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Resumo
A relação entre psicanálise e política é o centro da discussão: de que forma fomos marcados pelos anos de terror do estado? Separar a cidadania do exercício da clínica psicanalítica foi a postura adotada pelas instituições oficiais. Hoje, com as Comissões da Verdade e uma Clínica do Testemunho, passamos a nos haver com as sequelas do traumático e a questão do perdão.


Palavras-chave
perdão; política; punição; anistia; cidadania; tortura; terror.


Autor(es)
Miriam Chnaiderman Chnaiderman
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, doutora em artes, documentarista.


Notas

1.        A realização deste artigo e da pesquisa que o subsidia contou com o importante apoio do CNPq.

2.        M. A. A. C. Arantes, Pacto Re-Velado: Psicanálise e Clandestinidade Política. p.127.

3.        Sobre a estrutura e a função social do sacrifício, ver M. Mauss e H. Hubert, Sobre o sacrifício.

4.        Ver J. Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana.

5.        Estou me utilizando de uma variação da tradução da palavra forclusion do francês, do vernáculo lacaniano, ligeiramente diferente do sentido de encerrado fora, ou fechado do lado de fora como sugere a tradutora Lucy Magalhães na obra de Solal Rabinovitch. No presente caso penso ser mais apropriado sugerir a ideia do que é incluído fora, fora incluído, foracluído. Portanto, radicalmente incluído. Essa ideia me parece ter sido mais bem desenvolvida com a ideia de inclusão-exclusiva desenvolvida de modo original por Giorgio Agamben em Homo Sacer I. Ver S. Rabinovitch. Foraclusão: presos do lado de fora e também G. Agamben. Homo Sacer I: o poder soberano e a vida nua.

6.        O bandeirantismo paulista ainda hoje revela na cidade inúmeras marcas de um orgulho puído, mas bem preservado e ostensivo. Protagonistas de capturas, aprisionamentos, escravização, castigos e comércio da população nativa brasileira, os bandeirantes em suas incursões escravizaram populações indígenas inteiras aprisionadas, assassinadas ou exterminadas por nomes celebrizados como Raposo Tavares, Fernão Dias, Fernão de Camargo, Antonio Pedroso Alvarenga, Henrique de Cunha Gago, Jerônimo da Veiga e outros que hoje ainda batizam ruas, avenidas, rodovias e escolas na capital e em outras cidades paulistas. O monumento às Bandeiras, ironicamente nas cercanias do parque Ibirapuera - nome de origem tupi que significa pau podre ou árvore apodrecida -, revela ostensivamente a convivência ambígua com nossa tradição e os que a dizimaram.

        O Palácio dos Bandeirantes, a Rodovia dos Bandeirantes e a estátua de Borba Gato no bairro de Santo Amaro são peças que instigam a examinar as gravações citadinas homenageando assassinos do passado. A rota dos bandeirantes - circuito turístico sugerido como atração turística pelo interior de São Paulo - também atesta esse fascínio e ignorância sobre o bandeirantismo luso-paulista.

        Num momento em que no Brasil se luta para limpar das cidades brasileiras nomes como Ernesto Geisel, Camilo Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, permanecem intactos os monumentos erguidos para celebrizar os especialistas em escravagismo, aprisionamentos e atrocidades do século xvii. Esses emblemas revelam o quão profundo e atento deve ser nosso exame sobre o caráter da paradoxal democracia brasileira e a determinação dessas marcas latentes, que perduram incólumes na cidade e no Estado de São Paulo sendo banalizadas, preservadas e aceitas pelo conjunto dos citadinos que as ignoram. Sobre o paradoxo da democracia brasileira ver A. Peralva, Violência e democracia: o paradoxo brasileiro e P. Endo, "A ressurgência da tirania como elemento originário da política". Sobre o bandeirantismo em São Paulo, ver J. M. Monteiro, Negros da Terra.

7.        Ver M. Joffily, No Centro da Engrenagem: os interrogatórios na operação bandeirante e no doi de São Paulo (1969-1975), p.?42.

