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Resumo
No bojo da vivência traumática, o sujeito fica acossado na posição de vítima silenciada. O texto aborda a transferência atratora da violência intrapsíquica para transformá-la em investimento intersubjetivo possível de ser elaborado (Green), e retoma exemplos de trabalhos coletivos que enfrentam a violência sofrida pelo sujeito psíquico e por grupos envolvidos (Viñar). A abertura intersubjetiva permite outras identificações ao sujeito desvitimizado.


Palavras-chave
trauma; vítima; transferência; desvitimização.


Autor(es)
Mara Selaibe
é psicanalista, aluna do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em Psicologia Social.


Notas

1.        G. Agamben, Estado de exceção.

2.        Apud G. Agamben, op. cit.

3.        M. A. A. C. Arantes, Tortura.

4.        G. Agamben, op. cit., p.?15.

5.        G. Agamben, op. cit., p.?13.

6.        G. Agamben, op. cit., p.?61.

7.        S. Freud, (1913), Totem e tabu.

8.        S. Freud (1930), O mal-estar na civilização.

9.        S. Freud, op. cit.

10.     J. Lacan (1955-56), O Seminário. Livro 3: As psicoses.

11.     M. P. Fuks, "Nos domínios das neuroses narcísicas e em suas proximidades".

12.     M. P. Fuks, op. cit., p.?208.

13.     E. Gaspari, 1964... p. A-10.

14.     E. Gaspari, op. cit., p.?A-10.



Referências bibliográficas

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Abstract
When traumatized, the subject becomes corned in the position of being silenced victim. This work deals with the transference attraction of intrapsychic violence to transform it into intersubjective investiment capable of being worked through (Green). It also refers to examples of group works, which challenge the violence experienced by psychic subject and by the collectives involved (Viñar). The intersubjectivity opens for the subject possibilities of other identifications to get him out of the victimezed position.


Keywords
trauma; victim; transfer; out of victim position

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 TEXTO

Desvitimização: trabalho psíquico

Unvictimization: psychic work
Mara Selaibe

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.[1]

 

O silêncio pós-traumático

O vácuo de palavras que sucede a uma brutalidade vivida indica a impossibilidade de integração dos afetos produzidos pelo acontecimento. Nessas circunstâncias a elaboração das cenas sofridas e protagonizadas não será alcançada. O silêncio acompanha por longo tempo, muitas vezes para sempre, o cotidiano dos envolvidos em situações de ameaça a suas vidas. Não é permitida a expressão daquilo que, dada sua violência, não pôde ser inscrito psiquicamente. Buracos de sentido derivam do terror. Restam o susto e a intensidade obscura, sem nome nem contorno; invasão incompreensível de vazios subjetivos inomináveis. O silêncio mortífero reflete o que não faz traço, não tem registro, mas que deixa marcas, e se configura como fonte de sofrimento individual e social.

 

O risco do fechamento emudecido e ancorado na chaga subsequente à vivência traumática purgará feito ferida infeccionada na carne, contaminando o que possa haver de vital e de experimental. Os processos e estados emocionais presentes num momento assustador são diversos daqueles que têm lugar em estado de relativo equilíbrio ordinário. Nestes uma hermenêutica pode ser criada e partilhada pelo sujeito do acontecimento. Naqueles dá-se a quebra psíquica que lança cada sujeito para o lugar de assujeitado e desamparado.

A força da realidade arrebatadora trin

ca o eu e rompe seu contorno, impedindo a formação do traço da experiência a partir do qual o sentido pode vir a ser criado: sem traço psíquico, sem significação e afogado em signos desprovidos de associações, atulhado de uma espécie de figurabilidade sem acesso representacional, sem semiótica possível. Nem memória: o espaço da memória não opera a função de recordar, mesmo tendo sido marcado. Resta um presente que não cessa de acontecer. Não há mais temporalidade: o que passou não passa e o que poderia advir não se elabora: presença invasiva de uma brutalidade atual regida pela compulsão à repetição.

