, pois ocupam um espaço que não podem dispor na sua moradia atual, ou não se ajustam ao amadurecimento de seu corpo, que não corre em paralelo ao tempo psíquico. Este descompasso ou incompatibilidade também se manifesta quando entregam a um dos filhos alguns de seus tesouros, atribuindo-lhes o papel de cuidar destes presentes, ressentindo-se porque nunca sabem ou encontram onde deixaram os objetos que receberam e, se eles estão mais à vista, acabam por passá-los adiante, esquecendo-os. Em análise assinala-se a importância deste movimento dos filhos, onde se deslocam da função de portar e encarnar as lembranças dos pais.

 

Fazer memória é traçar a linha de continuidade do passado ao presente. Através desta conexão, os restos traumáticos deixam de se presentificar num sofrimento aprisionado e aprisionante e ganham sentido. Se o passado não pode ser recuperado, ele pode ser imaginado tanto quanto o futuro, recoberto de novas significações que dialogam com as mensagens que nos são endereçadas no presente. Neste trabalho do tempo e com o tempo, os restos traumáticos podem ser assimilados, transmitidos e transformados.

 

A temporalidade e a transmissão transgeracional.

A discussão sobre como a teoria e o método psicanalítico são engajados em movimentos políticos e sociais é complexa e pode ser feita por vários caminhos. Freud e seus seguidores ressaltam as relações do sujeito com os outros, seus semelhantes e os laços sociais.

 

[...] a psicologia individual trata do ser humano singular... mas não pode prescindir dos vínculos desse indivíduo com outros. Na vida anímica do indivíduo, o outro conta com total regularidade, como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, e por isso a psicologia individual é simultaneamente psicologia social [...][20].

 

Nas "Conferências Introdutórias sobre Psicanálise" (1916-1917), Freud afirma que o sintoma psíquico tem um sentido, uma finalidade e uma função. Usa o conceito de séries complementares para dizer que o sintoma é multideterminado em sua etiologia. Existem três séries: a disposição constitucional, as experiências da infância e as circunstâncias da vida do sujeito na sua vida adulta. As duas primeiras séries determinam a predisposição de cada ser humano para a neurose, mas não são determinantes a priori de qualquer distúrbio neurótico que a pessoa possa vir a ter; a terceira série complementar está relacionada com os acidentes e vicissitudes que a vida oferece e é fundamental na formação dos sintomas, na sua relação dialética com a predisposição.

 

Na primeira série está tudo aquilo que na vida psíquica não pode ser explicado pela experiência individual. A anterioridade é destacada como algo que o indivíduo não vivenciou, mas vivencia, a posteriori, os efeitos de um fato passado. Para justificar esta anterioridade, Freud se apoia na filogênese como algo que escapa ao nível da história individual. Recorre a esta concepção para explicar a transmissão, de geração em geração, de conteúdos psíquicos inconscientes que apesar das modificações asseguram a continuidade das civilizações. Em Totem e Tabu (1912) já havia ressaltado a importância dos aspectos ancestrais quando discute o mito do assassinato do pai como base da constituição da civilização. Os sonhos, as obras de arte, as produções subjetivas, os mitos, contos e lendas são formações que fazem parte do patrimônio cultural.

 

A criança, ao nascer, é inserida em seu universo familiar desejante que é portador das histórias das gerações anteriores. O sujeito a advir se insere em uma cadeia de filiação, sendo ao mesmo tempo leitor e personagem de uma narrativa de ficção escrita por seus pais, que traçam para ele um certo ideal situado no futuro. O discurso falado ou secreto da família é anterior a ele.

 

Além das séries complementares, segundo Freud, as fantasias primordiais como patrimônio filogenético - cena primária, sedução por um adulto e castração - participam na formação dos sintomas neuróticos. O sujeito faz uso destas fantasias universais para preencher, com ajuda da verdade pré-histórica, as lacunas da verdade individual e encontrar respostas para seus enigmas existenciais.

 

O enunciado "Sou filho/filha de ex-preso político" dá indícios sobre que lugar o sujeito ocupa em sua novela familiar. Os pacientes são sujeitos de sua fala, mas é impossível ignorar que seu discurso se insere em uma história da geração anterior, marcada pelos anos da ditadura. A história dos pais, o que ficou "prisioneiro/ aprisionado" reaparece em seus sintomas neuróticos como efeito das marcas traumáticas não simbolizadas.

