voltar à primeira páginaResumo Este artigo pretende percorrer os diversos destinos do representável e do irrepresentável na vida subjetiva dos sujeitos acometidos pelo trauma da tortura. O autor partirá da ideia do exílio como um estado de silêncio e ruptura absoluta, para ir à busca do campo testemunhal e simbólico. Para tanto, a clínica do testemunho como testemunha do testemunho será a possibilidade de resgate de uma subjetividade destroçada ou do restabelecimento da narração do traumático pela voz do exilado. Palavras-chave tortura; testemunho; trauma; representação; exílio; clínica do testemunho. Autor(es) Rodrigo Blum é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, atuando no Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise. É terapeuta da instituição Projetos Terapêuticos. Notas 1. P. Gay, Freud: Uma vida para o nosso tempo, p.?567. 2. P. Gay, op. cit., p.?568. 3. R. Waintrater, Sortir du génocide - temoignage et survivance. 4. C. e S. Botella, Irrepresentável: mais além da representação, p.?27. 5. M. Seligmann-Silva. "Narrar o Trauma - A Questão dos Testemunhos de Catástrofes Históricas". 6. R. Waintrater, op. cit. 7. R. Waintrater, op cit. 8. R. Waintrater, op. cit. 9. P. Gay, op. cit., p.?570. Referências bibliográficas Abraham N.; Torok M. (1995). A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta. Koltai C. (2014). O testemunho entre História e Psicanálise. Revista de Psicologia da usp. São Paulo (n. especial no prelo). Botella, C. e S. (2002). Irrepresentável mais além da representação. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul: Criação Humana. Gay P. (1989). Freud: Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras. Seligmann-Silva M. (2008). Narrar o trauma - A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 20, n.1, p.?65-82. Waintrater R. (2003). Sortir du génocide - temoignage et survivance. Paris: Petite bibliothèque Payot. Abstract This article intends to go through the various destinations of the representable and the unrepresentable in the subjective life of individuals affected by the trauma of torture. The author starts from the idea of exile as a state of silence and absolute breakdown, and than goes into a search through the field of witnesses and symbolic. Therefore, the clinical evidence of witness's testimony will turns possible to rescuing the shattered subjectivity or the restoring of the narration of traumatic experience through the exiled voice. Keywords torture; testimony; trauma; representation; exile; clinic of the testimony. voltar à primeira página
| | TEXTOA clínica como testemunha: silêncio e representaçãoThe clinic as a testimony: silence and representation
Rodrigo Blum
O trabalho, mesmo pouco, continuava a ser para Freud a melhor defesa contra o desespero. Seu irônico senso de humor também não o abandonou por completo. Logo antes das autoridades permitirem a partida dos Freud, elas insistiram em que ele assinasse uma declaração de que não o haviam maltratado. Freud assinou, acrescentando o comentário: "Posso recomendar altamente a Gestapo a todos"[1]. A ironia expressa nesta frase de Freud nos leva junto com ele para os mais profundos dos ambivalentes sentimentos humanos. Ironia não percebida pelos agentes da SS, segundo Peter Gay, mas altamente carregada de risco e agressividade. O que teria feito Freud "elogiar" os nazistas em um momento tão peculiar e delicado, como o de sua liberação? - pergunta-se Peter Gay. Os acontecimentos subsequentes mostram que a liberdade tão esperada não significaria para Freud a plena liberdade desejada. Uma forte sensação de morte iminente o acompanhava rumo ao exílio, e o desejo de morrer em Viena pairava em pequenos atos falhos. Gay assim coloca: "Freud encarava o exílio com uma profunda ambivalência, em parte inconsciente: ‘O sentimento de libertação', iria escrever em sua primeira carta de Londres, ‘vem muito intensamente mesclado com a tristeza, pois ainda amava-se muito a prisão da qual se fora libertado'"[2]. O silêncio do exílio Londres foi para Freud o lugar de seu refúgio. Entretanto, como