 

Como, então, dizer e compartilhar? Essa a indagação diante da não memória dos soldados: nenhuma história a narrar... Eles carregavam o peso do impossível de ser experienciado, apesar de ter sido infringido contra suas vidas como ameaça de morte.

 

[...] o que se ausenta não é simplesmente o relato do vivido, mas ocorre a pulverização da própria experiência como um acontecimento compreensível. O que aconteceu na Grande Guerra mostra a relação inseparável entre experiência e relato [...] chamamos experiência ao que pode ser posto num relato, algo vivido que não apenas se sofre, mas que se transmite. Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunha [...][2].

 

O trauma impõe ao sujeito psíquico um desmanchamento das referências que o sustentam como tal e, com isso, o impede de lidar com o que lhe acontece elaborando suas experiências. O eu trincado não é capaz de simbolizar e tampouco recalcar. As vivências, na forma de repetição compulsiva de imagens e sonoridades oriundas da cena traumática, apoderam-se do território psíquico. Somatização e despersonalização podem ocorrer quando o psíquico encontra-se impedido de suas funções. A cisão do eu não deixa de operar como um esforço limite para eliminação da repetição; também pode ocorrer de as cenas traumáticas insistirem em se (re)apresentar nos sonhos e pesadelos do sujeito, acabando por gerar uma reatividade ao sono. A insônia, povoada de angústias espraiadas de maneira atormentadora, fazem-no recair nele, obrigando-o à contundência daquilo que lhe é insuportável. A compulsão à repetição pode chegar a ser a própria iniciativa de retorno à cena traumática, ainda que aparentemente modificada, numa busca do sujeito de dominar aquilo que lhe domina. Não há meios de o sujeito encontrar o alívio que deseja se permanecer isolado e cercado pelo traumatismo.

 

O efeito traumático é produzido pelo excedente de angústia não passível de simbolização e não representável por meio da palavra. Sendo transbordadas as defesas, uma angústia automática, catastrófica, avassala o eu, impondo um estado de estupor, paralisia, inermidade, desvalimento e desamparo. Impõe-se um padecimento impossível de suportar, incompreensível, impensável e indizível[3].

 

Quem escuta

"Incompreensível, impensável e indizível", mas que pode ser acolhido e escutado. A escolha ética de se escutar um ruído no silêncio de quem não pode falar permite a configuração de um espaço de reconhecimento da angústia desmesurada. Abre-se uma chance de cumplicidade para a busca de uma movimentação psíquica, para a retomada da palavra e de sua inserção na rede de pensamento. A ruptura no eu causada pelo trauma interrompe o fluxo da vida psíquica também por impedir o luto necessário para que ele transcorra.

 

A mudança exigirá não o apagamento puro e simples ou a exclusão do vivido, mas sua relativa inclusão psíquica por um caminho de reanimação da experiência emocional e sua tentativa de elaboração. A presença da alteridade é uma demanda jamais dispensada nesse percurso. A alteridade é que mediará junto ao sujeito a possibilidade de se apropriar da experiência e alocá-la na rede simbólica transmissível que inclui todos humanos.

 

A desvitimização é também a consecução do lugar de testemunha. Esta inscreve psiquicamente o acontecimento e o sustenta na memória, estando apta a expressá-lo. O testemunho pode se dar quando quem viveu um acontecimento encontra-se em condições de narrá-lo para um outro. Para narrá-lo é necessário tê-lo inscrito. Mas como tornar possível a fala expressiva, a narrativa, quando o vivido encontra-se indizível?