 

Ao contar sobre sua história, usam de vários significantes congelados; antigos signos são reproduzidos sem adquirir novos sentidos. Em diversos momentos o passado e o presente parecem não ter diferença. Os fatos não aparecem como pertencendo ao passado, o que leva a pensar no discurso do traumático, onde a diferença do tempo não se instaura. Como, no processo analítico, produzir algo que faça um corte entre o antes e o depois?

O papel das terapeutas é de testemunha da história das famílias. O espaço transferencial que se construiu funciona como um espaço de testemunho, de reconhecimento da dor.

Incorporar a experiência vivida por uma geração e seu pensamento como parte da história do Brasil, acreditar na construção conjunta de um tempo subjetivo e de um tempo coletivo, permitem, no trabalho analítico, impulsionar os sujeitos-cidadãos para a vida e oferecer possibilidades de novas formas de viver o contemporâneo.

 

Os sistemas tirânicos dominam não só pela força das armas, torturas, nas mortes e desaparições: dominam, além disso por sua infiltração em todas as relações sociais e intrapessoais, através do efeito intimidatório multiplicado na especulação e repetição de pautas de violência e silenciamento[21].

 

Neste sentido, consideramos importante incluir os diversos dispositivos clínicos psicanalíticos para pensar uma política pública de reparação psíquica dos afetados pela violência de Estado.

 

A tristeza como um recurso diante  do adoecimento psíquico

Não se pode ter paz evitando  a própria vida.[Virgínia Woolf][22]

 

A tortura foi proibida pela Constituição Federal de 1988 e tipificada como crime em 1997 através da lei n. 9.455. Hoje está cotidianamente presente nas camadas mais vulneráveis da população. Os Direitos Humanos, ainda que em um Estado democrático, não estão plenamente garantidos. No período da ditadura militar, a tortura era parte da própria engrenagem do sistema. Marcas deixadas pela violência desse período estão longe de serem superadas.

 

Aproximar-se do sofrimento vivido por afetados pela violência do Estado tem como primeiro desafio a necessidade de fazer da fala um recurso para esse encontro. Mas, como falar quando ainda não se tem palavra? Se não há símbolo possível para a dor, como lidar com ela?

 

Apesar de recebermos pacientes com traumas oriundos da mesma fonte, nosso trabalho tem sido construído como uma clínica viva e singular, atenta aos perigos das generalizações.

 

Para pacientes com dificuldade de interação e resistência a expor suas angústias e conflitos coletivamente, oferecemos o atendimento individual.

 

Na nossa prática, encontramos em algumas pessoas atendidas individualmente um estranhamento intenso diante da possibilidade de entristecerem.

 

Questionamentos sobre a dificuldade de reconhecer que tudo está lá e permanece difícil, apesar de passados 50 anos. Alguns nunca tinham falado desses acontecimentos com ninguém e falando se sentiam frágeis como: "Que estranho, não sabia que isso tudo mexia tanto comigo ainda" ou "Tinha certeza de que era forte, de que não sofria por isso e veja só, me sinto tão frágil", "Estranho, aqui comecei a perceber que está tudo aqui ainda dentro de mim", "Nunca falei desses acontecimentos dessa forma".

 

Em algumas dessas pessoas, a evitação defensiva da tristeza impacta o funcionamento psíquico, ameaçando o contato com a realidade. Como foram pressionados constantemente a dar informações durante o período da ditadura, se instala na relação transferencial a desconfiança. Discorrem sobre as perseguições sofridas e a ideia de que ainda ocorre a atualidade, porém vai ficando claro que o maior perseguidor habita seu psiquismo. Essa é a marca traumática registrada no inconsciente, que sustenta esses funcionamentos psíquicos atormentados.

 

Nesses atendimentos notamos em comum, inicialmente, uma série de fantasias persecutórias que os impediam de assinarem a ficha de presença, havia o temor de as sessões serem gravadas; a confiança precisava ser conquistada.

 

Como psicanalistas, tentávamos auxiliar no percurso onde a dor pudesse vir a ser simbolizada, em vez de movimentar-se livre, tirânica e sorrateira nos pensamentos e ações. Dor inominável de psiquismos violentados pelas vivências aterrorizantes a que foram submetidos.