bem sabemos de sua teoria, não existe refúgio para a pulsão de morte. Com o exílio, Freud conseguiu sua libertação, mas não sua liberdade. O sentimento de descrédito no ser humano, algo que sempre o acompanhou, ganha no exílio um desfecho ainda mais categórico. Se a guerra o fazia ter absoluta certeza do mal radical que mora no humano, o exílio o transporta para o mais elevado nível de desamparo. Nem mesmo a convivência dolorosa com o inimigo câncer tinha anulado sua vitalidade, seu poder de observação e seu notável dom de expressão. O exílio não tirou por completo a capacidade de Freud trabalhar, nem o fez totalmente improdutivo. Já em Londres, volta a escrever cartas aos amigos e publica o importante texto Moisés e o Monoteísmo. Porém, algo do estranho, do estrangeiro estava incrustado em seu discurso, em suas manifestações, em sua alma. O exílio não era mais somente um lugar de língua inglesa, o exílio já tinha a cara do Unheimlich. Curiosamente o exílio carrega para Freud a ambivalência pulsional. Se, por um lado, representa a possibilidade de uma libertação, de uma vida "nova" para ele e para sua família, traz em seu bojo estrutural a certeza da destrutividade. Muito mais do que entendê-lo como o lugar da distância geográfica, ou ainda, o refúgio único para uma sobrevida, temos que começar a pensá-lo como o polo simbólico entre a força do silêncio traumático e a representação tecida no campo da irrealidade. Antes de tomarmos os destinos do representável e do irrepresentável na vida subjetiva dos sujeitos acometidos pelo trauma da tortura, ou ainda, antes de tratarmos do significativo silêncio que se instala nas vidas destas pessoas, cabe aqui sublinhar que o exílio a que me refiro é um estado. Um estado de desapropriação psíquica e afetiva. Um estado de profunda solidão e terror, em que a experiência traumática interrompe a atividade psíquica do sujeito e o lança a um tempo e espaço estrangeiros, um fora do campo simbólico. Neste sentido o exílio é um estado, um estado de sítio, um estado de ruptura, um mal estado. Quando um sujeito é sequestrado em seu profundo estado de pertencimento, o estado de empatia com o mundo se desmorona. Os sentimentos de abandono e de desfiliação completa se mostram presentes e absolutos. O pior dos exílios é aquele em que o sujeito se vê exilado em si mesmo. O exílio é bidimensional. É este o estado - bidimensional - de silêncio e de irrepresentabilidade que o traumático produz. O campo do abandono, o outro lado do estranho, o não familiar, a marca profunda e permanente do mal radical, a ruptura trágica com o pacto social. Como afirma Regine Waintrater: Essa negação do pacto social constitui para as vítimas da violência extrema a catástrofe que vai deixar marcas indeléveis em seu psiquismo. Todos afirmam: a lembrança dos golpes se atenua com o tempo. O que, por outro lado, nunca se atenua é o sentimento de ter sido abandonado pelo mundo. Quando o ambiente não se mostra capaz de ajudar, é o próprio sentimento de pertencimento à espécie humana que foi atingido. Ora, é em primeiro lugar essa ideia de um mundo empático que os torturadores de toda obediência procuram destruir, ao isolar a vítima e fazê-la acreditar que ninguém mais virá em seu auxílio porque foi abandonada por Deus e pelos homens[3]. O traumático, a representação O estado de silêncio vivido pelas pessoas exiladas de suas próprias vidas é traduzido na literalidade da memória traumática. A irrealidade, o sentimento absurdo de ruptura com o mundo se apresenta na impossibilidade severa de representação. O traumático carrega em seu núcleo a impropriedade da dimensão temporal. Na memória do trauma, o sujeito está encapsulado em uma estrutura rígida, inflexível e impermeável. O estado embalsamado, ou ainda, exilado, a que a subjetividade está transformada, é marcado por uma ausência de representação, uma impotência simbólica, um imaginário chapado, traumatizado. Desamparado, o sujeito está submetido ao mais alto dos riscos: o risco de não representação. Muito mais do que a perda do objeto, a ameaça da perda de sua representação