8.        Ver E. Gaspari, A ditadura escancarada, p.?59-67 e M. Joffily, op. cit., p.?43-44.

9.        Destaco aqui que, em episódio inédito nos tribunais brasileiros, Carlos Brilhante Ustra, ex-comandante do doi-codi, foi condenado a pagar R$100.000,00 para a família do jornalista Luis Eduardo da Rocha Merlino em sentença proferida em 25 de junho de 2012, em decorrência de tortura seguida de morte em 1971. Foi a primeira vez que a justiça brasileira sentencia a obrigação de reparação financeira por parte de um ex-torturador. Em 14 de agosto de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirma a sentença que reconhece o coronel Ustra, oficialmente, como torturador em ação movida pela família Teles.

10.     Como exemplo vale lembrar que tramita no senado a pec 51 de 2013, de autoria do senador Lindbergh Farias, que propõe a extinção da polícia militar e a unificação das polícias em nível federal. Essa pec não foi incluída na pauta de reivindicações para que fosse apreciada em caráter de urgência pelo Senado e pela câmara dos deputados, nem durante e nem após as manifestações de junho. No contexto geral das manifestações, ela foi praticamente esquecida.

11.     As analogias e comparações entre a inquisição e os interrogatórios em sistemas ditatoriais e totalitários são inúmeras. Algumas aproximações são meramente ilustrativas ou buscam uma semelhança simples, ou mesmo jocosa, tendo como elemento comum a crueldade e os arbítrios praticados tanto pelo tribunal do Santo Ofício, na caça aos hereges, quanto aos procedimentos comuns em regimes totalitários, especialmente aqueles dispensados nos interrogatórios das polícias e forças armadas. Nosso exercício breve pretende-se diferente e, para ser realizado a contento, dependeria de um exame exaustivo de bibliografia vasta, mais atinente a uma pesquisa de maior fôlego e tempo. O que apresento aqui são apenas pistas iniciais que ainda permanecerão carentes de continuidade.

12.     M. Joffily, op. cit., p. 98-149.

13.     A. Prosperi, Tribunais da consciência; inquisidores, confessores e missionários, p.?26.

14.     A. Prosperi, op. cit., p.?28.

15.     J. Ménéchal, "Une femme est brûllé", p.?75 (tradução minha).

16.     J. Ménéchal, op. cit., p.?79 (tradução minha).

17.     M. Joffily, op. cit., p.?135.

18.     M. Joffily, op. cit., p.?135.

19.     M. Joffily, op. cit., p.?135.

20.     M. Joffily, op. cit., p.?137.



Referências bibliográficas

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Tavares F. (2012). Memórias do esquecimento. São Paulo: L&PM.





Abstract
The relationship between psychoanalysis and politics is at the heart of the discussion: in which way were we imprinted by the years of terror by the state? Separating the citizenship from the practice of clinical psychoanalysis was the attitude adopted by the official institutions. Nowadays, with Comissões da Verdade [Committee of Truth] and Clínica do Testemunho [Clinic of Testimony] we have begun to face the aftermath of a traumatic past and the issue of pardon.


Keywords
pardon; politics; punishment; amnesty; citizenship; torture; terror

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 TEXTO

Tentando nomear o irrepresentável: marcas de uma história

Trying to name the irrepresentable: marks of a story
Miriam Chnaiderman Chnaiderman

1. Os fins e os meios

"A força é a razão de quem não tem razão"...até hoje me lembro do cartaz que um adolescente empunhava em uma caminhada diante da polícia em frente ao antigo Colégio de Aplicação, naquela época em uma travessa da av. São João. Esse cartaz apareceu na primeira página de um jornal paulista, falando do movimento de jovens secundaristas que haviam tomado o colégio quando seu diretor foi demitido por forças reacionárias da USP. Tudo isso antes que a sede da Universidade de São Paulo, na r. Maria Antônia, fosse tomada pelos estudantes, para depois ser invadida pela polícia na terrível luta com o Mackenzie, ou com o Comando de Caça aos Comunistas. Depois, aprendemos que, muitas vezes, a razão precisa da força para se fazer valer. Com o Ato Institucional n. 5, a luta armada passou a ser um dos instrumentos possíveis na luta contra a opressão. Os fins passaram a justificar os meios.