 

Em sua segunda teoria pulsional, Freud (1924)[23] diz que a função da libido é desviar grande parte da pulsão de morte para fora. Na impossibilidade de desviar toda a pulsão de morte, sempre fica um quantum no organismo que se liga de certa forma à pulsão de vida, formando o masoquismo erógeno que é constitutivo.

 

Nesses casos, o que notamos é que não prevalece o sadismo, componente da pulsão, como mecanismo de defesa, mas sim o predomínio de um estado de dor e sofrimento característicos do masoquismo erógeno primário, quando a pulsão volta-se contra o próprio eu e a destrutividade pura se instala.

 

Na impossibilidade de dar destino e de encontrar representações necessárias, há um quantum pulsional que não passa pelo psiquismo, que transborda em movimentos repetidos, gerando sofrimento, o que vai tornando o viver insuportável.

 

O eu tem como função a tentativa de domesticar a pulsão, mas em muitos casos atendidos encontramos uma dificuldade em lidar com as exigências pulsionais inconscientes e com as exigências do mundo externo.

 

As histórias encontram coragem e palavras vagarosamente, aos poucos falam da prisão, da tortura, dos companheiros mortos e desaparecidos.

 

A luta contínua por seus ideais, como se ainda estivessem na mesma época, encontra representação, alívio psíquico, um caminho possível para a descarga pulsional. A busca pelo novo, por se reinventarem, por transmitirem seus conhecimentos, seus desejos por uma sociedade mais igual é o que os mantém mais integrados psiquicamente.

 

Há uma impossibilidade de entristecer e no lugar da tristeza fica a indignação social. Indignação pertinente, real, coerente, mas que também funciona como uma impossibilidade de olhar para suas próprias perdas sem enlouquecer.

 

Freud no texto "Neurose e Psicose" (1924) aponta:

 

[...] inúmeras análises nos ensinaram que o delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo. Se essa precondição de um conflito com o mundo externo não nos é muito mais observável do que atualmente acontece, isso se deve ao fato de que, no quadro clínico da psicose, as manifestações do processo patogênico são amiúde recobertas por manifestações de uma tentativa de cura ou uma reconstrução[24].

 

Para a elaboração da dor pela palavra, precisamos encontrar um lugar dentro de si para integrá-la. Outra observação comum é que surgiram sensações de egoísmo e de culpa ao falarem de si mesmos como sujeitos, a culpa diante do coletivo, a culpa de estar vivos. Posicionamentos políticos pertinentes, mas que, às vezes, dificultam seus laços com a realidade, o contato com seu sofrimento, a vivência de suas emoções.

 

Sobre o enfraquecimento do eu e a perda de contato com a realidade, Freud (1924) nos diz:

 

O ego cria, autocraticamente, um novo mundo externo e interno, e não pode haver dúvida quanto a dois fatos: que esse novo mundo é construído de acordo com os impulsos desejosos do id e que o motivo dessa dissociação do mundo externo é alguma frustração muito séria de um desejo, por parte da realidade - frustração que parece intolerável[25].

 

Tudo já passou, mas dentro deles está tudo ali. O inconsciente atemporal marcado por tantos excessos. O sofrimento se apresenta como uma espécie de loucura porque não conseguem sair dele. Em que momento, afinal, o sofrimento vira loucura para os manuais?

 

Nossa hipótese é que, nesses casos específicos, a proximidade com a "loucura" decorre da impossibilidade de entristecer. Uma vez que a realidade em alguns momentos tornou-se inabitável, a saída possível foi o distanciamento dela.

 

Loucura ou defesa diante de tamanho sofrimento? Pensamos que há um grau de loucura necessária para manter-se são. A separação não é clara e nenhum desses estágios é puro e isento do outro.

 

A ação é a dor que não pode ser pensada. Bion nomeou de medos talâmicos pré-psíquicos quando estamos fora do trágico, já mais uma vez o medo animal. Medo puro, automático: a luta feroz pela sobrevivência dispara a formulação de área de não pensamento e de resposta sem mediação. De alguma forma poderíamos pensar que, sem a razão e sem a tristeza, o que nos resta é a violência. O que nos resta é a guerra e não o trabalho cooperativo[26].

 

Não há possibilidade de cuidar da dor sem fazer contato com ela.