representa o mais profundo dos abismos. Portanto, como nos coloca Botella: "O perigo da perda da representação provoca um verdadeiro vazio com efeitos implosivos, jogando a percepção odiada para dentro do psiquismo; equivalente fantasmático da representação dissipada, a percepção importuna invade a cena"[4]. A este estado de linearidade e repetição advinda do buraco traumático, é necessário se opor com a imaginação. Somente um espaço de imaginação é capaz de reconstruir a tridimensionalidade advinda da simbolização. É necessário acreditar no fracasso da intervenção analítica habitual e, sobretudo, interpretativa, para criar-se um dispositivo verdadeiro de investimento na via alucinatória. Mas afirmar que a figurabilidade é a única forma de restabelecer o mundo subjetivo, e que a tridimensionalidade só assim será reconstruída, significa afirmar que uma relação bidimensional está instalada neste sujeito. Como então entender a inflexão imaginária e representacional nesta travessia dimensional? Qual será, portanto, o lugar testemunhal nesta difícil tarefa de libertar o sujeito do duplo vínculo a que ficou aprisionado no exílio? A geometria nos ensina que para que tenhamos um plano tridimensional é necessário um ponto de fuga. Um ponto a partir do qual a perspectiva aconteça e a profundidade se estabeleça: um terceiro ponto. Sem a prontidão de um ponto de fuga, sem a criação de outro ponto de vista, é impossível atingirmos a profundidade e a perspectiva de uma nova dimensão. A possibilidade de resgate do sujeito exilado em sua memória traumática é criar esse ponto de fuga: um plano de simbolização e um espaço de tridimensionalidade. Vamos então estabelecer como ponto de fuga o testemunho. Porém, aqui a apropriação do lugar testemunhal será acrescida de outra dimensão: o plano da clínica. A clínica do testemunho Antes de passarmos mais propriamente a tratar da clínica e de seu lugar como testemunha, é importante dar escuta à força simbólica em que está apoiada a ideia de testemunho. O testemunho de sobreviventes das atrocidades humanas é a prova viva da ruptura do silêncio e do exílio. Testemunhar é muito mais do que narrar uma história, muito mais do que estabelecer um relato memorial dos fatos. Muito além de desvelar uma experiência traumática, testemunhar é, sobretudo, restabelecer o plano tridimensional de sustentação simbólica. O testemunho é sempre único e insubstituível, como afirma Marcio Seligmann-Silva[5]. E principalmente guarda em si a propriedade de uma singularidade. Será a impressionante propriedade de ser singular que nos proporcionará entender o alto grau de liberalidade que se testemunha na escuta do testemunhar. Para Regine Waintrater: O testemunho é um relato que conjuga uma reflexão do sujeito sobre sua vida e a descrição de acontecimentos aos quais ele foi submetido e que fazem do narrador uma testemunha. Todo testemunho contém um endereçamento ao outro, o destinatário potencial, aquele que está lá para acolher o testemunho e se tornar a testemunha da testemunha. Ao ‘proceder do Outro' como diz P. Ricoeur, o testemunho institui relações codificadas que giram em torno de uma procura partilhada da verdade[6]. Só se pode entender a veracidade de um testemunho se ele for escutado, testemunhado, por um outro, por um grupo, por uma clínica, por uma sociedade. Não existe testemunho em um plano bidimensional. Não existe possibilidade de existência testemunhal sem o desejo de um coletivo, sem aquele que possa portar o testemunho a fim de lhe dar ao mesmo tempo uma dimensão singular e simbólica. A singularidade de todo testemunho é ao mesmo tempo única e plural. Única na medida de sua autenticidade pessoal, e plural em seu caráter discursivo. Sua mensagem singular carrega uma potencialidade própria capaz de transmitir uma polaridade. De um lado a linguagem é portadora de uma singularidade absoluta, por outro é sempre universal. É por meio da universalidade discursiva que poderemos entender o testemunho como a única via de restabelecimento de uma dimensão simbólica. A literalidade da situação traumática, sua força