 

2. O que a psicanálise tem a ver com isso tudo?

Era o fatídico ano 1968. O Brasil explodia, por entre passeatas estudantis, mobilizações operárias, infinitas propostas revolucionárias. Yara Yavelberg era então uma estudante de psicologia. Era brilhante, estudiosa. Era líder estudantil e militava em uma das dissidências do Partido Comunista. A famosa rua Maria Antônia, onde se situava a maior parte dos cursos da USP, era o palco por onde, sempre linda e vestida exuberantemente, Yara aparecia. Não conhecera ainda seu futuro companheiro, o capitão Lamarca. Era namoradeira e muito cobiçada pelos rapazes que a rodeavam nos bares das redondezas e que existem até hoje. Foi presa em uma passeata. Imediatamente seus colegas se mobilizaram e organizaram um abaixo-assinado que circulou entre estudantes, professores e funcionários. Naquele momento lecionavam, no Curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, alguns didatas da Sociedade de Psicanálise de São Paulo. Supervisionavam o estágio que os alunos deveriam fazer na Clínica da faculdade. Uma reunião onde todos estavam presentes é interrompida com a entrada de um aluno com o abaixo-assinado na mão. Era muito importante que todos assinassem, pois se temia pela integridade de Yara Yavelberg. Nenhum psicanalista assinou. Alguns disseram batalhar pela liberdade de dizer não e que ser psicanalista implicaria uma imparcialidade em relação à política.

 

Hoje, passados cinquenta anos do cruel golpe que implantou a ditadura militar no Brasil, Marie Christinne Laznik, em uma entrevista para a revista Ensejo[1]de Goiânia sobre Regina Schnaiderman, relata não ter contado ao seu psicanalista, no conturbado 1968, que militava em um partido clandestino. Christinne teve que se exilar, nos anos 1970. Foi morar na França, onde está até hoje.

 

Pegar em armas e erotismo anal deveriam equivaler-se? Revolta edípica ou luta pela dignidade humana?

 

3. A psicanálise é libertária?

Entre 17 de setembro e 29 de outubro de 1980, aconteceu na PUC do Rio de Janeiro o Simpósio Psicanálise e Política, sob coordenação da Clínica Social de Psicanálise, dirigida naquele momento por Anna Katrin Kemper[2]. Surpreende, no primeiro texto, a fala de Hélio Pellegrino: "No meu consultório sou estritamente apolítico... fora, minha posição é nítida e solar: sou militante do PT, socialista histórico, eventualmente histérico..." E logo adiante: "O modelo clínico é um artifício, para que possamos ouvir o inconsciente do outro. Temos de colocar a realidade entre parênteses para que ela não nos perturbe com seu rumor"[3]. Mas, para Pellegrino, a preocupação com a polis é inerente à psicanálise: "A teoria da libido faz com que sejam inaceitáveis tanto o capitalismo quanto as ditaduras, o terrorismo, as bombas (e não me refiro, agora, a qualquer fantasia anal) [...] Se a sexualidade tende para o outro só podemos considerá-lo investido de sua dignidade e integridade. Por isso, não pode haver psicanalista fascista, é algo incompatível com o pensamento de Freud"[4]. Chebabi, nesse mesmo ensaio, afirmaria: "No rés da psicanálise se encontra a revolução..." Chaim Katz, no seu livro Ética e Psicanálise[5], faz importante crítica ao que denomina ilusão epistêmica.