 

Espera-se daquele que se dispõe a escutar um testemunho que o reconheça como tal. Quem escuta também se coloca no lugar de testemunha do relato, viabilizando uma cadeia afirmativa do acontecido e subjetivamente vivido. Então, o essencial: escutar o indizível exige, primeiramente, se dispor a suportar sua transferência, fazer-se testemunha do efeito da violência perpetrada contra o sujeito que, sob tal condição, talvez possa alicerçar algo de sua própria narrativa testemunhal. Um processo de tal amplitude habilita a tecer condições necessárias efetivas para a elaboração: o reconhecimento, para além do si mesmo, de que o vivido - da ordem do enlouquecimento e da ameaça de morte - pode, a partir de então, e com ajuda, ser nomeado justamente como algo com poder de enlouquecimento e morte e que reclama ser psiquicamente contido e trabalhado.

 

O recurso da transferência dará sustentação ao nascimento da narrativa oral cujo objetivo será constituir um movimento reparador e uma chance de saída da posição violentamente estereotipada de vítima passiva. A alteridade precisa estar imbuída de confiança e pronta a reconhecer a legitimidade da busca de criação de sentido pela inserção do traumático na cadeia de representações psíquicas. Escreve Jacques André: "[o] acontecimento traumático só se transforma em abertura - e não simplesmente em recalque - se encontrar alguém para escutá-lo"[4].

 

1. André Green tem uma concepção teórica sobre a pulsão de destruição que auxilia a pensar a elaboração da vivência traumática numa experiência apta a ser reconstruída pela memória. Para ele o trabalho depende do manejo específico da transferência-contratransferência, tomando em conta o par pulsão/objeto. Seu entendimento sobre a pulsão de morte altera algo diante da segunda teoria freudiana das pulsões: a pulsão de morte é entendida como função de desinvestimento. O desinvestimento pode chegar a atingir até mesmo a unidade narcísica básica (narcisismo de morte), desorganizando o universo psíquico. E nessa dinâmica não apenas a força da pulsão estará em jogo, mas o objeto está implicado na ação e no modo de ação da pulsão de morte. O objeto não é o que sofre a ação da expulsão primária da pulsão de morte, mas ele a instiga e a mobiliza num processo conjunto pulsão-objeto. Em sua mudança de concepção teórica sobre a pulsão de morte, propõe renomeá-la: pulsões de destruição. Segundo Green, elas agem nas direções interna e externa e os territórios de sua ação são intrapsíquico e intersubjetivo. Em sua maneira de propor o entendimento sobre a operatividade não apenas das pulsões de morte, mas também das pulsões de vida, renomeia o par de conceitos a ser considerado como função objetalizante e função desobjetalizante.

 

[...] os grandes mecanismos descritos por ele [Freud] como características da pulsão de vida e da pulsão de morte são a ligação e o desligamento. Essa ideia é correta, mas insuficiente. [...]

 

         Sugerimos a hipótese de que o objetivo essencial das pulsões de vida é assegurar uma função objetalizante.Isso não significa apenas que seu papel seja o de criar uma relação com o objeto (interno e externo), mas também que ela se revele capaz de transformar estruturas em objeto, mesmo quando o objeto não está diretamente em questão. [...] Esse processo de objetalização não se restringe a transformações tão organizadas quanto o Eu, mas pode se referir a modos de atividade psíquica, de tal maneira que, no limite, é o próprio investimento que é objetalizado. Este conduz, portanto, a distinguir o objeto da função objetalizante, onde, evidentemente, a ligação, acoplada ou não ao desligamento, entra em jogo. [...]

 

Inversamente, o objetivo da pulsão de morte é realizar, tanto quanto possível, uma função desobjetalizante pelo desligamento. Essa qualificação permite compreender que não é somente a relação com o objeto que é atacada, mas também todos os substitutos deste - o Eu, por exemplo, e o fato mesmo do investimento na medida em que ele sofreu o processo de objetalização[5].