em achatar por completo o imaginário, trava o poder de simbolização. Afirmar a passagem de uma singularidade estéril para uma ficcionalidade fértil significa apostar na ruptura com a literalidade do duplo vínculo. O duplo vínculo a que está aprisionado todo exilado entre a tortura e o silêncio, entre a cena traumática e o irrepresentável, entre a memória e a justiça. A quebra desta literalidade bidimensional se dará pela via do imaginário, como afirmamos antes. Porém, para atravessar o dilema da literalidade singular, será necessário o rompimento com o âmbito factual do testemunho. A expressão mais forte e contundente do testemunho jurídico não nos serve como ponte entre a esterilidade da sobrevida e a vida. Somente e tão somente uma radicalidade ficcional, proveniente da quebra entre o fato e a narração, é que poderá transportar novamente o sujeito à dimensão simbólica. Assim, ainda que entendamos a coerência e importância do plano testemunhal atribuído à memória e à justiça, não podemos mais destinar unicamente a esse âmbito linguístico o lugar do testemunho. O plano da memória, mas principalmente a engrenagem da justiça, possui como pano de fundo a verdade dos fatos, a literalidade da prova e, sobretudo, a fragmentação do real. O testemunho a que testemunhamos e que, fundamentalmente, chamamos à luz do discurso coletivo não aceita o restritivo lugar da literalidade do evento; nem tampouco o palco da historiografia proveniente da memória. Não se trata aqui de recusar ou menosprezar a importância destas duas áreas: muito ao contrário, não se tem testemunho sem a justiça ou a memória. Entretanto, não se faz justiça e memória sem testemunhar o testemunho. Se é certo que para se ter um testemunho vivo é necessário uma testemunha, é certo também que para uma realidade tridimensional precisaremos de uma dimensão imaginária. Abandonar o binômio justiça-memória e lançar-se ao campo do imaginário significa estabelecer um terceiro ponto de vista ou, ainda, de expressão. Como bem nos traduz Regine Waintrater: Tanto a testemunha quanto aquele que recolhe o testemunho são delegados pelo grupo, o primeiro pelo grupo dos desaparecidos e o segundo pela sociedade, que o envia a recolher uma palavra que não soube escutar quando foi preciso. Nesse processo, a sociedade é o terceiro mandatário: é ela que representa aquele que recolhe o testemunho e é a ela que se dirige a testemunha em seu relato. Aquele que aceita ser a testemunha da testemunha deve saber que está se engajando numa ruela estreita entre as necessidades contraditórias da testemunha e da impossibilidade parcial de responder a elas. Para a testemunha se trata sempre de um momento importante, tenha ele já testemunhado anteriormente ou não, uma vez que se vê confrontado a uma missão que teme e deseja ao mesmo tempo. Por isso que sua palavra é sempre ambivalente, já que se arrepende de testemunhar no exato momento em que o faz. Sua demanda para aquele que colhe seu testemunho é múltipla e paradoxal e constitui um desafio que ambas as partes precisam explorar[7]. É a radicalidade da clínica do testemunho que se mostra presente e amplamente responsável pelo seu teor representacional. A clínica será, então, protagonista do mais alto plano da testemunha do testemunho. Eleger a clínica como portadora de um caráter imaginativo e definitivamente estabelecê-la como testemunha significa reconhecer e comprometer o lugar clínico como o mais verdadeiro e radical laço social. Neste sentido a clínica que toma o testemunho como testemunha é em seu cerne uma clínica do social, ou ainda, uma clínica testemunha do mal social. A clínica que acolhe um testemunho, seja ela individualizada ou grupalizada, está e sempre estará atravessada pelas marcas da memória, pelos traços dos esquecimentos, pelas leis do silêncio, pela desfiliação coletiva e pelo compromisso de uma humanidade. Tratar a clínica como testemunha significa abandonar de certo modo o registro da interpretação para situar como paradigma o registro da identificação. O caráter identificatório vem a serviço de uma abertura para o