 

De fato, um ano depois desse simpósio, uma ex-presa política denunciaria Amílcar Lobo, psicanalista da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro, como um dos seus torturadores durante sua passagem pela Casa da Morte, um centro de tortura e assassinatos criado pelo Centro de Informações do Exército em Petrópolis. Outros presos políticos também identificaram Amílcar Lobo como torturador. Helena Besserman, em seu livro Não conte a ninguém[6], relata que já em 1973 havia denunciado Lobo à Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro e à Associação Psicanalítica Internacional. Nada foi feito naquele momento. A direção da IPA preferiu silenciar.

 

4. Momentos

Era um sol escaldante. Nós, do movimento secundarista, saíamos do Colégio de Aplicação rumo ao centro da cidade. Éramos organizados em grupos de cinco, com um coordenador que guardava os telefones e contatos de cada um. Sabíamos da possibilidade de repressão. O medo era imenso. Lá fomos nós. Era sempre emocionante o encontro dos vários grupos que chegavam de todos os lugares da cidade. Os arranha-céus apontando para o céu azul, o aplauso vindo das janelas, as mãos unidas, as palavras de ordem que comoviam. São palavras de ordem que são usadas até hoje: "O povo unido jamais será vencido". Era uma fé na solidariedade, na possibilidade de outro mundo. Os dirigentes bradavam seus discursos. A equipe de segurança desviava o trânsito para que aquele mar de estudantes pudesse se espraiar pelo asfalto negro. Assim fomos em direção ao Vale do Anhangabaú. Era muito comovente. Eu me apegava a meu querido amigo, companheiro de militância. Depois, ele se exilou em Paris. E morreu precocemente na sua volta ao Brasil. Era meu segundo irmão. Chegamos ao Vale do Anhangabaú. Anos depois seria o mesmo cenário da campanha pelas "Diretas, Já". Havia, em 1968, um palanque de onde falavam os vários líderes. Antes que os discursos começassem, surge, cruel, a cavalaria e a tropa de choque enfrentando aquele mar de estudantes. A correria e o pânico me tomam. Empurrada por meus companheiros, subi as escadas em uma agilidade nunca antes imaginada. E que nunca mais repeti. Vi meu pai, que saíra na passeata com seus companheiros professores da USP, correndo em minha direção e prendendo sua mão na alça da minha bolsa. Um menino secundarista pede que ele cuide também dele. Meu pai, carinhosamente, não nos deixa.

 

Depois, as notícias são dolorosas: muita gente presa, muita gente ferida.

 

Mas isso tudo era apenas o começo de uma era inteira de negrume e dor. Com o Ato Institucional n. 5, tudo viria a ficar muito mais terrível. O prenúncio de tudo isso foi a prisão em massa no Congresso da UNE em Ibiúna. Meus amigos presos, as mães mobilizadas, isso de não saber onde entes queridos foram despejados.

 

5. Marcas

Marie Langer, na sua "Introdução" ao importante livro Questionamos[7], conta como o processo de ruptura com a IPA toma forma a partir do Cordobazo.

 

O Cordobazo foi um importante movimento de protesto ocorrido na Argentina em 29 de maio de 1969 na cidade de Córdoba, uma das cidades industriais mais importantes. Nessa época o país era governado por uma ditadura militar. O Cordobazo começa nos primeiros dias de maio de 1969 e foi composto por uma sucessão de greves e assembleias sindicais organizadas por diversas correntes gremiais e agrupamentos políticos cordobeses, que foram duramente reprimidos por ordem das autoridades militares provinciais e nacionais do governo ditatorial. Esse movimento não teve nada a ver com os grupos armados que depois teriam papel tão importante no combate à ditadura que acaba se instaurando nos anos 1970.

 

Ao meio-dia e meia do 29 de maio, cai a primeira vítima fatal entre os integrantes das colunas populares. Isso provoca uma reação em cadeia. Com fúria incontida, os manifestantes se apropriam da cidade, levantando barricadas contra a polícia, que teve de refugiar-se nos quartéis deixando a cidade nas mãos de trabalhadores e estudantes. Nesse momento o ditador Ongania resolve enviar o exército. E a repressão foi sanguinolenta.