 

Para Green, a compulsão à repetição (campo da desobjetalização, do narcisismo mortífero) não se reduz a uma problemática pulsional do sujeito que opera por automatismo. Ela se instala quando não é possível alcançar uma solução propícia ao funcionamento pulsional e ao funcionamento do objeto primário. Implica a falta de condições em renunciar à satisfação bem como uma busca de expulsar a frustração do psiquismo. Seu objetivo está na eliminação do que causa dor psíquica pela via da alucinação negativa (nem pela ação transformadora que encontra a satisfação e nem pela satisfação alucinatória); essa espécie de atuação - agierem - procura a eliminação da pressão pulsional, da posição passiva e do desamparo: uma dessimbolização do ato.

 

Há, pois, uma dificuldade em sair do submetimento imposto pela compulsão à repetição, desobjetalizante, responsável pelo circuito intrapsíquico decorrente do trauma, em direção a uma ligação de outra qualidade, intersubjetiva, objetalizante. A descarga insistente (cujo objetivo é a destruição de si mesma, mas que afinal se retroalimenta) necessita ser transferida ao analista: este terá de se dispor à sua violência, terá de sobreviver a ela e, ainda mais, sob esses ataques terá de seguir capaz de oferecer interpretações ao sujeito. Nessa operação transferencial está sendo visada a fusão de libido sádica à intensidade mortífera. Na fusão, a libido conduzirá à retomada do investimento objetal e o sujeito poderá conseguir se reapropriar do "jogo da representação", voltando a experimentar a vida onde estava instalada a fixidez da morte[6].

 

O outro ocupa um lugar irredutível na constituição psíquica e, portanto, o trabalho clínico acima descrito é sempre um trabalho da cultura que implica investimento libidinal objetal. Seu modelo encontra-se na arquitetura subjetiva mais íntima e estruturante oriunda da rede humana singular, historicamente datada. Apoiado e sustentado nessa rede, o corpo nascente e pulsante percorre seu trajeto humanizador. O aspecto dinâmico da psique deixa entrever tal condição.

 

Mas as violências e os traumas não são iguais: o que ataca de fora não tem a mesma qualidade originária inconsciente da relação arcaica entre pulsão e objeto. Entretanto, diante de ataques externos nem todos emudecem e se sentem impossibilitados, paralisados pela invasão da violência que sofrem. Cada qual desenvolve, amparado pelo objeto primordial, os próprios arranjos para forjar sua unidade narcísica mais ou menos instável. Também por isso, pessoas diferentes reagem de maneiras distintas. Mas há limites.

 

O entendimento possível sobre a ocorrência histórica e social de um evento da realidade considerado traumatogênico também é fator determinante (diferentemente: guerra, guerrilha, tortura, estupro, violência criminal, vivências repetidas de privação, desemprego prolongado, assassinato e desaparecimento de pessoas amadas, tragédias causadas pela natureza). Seus compostos tecem as circunstâncias que irão corroborar na eclosão diruptiva, traumática, bem como na exigência transferencial feita ao outro analítico. No entanto, a objetalização, por princípio dinâmico, rompe o circuito intrapsíquico solipsista e atinge identificações cristalizadas.

 

Por exemplo, na situação de identificação com o agressor, Ferenczi descreve o movimento em que a vítima - desesperada pela condição à qual está submetida - se coloca inconscientemente do lado do agressor, na esperança de retomar o controle sobre o que está vivendo.

 

[...] este medo, quando atinge o seu ponto culminante, obriga a vítima a apresentar-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se completamente de si mesma, e a identificar-se totalmente ao agressor. Por identificação, podemos dizer introjeção do agressor, este desaparece como realidade externa e se torna intrapsíquico[7].

 

O conceito de identificação com o agressor implica a ativação da culpa: se o agressor foi introjetado à vítima, ela agora se percebe como ativa, na condição de seu próprio agressor: passa a ser o destinatário de toda série de violências contra si mesma; ela se considera perpetrador e vítima, ao mesmo tempo. Nesse processo, a violência, entre outras, trata de retirar ou diminuir a responsabilidade do agressor. Como consequência, o sujeito passa a desculpá-lo com argumentos que justifiquem as razões por ele ter agido como tal. Capciosamente, a vítima se coloca como responsável pelo ocorrido e merecedora de mais agressão. Esse sistema tem efetividade e duração, ainda que se instale como uma busca para minimizar a intensidade de seu sofrimento.

