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Resumo
O artigo reflete sobre a importância dos rituais funerários e dos túmulos como signos da presença dos mortos na memória dos vivos. Tenta mostrar como essa exigência orienta o trabalho poético desde a Ilíada e como ela se repete no contexto doloroso dos desaparecidos da ditadura militar no Brasil, analisando notadamente dois textos recentes, entre ficção e testemunho, de Bernardo Kucinski. Por fim, pergunta-se a respeito do descaso manifestado no enterro em valas comuns de pessoas pobres, facilmente identificáveis, sem aviso às famílias que continuam, por anos, a procurar por desaparecidos.


Palavras-chave
desaparecidos; túmulo; ditadura militar; Bernardo Kucinski.


Autor(es)
Jeanne Marie Gagnebin
é professora titular de Filosofia da pucsp e livre-docente em Teoria Literária da Unicamp


Notas

1.        Presidente João Goulart, discurso no Comício da Central do Brasil em 13 mar. 1964.

2.        C. Tavares, O dia que durou 21 anos - Documentário.

3.        C. Tavares, op. cit.

4.        Peter Vos, do consulado dos EUA - fragmento do depoimento para o Documentário Cidadão Boilensen. A citação foi extraída de sinopse de Flávia Santana.

5.        C. Tavares, op. cit.

6.        C. Tavares, op. cit.

7.        Na esteira das pesquisas e formulações de Foucault sobre as tecnologias de poder nas sociedades disciplinares modernas, sintetizadas no conceito de biopolítica, Giorgio Agamben resgata o conceito de homo sacer do direito romano arcaico: vida matável e não sacrificável. No livro O poder soberano e a vida nua I, p.?196, Agamben o problematiza de modo a fazer emergir sua origem histórica como ponto de incidência do poder soberano, como vida nua, zoé, afirmando que a vida já fizera sua entrada no político a partir mesmo do surgimento do poder soberano, em seu caráter de exceção. Dessa forma, além de assumir a tese foucaultina sobre a entrada do bios nas equações do poder - que inauguraria o poder disciplinar como característico das sociedades ocidentais modernas - Agamben reafirma as teses foucaultinas da coexistência do poder soberano e do poder disciplinar na modernidade. No entanto, radicaliza tais teses, afirmando que o estado de exceção, e com ele o poder soberano, dos quais o campo de concentração seria o paradigma, estariam em uma íntima solidariedade com a democracia (p. 17). O caso brasileiro faz chegar ao paroxismo a coexistência das fórmulas foucaultianas - Fazer viver ou deixar morrer (sociedades disciplinares) e Fazer morrer ou deixar viver (sociedades de soberania), como veremos a seguir. "Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será condenado homicida'. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro." (p. 186).

8.        Para um melhor entendimento desta Doutrina, consultar Blog do Emir, disponível em: .

9.        Nesse sentido, o projeto Clínicas do Testemunho, do Ministério da Justiça, já tem a seu favor o fato de ser o Estado brasileiro quem faz um reconhecimento público da violência perpetrada pelo próprio Estado contra seus cidadãos guerreiros, os filhos que não fogem à luta. Através da proposta de criação de espaços coletivos de circulação e de elaboração de um traumático produzido por forças de ordem política, faz-se um investimento ativo e um reconhecimento de um sofrimento que não pode ser vivido privadamente.

10.     G. Agamben, op. cit.

11.     G. Agamben, op. cit.

12.     H. Arendt apud J. F. Costa, "Psiquiatria burocrática: duas ou três coisas que sei dela", in Clínica do Social - Ensaios.

13.     Em declaração prestada à Comissão Nacional da Verdade, tal como Eichman, Paulo Malhães se orgulha em dizer: "Acho que cumpri meu dever". E, ainda, em resposta à pergunta do entrevistador José Carlos Dias sobre o número de pessoas que teria matado, Paulo Malhães responde: "Tantas quantas foram necessárias".

14.     G. Agamben, Estado de excepción.

15.     J. J. Waiselfisz, O mapa da violência 2014: Os jovens do Brasil.

16.     D. Arbex, O holocausto brasileiro.

17.     D. Arbex, op. cit.

18.     F. Basaglia, As instituições negadas.

19.     Os nomes são fictícios.

20.     Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

21.     nuraaj - Núcleo de Referência em Atenção à Adolescência e à Juventude da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae. Instituído como Núcleo de Referência a partir de 2011, mas existindo como Projeto de Atenção à Adolescência e à Juventude desde 2004, estes 10 anos de trabalho clínico-institucional vêm sendo um tempo fértil de criação, de experimentação e de intervenção no campo da adolescência e da juventude, na perspectiva da clínica ampliada.