 

O Cordobazo foi um ponto de inflexão na história argentina. Ongania acaba deposto em junho de 1970. O Cordobazo teve um efeito multiplicador por todo o país.

 

Marie Langer data do Cordobazo a necessidade de demarcar posições ideologicamente distintas na IPA argentina.

 

Nessa "Introdução", lembra W. Reich:

Lendo William Reich descobri a semelhança dos fatos que levam os psicanalistas a se assumirem politicamente: No dia 16 de julho de 1927 há uma greve em Viena. Realiza-se uma grande manifestação. Não se sabe bem como ocorreu, mas de repente a polícia começou a atirar sobre o pessoal desarmado. Reich estava no meio. Posteriormente definirá sua experiência como uma "aula prática de Sociologia"[8]. A partir desta experiência tomou a decisão de instrumentar seu saber psicanalítico em favor da luta de libertação.

 

Marie Langer cita Reich: "Se me dediquei ao movimento da higiene mental, não foi precisamente para curar algumas pessoas ou melhorar sua saúde: comecei depois do dia 16 de julho de 1927, quando foram mortas cem pessoas na rua e feridas umas mil"[9]. Marie Langer escreve: "Reich lança-se à luta. Não haverá verdadeira liberdade sexual sem socialismo, nem verdadeiro socialismo sem liberdade sexual"[10]. Era preciso encontrar uma plataforma comum para as exigências sociais e sexuais. "A luta por melhores moradias e contra a lei que proíbe e castiga o aborto conduzirá as massas, ao mesmo tempo, contra o fascismo e pela revolução". Marie Langer cita então alguns analistas daquele momento que buscam unir psicanálise e marxismo: Fenichel, Sternberg e Bernfeld. Neles, o trabalho é apenas teórico. Relata: "Eles não entravam nas sociedades analíticas da época (ou elas não os deixavam entrar?) e suas publicações foram destruídas quando o nazismo subiu ao poder"[11].

 

Marie Langer nos conta que o Cordobazo fez com que despertassem. Relata como naquele momento pediram que os analistas se manifestassem e eles o fizeram. Defendiam, porém, que os terrenos não se confundissem. Marie Langer conta como o dentro e o fora se tornaram "inintegráveis". Foi quando surgiu a Plataforma Argentina, formando um grupo de dissidentes dentro da APA (Associação Psicanalítica Argentina).

 

E nós, aqui no Brasil, de que maneira, como psicanalistas, fomos marcados pelo estado de opressão e terror que vivemos?

 

6. Uma psicanálise purificada?

Em 1978 começaram a ocorrer as reuniões da Rede Alternativa de Psiquiatria. Havia então um movimento internacional, do qual faziam parte, entre outros, Guattari e Basaglia, que lutavam contra a existência de manicômios. A antipsiquiatria florescia enquanto busca de novas práticas no trabalho com a doença mental. Tudo isso já era o germe do movimento antimanicomial. As reuniões aconteciam no Sedes Sapientiae. O Curso de Psicanálise já havia sido fundado, por Roberto Azevedo e Regina Schnaiderman.

 

As reuniões aconteciam aos sábados. Lembro, em meio a uma discussão acalorada, a fala de uma importante psicanalista: o que eu sou como cidadã não tem nada a ver como sou como psicanalista. O auditório silenciou. Para depois explodir em contestação apaixonada.

 

Estranho ver como o pensamento predominante nas instituições psicanalíticas oficiais, ligadas à IPA, estava presente até mesmo em locais como aquele, que se pretendia desruptor e questionador.

 

Cecília Coimbra, em seu importante livro Guardiães da Ordem[12], afirma:

 

A psicanálise ensinada como uma teoria abstrata praticada por especialistas abstratos [...] produz um espaço protegido, asséptico, onde a realidade cotidiana não entra, onde a neutralidade impera. [...] Há uma produção ativa de invalidação do sociopolítico, o que, em realidade, faz com que a psicanálise e sua formação se tornem cúmplices do sistema socioeconômico em que se inscrevem[13].