 

A proposição teórico-clínica de Green a respeito da necessidade de a transferência dar suporte à violência traumática, de modo a reativar a função objetalizante pela fusão de libido sádica ao que denomina função desobjetalizante, permite a quebra da montagem intrapsíquica descrita por Ferenczi. Se houve uma identificação ao agressor, essa mesma identificação é responsável pelo fechamento da dinâmica intrapsíquica que atinge o eu. O circuito da repetição traumática, cujo excesso intensivo mortífero patina sobre si mesmo, ao ser desviado transferencialmente ao psicanalista funda uma linha de fuga. Trata-se da fusão já descrita. Ela permite o desvio vital do intrapsíquico para o intersubjetivo - campo das identificações.

 

No enfrentamento das consequências psíquicas do acontecimento violento e de mecanismos como esse é preciso criar condições favoráveis à sua narrativa em alguma forma expressiva. A recuperação da fala proferida diante de um outro disposto a dar suporte à violência da transferência, não sucumbir a ela e interpretá-la explicita o vivido e gera oportunidade de uma experiência reparadora simbólica. Ao falar para alguém disposto a ocupar - e, ao mesmo tempo, não se identificar - a uma posição de objeto sadicamente libidinizada, alguém a priori isento de julgamento a respeito do que se passa e que acolhe a presença e as palavras do sujeito, por mais violentas que possam ser, como manifestações de sua verdade psíquica, a vítima é convocada a sair de seu lugar passivo e a ocupar uma posição ativa de fato. Ouvir-se e ser ouvido, disposto a ser interpretado, multiplica os sentidos do que é dito e dessa maneira introduz um interrogante suficientemente potente para interferir na lógica da culpa, pronto a fazê-la vacilar. São outras as identificações que entram "no jogo das representações".

 

2. Marcelo Viñar desenvolve o projeto Grupo de Palavras com crianças e jovens marginalizados, na cidade de Montevidéu. Nele os participantes têm a chance de proferir palavras subjetivantes, algo tão essencial a uma vida digna quanto o alimento. Segundo ele, esses jovens mostram-se "disponíveis e ávidos de interlocução, o que é suficiente para legitimar a continuidade da experiência"[8]. O autor postula como base para seu modo de ação terapêutica a carência dessas crianças também de modelos identificatórios positivos diante da dor do próximo, exatamente porque refletem e projetam a extrema miséria humana e violência de que foram vítimas. O Grupo de Palavras é um dispositivo cujo objetivo está em criar artificialmente as condições para outros modelos identificatórios por oferecer um cuidado ao ouvir e permitir que toda palavra tenha lugar numa escuta transferencial. Falar e ser escutado são considerados, na vida dessas crianças e jovens, "um processo faltante de humanização, que precocemente deveriam prover uma família suficientemente sadia e a escola"[9]. Essa escuta não é benevolente. Ela deve enfrentar a violência ali contida com força e sentido, sem se deixar escorregar para uma posição aplacadora.

 

Também ao retomar as narrativas de sobreviventes do holocausto, recolhidas por Steven Spielberg, Viñar nota a importância dessa prática chamando a atenção para seu longo alcance, para a desidentificação, podemos afirmar, com a posição passiva da vítima melancolicamente debruçada sobre sua angústia infinita:

 

Aqueles que recolheram os depoimentos contam que o que fazia bem aos que narravam sua história era quando se lhes dizia: "Esta fita cassete que você está gravando será escutada nas Nações Unidas, na Suíça". Não pode haver um fechamento entre as vítimas; é necessário que o testemunho transcenda o grupo dos que sofrem, que haja uma comunidade de escuta que seja sensível e que liberte a vítima do seu lugar de sofrimento. [...] Acredito que se deva buscar o que Robert Antelme[10] chama de "invenção de uma máquina que permita contar o horror para dele se poder sair!"[11].