Freud em "Recordar, repetir e elaborar" (1914):

 

Acha-se assim preparado o caminho, desde o início, para uma reconciliação com o material reprimido que se está expressando em seus sintomas, enquanto, ao mesmo tempo, acha-se lugar para uma certa tolerância quanto ao estado de enfermidade. Se esta nova atitude em relação à doença intensifica os conflitos e põe em evidência sintomas que até então haviam permanecido vagos, podemos facilmente consolar o paciente mostrando-lhe que se trata apenas de agravamentos necessários e temporários e que não se pode vencer um inimigo ausente ou fora de alcance. A resistência, contudo, pode explorar a situação para seus próprios fins e abusar da licença de estar doente[27].

 

Grupo de reflexão e testemunho

Um dos nossos dispositivos clínicos[28] é o Grupo de Reflexão e Testemunho, que nasceu com a perspectiva de uma miniconversa pública - com até 30 participantes - para que os integrantes se sentissem encorajados a relatar, compartilhar e processar as diversas formas de repressão e violência que os atingiram no período da ditadura, e as estratégias singulares que encontraram para registrar, elaborar e expressar os acontecimentos vividos.

 

A inquietação que nos guiava nesse grupo foi nos perguntar sobre como as cicatrizes podem ser elaboradas, como se transmitem essas marcas do horror.

 

Ao escutar os relatos, percebemos que a presença do passado é marcante, e que há uma repetição na fala: o presente parece ameaçador, o receio do retorno de uma nova forma de ditadura. Surgiu um importante significante a partir da questão de quem seriam os afetados: sequelado. "O Brasil é sequelado, todos foram afetados".

 

O Estado ditatorial teve intenção de destituir as pessoas de sua identidade e de seus valores. No grupo lutamos para poder escutar as denúncias, as arbitrariedades e o traumático vivido, mas o conflito entre memória e esquecimento está presente no próprio afetado. Existe uma forte resistência a recordar, reconstruir a história; muitos ainda se sentem ameaçados, entristecidos, fechados.

 

Nós das Clínicas do Testemunho acreditamos, como Jean Claude Rolland, psiquiatra e psicanalista de Frei Tito, "que se há um lugar onde o destino pode ser contrariado, onde o curso das coisas possa ser revertido, esse lugar é o da palavra" [29].

 

A participação nesse grupo foi provocando, também, transformações nas psicanalistas terapeutas pesquisadoras.

 

Surgiram no grupo sentimentos de estranheza que remetiam a experiências relacionadas aos limites da vida, à loucura, à dissociação vivida na tortura entre corpo e mente, à relutância de falar, à luta pela sobrevivência, ao receio de que algo pudesse acontecer a seus filhos. O trabalho no grupo possibilitou que as pessoas se apropriassem de suas histórias abrindo espaço para um diálogo social.

 

Uma paciente relatou sua prisão: grávida, durante meses confinada em uma minúscula cela em que passava o dia andando de um lado ao outro, conversando com o filho em seu ventre. A palavra a ajudou a manter sua sanidade mental. "Na hora da tortura era o corpo que ficava, a alma ficava intacta, suas convicções não podiam ser arrancadas".

 

Marcelo Viñar, psicanalista uruguaio, apontou em seu livro Exílio e Tortura (2001):

 

[...] a experiência da tortura não é uma doença curável em prazos que podemos definir, constitui uma ruptura de identidade, em parte definitiva, que opera como núcleo significativo do silêncio sintomático. Seus efeitos não se limitam somente ao indivíduo, mas à descendência e, portanto, ao corpo social[30].

 

No grupo compararam-se experiências catastróficas - incêndios, inundações - onde o sujeito pode apelar para o Estado com as situações vividas na ditadura, onde o Estado é o agente da violência.

 

Falou-se dos fundamentais laços de amizade, ligações políticas, companheirismo vivenciado na cela e no exílio, o retorno à vida familiar e profissional.

 

A escrita, as artes plásticas, o artesanato, a participação em organismos sociais continuam sendo estratégias de luta e resistência. As angústias intoleráveis algumas vezes apareceram em forma de poesia, como a de uma paciente que expressa assim a sua dor:

 

                Dor Sufocada.

                Tenho um berro encurralado no meu peito

                Uma dor sufocada.

                Amarrada com lágrimas permanentes

                O passado passa

                Em meus pensamentos fracassados

                Já não sei sorrir

                A vida com o passado se foi

                Levou tudo

                Mas esqueceu de levar a dor


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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