22.     Nome fictício.

23.     Fundação Estadual do Bem Estar do Menor.

24.     A. Cardeal, "A voz de uma experiência: um caso de família".

25.     G. Moncau. "Indústria da loucura impede avanços". Para uma melhor compreensão desse processo de privatização dos hospitais psiquiátricos, que tornou a loucura um negócio lucrativo para os donos de hospital, processo que teve seu apogeu no período da ditadura civil-militar, consultar P. Amarante, Loucos pela vida - A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

26.     J. F. Costa, Razões públicas, emoções privadas.

27.     G. Deleuze, Conversações.

28.     C. M. B. Coimbra, Guardiães da Ordem - uma viagem pelas práticas psi no Brasil do "Milagre".

29.     A. Negri, O Poder Constituinte - ensaio sobre as alternativas da modernidade.

30.     R. da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.

31.     P. P. Pelbart. "Anota aí: eu sou ninguém".



Referências bibliográficas

1.        Presidente João Goulart, discurso no Comício da Central do Brasil em 13 mar. 1964.

2.        C. Tavares, O dia que durou 21 anos - Documentário.

3.        C. Tavares, op. cit.

4.        Peter Vos, do consulado dos EUA - fragmento do depoimento para o Documentário Cidadão Boilensen. A citação foi extraída de sinopse de Flávia Santana.

5.        C. Tavares, op. cit.

6.        C. Tavares, op. cit.

7.        Na esteira das pesquisas e formulações de Foucault sobre as tecnologias de poder nas sociedades disciplinares modernas, sintetizadas no conceito de biopolítica, Giorgio Agamben resgata o conceito de homo sacer do direito romano arcaico: vida matável e não sacrificável. No livro O poder soberano e a vida nua I, p.?196, Agamben o problematiza de modo a fazer emergir sua origem histórica como ponto de incidência do poder soberano, como vida nua, zoé, afirmando que a vida já fizera sua entrada no político a partir mesmo do surgimento do poder soberano, em seu caráter de exceção. Dessa forma, além de assumir a tese foucaultina sobre a entrada do bios nas equações do poder - que inauguraria o poder disciplinar como característico das sociedades ocidentais modernas - Agamben reafirma as teses foucaultinas da coexistência do poder soberano e do poder disciplinar na modernidade. No entanto, radicaliza tais teses, afirmando que o estado de exceção, e com ele o poder soberano, dos quais o campo de concentração seria o paradigma, estariam em uma íntima solidariedade com a democracia (p. 17). O caso brasileiro faz chegar ao paroxismo a coexistência das fórmulas foucaultianas - Fazer viver ou deixar morrer (sociedades disciplinares) e Fazer morrer ou deixar viver (sociedades de soberania), como veremos a seguir. "Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será condenado homicida'. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro." (p. 186).

8.        Para um melhor entendimento desta Doutrina, consultar Blog do Emir, disponível em: .

9.        Nesse sentido, o projeto Clínicas do Testemunho, do Ministério da Justiça, já tem a seu favor o fato de ser o Estado brasileiro quem faz um reconhecimento público da violência perpetrada pelo próprio Estado contra seus cidadãos guerreiros, os filhos que não fogem à luta. Através da proposta de criação de espaços coletivos de circulação e de elaboração de um traumático produzido por forças de ordem política, faz-se um investimento ativo e um reconhecimento de um sofrimento que não pode ser vivido privadamente.

10.     G. Agamben, op. cit.

11.     G. Agamben, op. cit.

12.     H. Arendt apud J. F. Costa, "Psiquiatria burocrática: duas ou três coisas que sei dela", in Clínica do Social - Ensaios.

13.     Em declaração prestada à Comissão Nacional da Verdade, tal como Eichman, Paulo Malhães se orgulha em dizer: "Acho que cumpri meu dever". E, ainda, em resposta à pergunta do entrevistador José Carlos Dias sobre o número de pessoas que teria matado, Paulo Malhães responde: "Tantas quantas foram necessárias".

14.     G. Agamben, Estado de excepción.

15.     J. J. Waiselfisz, O mapa da violência 2014: Os jovens do Brasil.

16.     D. Arbex, O holocausto brasileiro.

17.     D. Arbex, op. cit.

18.     F. Basaglia, As instituições negadas.

19.     Os nomes são fictícios.

20.     Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

21.     nuraaj - Núcleo de Referência em Atenção à Adolescência e à Juventude da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae. Instituído como Núcleo de Referência a partir de 2011, mas existindo como Projeto de Atenção à Adolescência e à Juventude desde 2004, estes 10 anos de trabalho clínico-institucional vêm sendo um tempo fértil de criação, de experimentação e de intervenção no campo da adolescência e da juventude, na perspectiva da clínica ampliada.