 

Logo em seguida Cecília Coimbra nos mostra como a primeira metade dos anos 1970 vai ser o

 

período da hegemonia da psicanálise e da formação vinculada à IPA. E esses são os anos mais terríveis no Brasil, com perseguições, torturas, sequestros, assassinatos, desaparecimentos dos que se opunham aos modelos então vigentes [...][14].

 

Cecília Coimbra mostra como se pregava a existência de uma verdadeira psicanálise, purificada da realidade cotidiana.

 

Nesse contexto, a fundação do Instituto Sedes Sapientiae, em 1976, quando ainda o Estado de terror se fazia presente, foi algo inovador. O primeiro item de sua Carta de Princípios era:

 

Assumir sua parcela de responsabilidade na transformação qualitativa da realidade social, estimulando todos os valores que aceleram o processo histórico no sentido da justiça social, democracia, respeito aos direitos da pessoa humana"[15].

 

Estar no Sedes era poder pensar a psicanálise de forma engajada, inserida em um contexto social e político. Era um momento  em que se buscava pensar sobre as relações entre psicanálise e marxismo e cada um inventava sua forma de ser coerente com o passado de militância, já que a repressão exterminara nossas formas de luta por um mundo mais digno.

 

7. O país em que vivemos
e a prática clínica

Ainda no importante livro Questionamos, no artigo "Crise Social e Situação Analítica"[16], alguns analistas procuram pensar de que modo situações de comoção social interferem na prática clínica. Afirmam, corajosamente: "Achamos que o país em que vivemos e seu momento histórico-social integram o sistema de objetos de nossos pacientes e os nossos também"[17]. E, alguns parágrafos adiante:

 

Os protagonistas do diálogo analítico são ao mesmo tempo - num âmbito mais amplo - coparticipantes da sociedade atingida, e o ponto de vista que sustentamos é o de que, dada a natureza do fenômeno social, é, de fato, impossível marginalizar-se. Cremos que isolar-se e prescindir do processo histórico-social, longe de constituir uma atitude "neutra", é um modo ativo de tomar posição[18].

 

Lembro-me de uma primeira entrevista com um psicanalista da IPA em que me atrasei por causa de uma greve nos transportes que causava congestionamentos terríveis por toda a cidade de São Paulo. Fui interpretada e ele me falou em congestionamento interno e resistência. Esse me parece um exemplo importante: não há como não considerar a realidade de uma greve. Cabe sim pensar sobre os efeitos disso no encontro e na minha angústia.

 

8. O capitalismo, o preço da sessão

O volume Questionamos, que nos transmite a importante experiência uruguaia e argentina, foi publicado no Brasil em 1973, o mesmo ano em que ocorreu o simpósio Psicanálise e Política da PUC, ao qual nos referimos logo no início deste ensaio. Aqui no Brasil, ainda era difícil afirmar que a realidade política estava presente também nos consultórios. Até mesmo Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas afirmavam a pureza da psicanálise dentro dos consultórios, impregnados pela postura oficial da IPA. Depois, com a denúncia que fizeram do caso Amílcar Lobo, ambos seriam expulsos. Para Hélio e Eduardo, o capitalismo se fazia presente na prática clínica através do preço das sessões. E a Clínica Social de Psicanálise viria aliviar suas consciências, tornando a psicanálise mais acessível às classes menos favorecidas. A Clínica Social de Psicanálise foi fundada por Katrin Kemper e seu grupo em 1972 e buscava implementar o atendimento à população de baixa renda através de trabalhos grupais. Nos anos 1970, essa clínica deu atendimento a ex-presos políticos. Cecília Coimbra cita o caso de Inês Etienne Romeu,

 

que, em 1978, estando presa em Bangu cumprindo pena de prisão perpétua, solicita a uma amiga apoio psicológico [...]. O profissional enviado pela Clínica Social de Psicanálise durante seis meses visita Inês no Presídio de Bangu semanalmente, e apresenta-se às autoridades como um amigo...[19].