imaginário, abertura esta que parte de um princípio clínico psicanalítico, ou seja, uma escuta ampla e radical para o singular e plural. O reconhecimento de uma identidade comum, dado pela testemunha ao testemunho, provoca um laço identificatório onde aquele que narra o trauma esforça-se por transmitir sua experiência e aquele que o acolhe se debruça em imaginar. É a partir desta capacidade analítica de imaginar o inimaginável que a clínica se propõe a ser a testemunha do testemunho. Uma tentativa com a profundidade e tridimensionalidade que se exige ao oferecer um campo de simbolização razoavelmente seguro de partilha de um mesmo objeto. É nessa dimensão de subjetivação que a clínica se estabelece como o registro da testemunha. Testemunha esta que guarda em seu interior o laço com o restabelecimento do pacto social, ou ainda, com a reconquista de uma confiança destruída em seu nível mais primário. Mais uma vez, como tão certeiramente nos apresenta Regine Waintrater: Essa dimensão de subjetivação pelo Outro constitui o essencial da transação do testemunho. Ao dizer você viu isso, aquele que ouve restabelece um tu lá onde o eu frequentemente se perdeu. A construção que pode advir nesse momento é um esforço de recentramento sobre a história do sujeito e uma tentativa de amenizar a carência representativa engendrada e mantida pelo efeito traumático. Essa é a razão pela qual aquele que acolhe o testemunho deve estar atento às mínimas manifestações afetivas, reconhecê-las e usá-las como um fio de Ariadne ao longo de todo o processo de testemunho[8]. Voltamos do exílio. Chegamos o mais próximo do que se possa chamar de confiança essencial para uma refundação de territórios: a clínica como testemunha do testemunho. A clínica do testemunho como testemunha do testemunho será a possibilidade de um resgate de uma subjetividade destroçada ou do restabelecimento da narração do traumático pela voz do exilado. Aquele cujo retorno só será possibilitado pela transitória, porém fiel, transferência da atestação dos fatos em revelação de uma verdade. Trajetória cruel, porém única, onde o literal relato dos fatos, do real, assume uma dimensão imaginária e quiçá simbólica. O testemunho ganha em cores, formas e dimensões. Saindo de um exílio bidimensional, onde o duplo vínculo reina ditatorialmente e a tortura eterniza a prisão, para uma ficcionalidade tridimensional, em que as fraturas, os silêncios e as representações ganham espaços testemunhais. Pouco antes de a guerra chegar a Maresfield Gardens, ainda usufruindo da boa acolhida dos ingleses e de uma produtividade impressionante, Freud sofria com sintomas que identificava como culpa de sobrevivente. Peter Gay assim descreve: Tinha percebido uma verdadeira inibição ao responder à carta de seu irmão, pois ele e a família estavam muito bem, quase bem demais. Embora Freud não mencionasse as irmãs que haviam ficado em Viena, evidentemente elas ocupavam seus pensamentos. E Freud estava sentindo as aflições do exílio. "Talvez o senhor tenha omitido o único ponto que o emigrante sente de forma tão particularmente dolorosa", escreveu a um ex-analisando, o psicanalista suíço Raymond de Saussure, que lhe enviara congratulações pela sua fuga. "É - inevitável dizer - a perda da linguagem em que se vivera e pensara, e que nunca se poderá substituir por outra, apesar de todos os esforços de empatia." Freud estava tendo problemas até mesmo em renunciar à sua costumeira "escrita gótica". Era uma ironia: "Disse-se com tanta frequência que não se é alemão. E, de fato, fica-se contente que não precise mais ser alemão"[9]. Foi no exílio na Inglaterra que Freud morreu em 23 de setembro de 1939. O mesmo exílio que lhe deu libertação tratou de lhe tirar o resto de esperança que nutria pela humanidade. Entretanto, se é verdade que ao final da vida ele se via ainda mais exilado em si mesmo, não é preciso muito para dizer que Freud foi muito mais além do próprio exílio. Sua obra é testemunha de seu testemunho. Sua clínica, a mais importante testemunha de sua obra.
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