22.     Nome fictício.

23.     Fundação Estadual do Bem Estar do Menor.

24.     A. Cardeal, "A voz de uma experiência: um caso de família".

25.     G. Moncau. "Indústria da loucura impede avanços". Para uma melhor compreensão desse processo de privatização dos hospitais psiquiátricos, que tornou a loucura um negócio lucrativo para os donos de hospital, processo que teve seu apogeu no período da ditadura civil-militar, consultar P. Amarante, Loucos pela vida - A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

26.     J. F. Costa, Razões públicas, emoções privadas.

27.     G. Deleuze, Conversações.

28.     C. M. B. Coimbra, Guardiães da Ordem - uma viagem pelas práticas psi no Brasil do "Milagre".

29.     A. Negri, O Poder Constituinte - ensaio sobre as alternativas da modernidade.

30.     R. da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.

31.     P. P. Pelbart. "Anota aí: eu sou ninguém".

32.     P. P. Pelbart, op. cit.





Abstract
The article reflects on the importance of funeral rites and tombs as signs of the presence of the dead in living memory. The article attempts to show how this requirement guides the poetic work since the Iliad and how it repeats itself in the painful context of the disappeared of the military dictatorship in Brazil, notably analyzing two recent texts, between fiction and testimony written by Bernardo Kucinski. Finally, the question arises as to the manifested neglect in the burial of poor people, that could be easily identifiable, in mass graves, but without communicating to families – that continue for years searching for the disappeared or missing?.


Keywords
missing; tomb; military dictatorship; Bernardo Kucinski.

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 TEXTO

Os indigentes da memória

The indigents of memory
Jeanne Marie Gagnebin

Qual seria a façanha de matar mais uma vez o morto?[1]

 

Sôma/Sêma

A Ilíada é um texto difícil. Somente nela penetra quem, seguindo a trilha aberta por Jean-Pierre Vernant[2], percebe o movimento paralelo entre as duas temáticas maiores desse poema: morrer de bela morte e celebrar ritos funerários dignos. Somente assim, o leitor contemporâneo suporta as tão longas descrições de batalhas e de cerimônias fúnebres. Por que começar esse artigo com o epos grego? Não só por deformação de professora de filosofia. Porque algo emerge, pouco a pouco, desse primeiro canto e primeiro poema do Ocidente, a saber, a certeza que se lembra, se canta e se escreve para não esquecer os mortos. Especialmente os heróis mortos, nesse poema viril e guerreiro; no entanto, como o herói se torna um paradigma da vida que vale a pena ser vivida, a relação entre palavra e memória persiste além da vontade épica. Ela se desdobra na obrigação do túmulo: o cadáver (em grego homérico, sôma) não pode ficar sem proteção, entregue aos animais, mas deve ser queimado e, recolhidos os ossos, abrigado num túmulo (sêma). A ligação entre somático e semântico surge das belas palavras de Heitor, talvez o mais humano de todos os heróis da Ilíada, quando no Canto VII propõe um combate singular aos Aqueus. Pede, então, para que seu cadáver seja devolvido à sua família, se ele for morto, e que seja erguido um túmulo a seu inimigo morto, se ele for o vencedor, para lembrar sua glória (kleos) no combate.

 

À diferença dos bichos, os animais humanos falam, lembram e são enterrados. O poema, túmulo de palavras, e o túmulo de pedras, último signo de uma vida que se foi, se respondem. Não se pode profanar um cadáver, o próprio Aquiles deve obedecer a essa lei e devolver o corpo de Heitor a seu pai. No último canto da Ilíada, o cadáver de Heitor é levado por seu pai para ser destinado a funerais humanos - e Aquiles deixa de ser um leão selvagem que gostaria de devorar sua vítima, ele volta à humanidade. Alguns séculos mais tarde, contra a vontade do Estado (na figura do tirano Creonte), Antígona lava o corpo do seu irmão, espalha poeira e terra sobre ele para tentar afastar os animais selvagens. Nesse gesto impotente de piedade, ela reafirma que mesmo os inimigos da cidade têm direito a ritos funerários e a um túmulo, que eles não podem desaparecer da memória pelo sumiço de seu corpo.

 

Matzeivá/Velório

Em 2011, Bernardo Kucinski, professor aposentado da USP e conhecido jornalista, publica um romance próximo do relato autobiográfico, K. Relato de uma busca. Três anos depois, sai um volume de "contos" sobre a mesma temática, Você vai voltar para mim. Qual é essa temática? Ambos os livros falam dos mortos, desaparecidos e torturados da ditadura militar no Brasil. Falam também daqueles que lhes sobreviveram. A personagem principal de K. é um velho senhor judeu de origem polonesa, que emigrou para o Brasil e tentou continuar suas pesquisas de literatura e de língua iídiche com alguns amigos em São Paulo. Os protagonistas do livro de contos foram inspirados, entre outros, por relatos ouvidos a partir de narrativas de amigos e por narrativas recolhidas pelas várias Comissões da Verdade que foram surgindo no país.