 

Ainda de outro ângulo, Viñar retoma a partilha do testemunho ao descrever e comentar sobre a experiência acontecida na África do Sul, idealizada e levada a cabo por uma comissão de reconciliação pós-apartheid. Ali, os torturadores puderam ser anistiados apenas ao confessarem integral e detalhadamente seus crimes. Muitos torturadores narraram suas ações espúrias por horas intermináveis. Esse fato permitiu que a sociedade toda se inteirasse do ocorrido naquele longo período, e impediu que ela se dividisse entre os que tinham torturadores e vítimas na família e os que se sentiam distantes por não terem nada a ver com isso. Essa identificação opera como um analisador da cultura porque quem escuta experimenta a violência em condições de fazer-lhe frente psiquicamente. Um tal trabalho libera a vítima de ser a depositária única do ocorrido e implica o coletivo das comunidades negra e branca. Todos passaram a ser testemunhas do que se vivia e do que havia sido vivido ao longo do apartheid. Escreve esse autor:

 

Penso ser necessária a mediação de um terceiro. É necessário que a sociedade possa falar do nunca-mais, que a imprensa possa publicar, que possam existir peças de teatro e periódicos, que haja um exorcismo dos tempos de terror e que todos possam vê-lo. Isso distende a vítima. Quando o coletivo social acolhe, amortiza e serve de testemunha, a vítima se sente menos isolada. Quando a vítima é segregada, necessita de um lamento perpétuo até a sua morte, como se estivesse aprisionada numa memória sacrificial, num gemido perpétuo[12].

 

A fala é portadora do sentido. E o sentido é o que de mais importante o objeto pode prover ao sujeito para que este se sinta restabelecido ao universo humano de pertencimento. Anne Denis, cujo artigo é trabalhado por Green[13], afirma que nos casos de assassinato da alma - como são comuns nos universos concentracionários e nas ditaduras de Estado - aquilo que dispara o impulso assassino é o fato de a vítima possuir uma vida psíquica. O assassino da alma deve encontrar uma alma a ser assassinada; aliás, é justamente isso que o perpetrador não suporta e quer destruir. Ela atribui, como o faz também Green, à clivagem entre representância (représentance) e significância (signifiance) o desaparecimento de uma língua viva - como a poesia da língua materna que cria uma continuidade entre o corpo e a linguagem. Essa poesia é uma espécie de ponte entre o sentido e a significação, aquilo que para a autora "une a linguagem pré-verbal e a significação verbal". E essa ponte é atacada pelo trauma obrigando o sujeito a uma vivência sem sentido. Para Green, o sentido é que responde pelo holding, e não propriamente o objeto. "Dor psíquica e dor concentracionária se comunicam entre si [...]. A dor da dor é essa de não ser consolado em seu sofrimento."

 

Na lida infindável com a destrutividade radical humana coloca-se a questão do alcance e do limite da função da criação de vínculos identificatórios entre as pessoas, entre os grupos, entre as comunidades, entre as nações. Há intensidades de vivências que não se restringem ao espaço elaborativo do discurso individualizado. Os psicanalistas trabalham com sua singularidade forjada no território da cultura. Os coletivos humanos forjam outros tantos dispositivos ao acolhimento que é preciso disponibilizar às vítimas. Em todo caso, está irremediavelmente posta a exigência fundadora do sujeito de que sejamos todos reconhecidos como humanos desde o princípio de nossas vidas; considerados um entre os outros humanos durante a vida; sermos tratados como humanos na morte e lembrados como humanos após a morte. "O sentimento de pertencer à espécie humana implica sempre o outro como semelhante humano."[14]


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