 

9. A verdade e a Lei da Anistia

Em 1979 é promulgada a Lei da Anistia. Os presos políticos são anistiados, aqueles que se exilaram já podem voltar. É uma anistia ampla e irrestrita. O desejo de ter filhos de volta, a angústia com o sofrimento nas prisões, o peso dos anos de chumbo levaram a se concordar com uma anistia ampla. Não se pensou que os torturadores e responsáveis pelo terror que dominava nosso cotidiano deveriam ser julgados. Com essa Lei, os militares torturadores também foram anistiados.

 

Esse tema volta hoje de forma contundente com as Comissões da Verdade, que se propõem a nomear a barbaridade do terror nos anos de chumbo. Julgar os militares tem sido uma luta de todo um setor que busca a não repetição do traumático.

 

Daniel Abrão, em entrevista à revista Carta Capital, afirma que "apesar dos 35 anos da aprovação da Lei da Anistia de 1979 - completos no dia 28 de agosto -, o próprio conceito de ‘anistia' ainda está em disputa no Brasil. Na década de 1960, a batalha era pela liberdade aos presos políticos, o retorno à legalidade dos partidos clandestinos, a anulação da expulsão dos brasileiros e de processos criminais baseados na Lei de Segurança Nacional e no início da redemocratização. Hoje, o conceito de anistia se aproximou da ideia de ‘impunidade', como se fosse uma forma de perdão"[20].

 

Está em questão o tema do perdão. Para que exista o perdão, é necessário julgamento, com a possibilidade de não perdoar. A humilhação, a tortura, o ataque ao que nos constitui como humanos, isso não tem perdão. Seja hoje, seja naquele momento, seja em qualquer lugar do mundo.

 

A "Lei da Anistia" não deveria ser decodificada como "Lei do Perdão". Um perdão irrestrito não é perdão.

 

Maria Rita Kehl afirma, no ensaio "Sua única vida"[21], que "as condições de nossa anistia não incluíram nem a exigência de um perdão por parte dos criminosos de Estado e muito menos a punição desses crimes". Para existir o perdão, a possibilidade da punição tem que estar presente.

 

10. Ressentimento e memória

"Eu não tenho rancor, eu tenho memória". Assim termina o depoimento de Dermi Azevedo no documentário "Sobreviventes", dirigido por mim e Reinaldo Pinheiro[22]. Julgar os torturadores: vingança, rancor ou acusação necessária na busca de um ajuste de contas com a história?

 

Maria Rita Kehl, em seu livro Ressentimento[23], afirma ser "o ressentimento o efeito mais provável produzido em certas condições de opressão nas quais só resta ao sujeito ‘debater-se em vão sob o aguilhão da autoridade'". Indaga-se: "Como colocar em ato o saudável impulso de reação imediata aos agravos nos casos de impotência objetiva diante da força de coerção do opressor?"[24]

 

Sair do lugar do ressentido, da vítima, poder ser ativo novamente, é esse o sentido da Comissão da Verdade. Na esteira vieram as Clínicas do Testemunho, iniciativa do Ministério da Justiça, buscando acolher sequelados do regime ditatorial. Dar fala ao que foi silenciado, buscar formas de lidar com o que não tem forma nem representação, eis o grande desafio.

 

11. O perdão

A questão do perdão abrange tanto questões da macropolítica (a Comissão da Verdade e a Lei da Anistia) quanto questões de micropolítica. Mas é preciso discernir de que modo isso acontece em cada uma dessas esferas.

 

Como forma de lidar com a violência cotidiana, vêm sendo propostas na América Latina as Escolas de Perdão. Os defensores dessas Escolas afirmam que o perdão é a única forma de interromper o círculo vicioso violência-vingança-violência. O perdão seria uma nova resposta à questão da violência, propondo com isso uma nova justiça. Perdoar seria quebrar com a repetição onde a violência levaria à vingança.

 

Mas, existe perdão? Perdão talvez seja o nome - cristão - para o que, nós psicanalistas, veríamos como possibilidade de degelo do que fica petrificado. A possibilidade de novas cadeias de simbolização em processos de criação.

 

Flávia Schilling, em palestra ministrada em seminário no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo[25], ilustrou a questão do perdão contando de uma avó que criava sua netinha, pois um de seus filhos havia sido morto baleado e o outro estava preso. A menininha cantava, brincava e a avó nervosa acabou quebrando a perna da menina com uma vassoura. Depois de todo um trabalho em um Núcleo de Proteção à Vítima em que Flávia Schilling trabalha, a avó pede perdão à neta. E a neta nega o perdão à avó. Com isso Flávia Schilling mostrou o quanto perdoar é um ato de liberdade e que deve existir uma assimetria fundamental na relação.

 

Quantos algozes conseguem pedir perdão? A liberdade de dar ou não o perdão tem que ser preservada a qualquer custo.

 

É importante lembrar tudo isso quando pensamos em termos de macropolítica nas Comissões da Verdade.

 

Nomear o que teve que ser silenciado, essa é uma tarefa de todos nós. O que implica, muitas vezes, se haver com amargas lembranças. O livro de Celso Lungaretti leva a refletir sobre tudo isso[26]. Lungaretti foi um dos secundaristas que, depois de torturado, foi à televisão, juntamente com Massafumi, para acusar a esquerda e afirmar que foram coagidos a lutar contra o regime militar. Acusaram-no também de delatar o local onde se encontrava Lamarca. O que, finalmente, ele conseguiu desmentir. Massafumi suicidou-se na prisão, Celso Lungaretti sobrevive e conta sua história. Quem deve des-culpas a quem?

 

Hanna Arendt nos mostrou que inventamos o perdão porque nossas ações são irreversíveis. E afirma também que outra característica da ação é a imprevisibilidade. Não há possibilidade de controle sobre os efeitos das ações. Daí a necessidade da promessa. É impossível produzir efeitos de justiça sem a promessa de que isso jamais se repetirá. É disso que se trata. Chegamos ao resgate da utopia como absolutamente necessário à política nos dias que correm.

 

12. Fins e /ou Ideais:
dispositivos amorosos

Tudo isso vem colocar questões metapsicológicas importantíssimas. Se não queremos cair na ilusão epistêmica de que nos fala Chaim Kats, ou seja, se sabemos que não basta ser psicanalista para estar engajado nos movimentos da história, de que modo pensar tudo que expus acima?

 

O já clássico ensaio de Jurandir Freire Costa, "Narcisismo em tempos sombrios"[27], de 1988, dá um lindo exemplo de como o rigor metapsicológico pode nos instrumentar em um pensamento sobre o que se passa no mundo. O autor aponta nesse ensaio para uma falência dos Ideais. Baseia-se no conceito de razão cínica de Zizek e fala em uma cultura da violência.

 

Hoje, algo mudou. A questão relativa aos fins e aos meios precisa ser repensada. Fins e/ou ideais?

 

Acreditando na possibilidade de que novos laços amorosos de vida possibilitem o trabalho com tudo isso, termino citando o início do livro Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares:

 

Os beijos que te dou tu não sabes de onde vêm. São teus, do teu corpo e da tua alma, do mais profundo de ti, sim, mas vêm daquele meu ego morto que só contigo renasceu. Pouco me ri e muito mais sofri neste tempo todo. São 30 anos que esperei para escrever e contar. Lutei com a necessidade de dizer e a absoluta impossibilidade de escrever. A cada dia, adiei o que iria escrever ontem. A ideia vinha à memória, mas, logo, logo, se esvaía naquele cansaço imenso que me fazia deixar tudo para amanhã e jamais recomeçar[28].

 

É do encontro carnal, amoroso, libidinoso, que a história pode ganhar novos contornos, podendo ser reescrita a partir do resgate da dor vivida.


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