 

São livros engajados, mas não dogmáticos. Não são relatos históricos. São livros entre a ficção e o testemunho. São livros sobre as dificuldades e a necessidade do lembrar, notadamente de lembrar os mortos, mesmo aqueles dos quais não se sabe se morreram, os desaparecidos; e aqueles de cujo nome não se consegue lembrar. Kucinski parece retomar a exigência da "memória dos sem nomes" da qual falava Walter Benjamin. Ao mesmo tempo, não há nenhuma complacência com um relembrar choroso. Ao contrário, lembrar-se do passado e ousar agir no presente são duas práticas entrelaçadas. O velho senhor, K., fica estarrecido quando percebe que sua filha não lhe telefonava havia dez dias. Bernardo Kucinski descreve, ainda que de maneira ficcional - aliás, como fazê-lo de outro jeito quando alguém desaparece sem deixar nenhum rastro? - o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski, professora de química da USP, e do seu marido, o físico Wilson da Silva, cujos corpos nunca foram encontrados; ambos foram vistos pela última vez em 22 de abril de 1974, foram certamente raptados e mortos pela repressão militar, embora nunca tivesse havido nenhum documento, nenhum arquivo, nenhum testemunho a respeito.

 

K., o pai, percebe com assombro não só a estranha falta de sinal da filha, mas também sua própria falta de presença ao lado dela. Depois da morte da primeira mulher, mãe de seus filhos, casou novamente, mas não parece feliz com a nova esposa que, aliás, não se dá bem com Ana. Mas muito mais do que o segundo casamento, K. descobre o quanto seus estudos de iídiche o afastaram do presente brasileiro e da possível luta de sua filha contra a ditadura. O traço mais pungente do livro me parece essa confluência, primeiro conflituosa, entre duas memórias: a memória da perseguição dos Judeus, já antes da Shoah na Polônia, depois durante a Shoah na Europa inteira, em que morreram muitos parentes, e a memória do presente, isto é, a reflexão crítica sobre a tomada de poder pelos militares no Brasil, o acirramento da repressão depois do AI 5, o desaparecimento de alguns estudantes, um boato ao qual K., primeiro, não deu a devida atenção. Imerso no cuidado da bela língua morta, do iídiche, K. compreende que não deu ouvidos aos vivos:

 

E como não perceber o tumulto dos novos tempos, ele, escolado em política? Quem sabe teria sido diferente se, em vez dos amigos escritores do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam, prestasse mais atenção ao que acontecia no país naquele momento? Quem sabe? Que importa o iídiche? Nada. Uma língua-cadáver, isso sim, que eles pranteavam nessas reuniões semanais, em vez de cuidar dos vivos[3].

 

Talvez o iídiche importe mais do que se poderia desprender dessa observação desesperada. Como também importa lembrar todos os perseguidos, judeus, armênios, chilenos, argentinos, a lista não está completa, que pensaram encontrar um refúgio no Brasil e foram perseguidos durante a ditadura. Vladimir Herzog atravessa esse livro entre as linhas da narrativa. Especialmente quando K., depois de um ano do desaparecimento de sua filha, vai até o cemitério israelita do Butantã para pedir a colocação de uma "Matzeivá" - "a lápide colocada no túmulo, em geral um ano após o sepultamento", diz a nota de pé de página. Vencido, mas não convencido, pelo argumento de K., de que na entrada do cemitério havia uma grande lápide em memória dos mortos do Holocausto, embora não houvesse nenhum corpo ali, o responsável do cemitério pede uma autorização de um rabino. K. escolhe um rabino da linha "moderna", como diz, porque sabe que seu pedido é, no mínimo, estranho. Tão estranho que tem de ouvir uma longa peroração sobre a ausência de corpo e, portanto, a impossibilidade de túmulo.

 

O narrador observa:

 

Alguns meses mais e isso mudará, depois que outro rabino, ainda mais moderno, oriundo dos Estados Unidos, oficiar na missa ecumênica do jornalista judeu assassinado pelos militares. K. está um pouco adiante do seu tempo[4].

 

A alusão à missa por Vladimir Herzog é uma bela homenagem também a Dom Paulo Evaristo Arns, que abriu a Catedral da Sé para uma homenagem a um jornalista judeu, vítima da repressão, e à necessidade de ultrapassar as separações religiosas ou ideológicas na resistência comum contra a ditadura e a tortura. K. não encontra essa abertura no representante de sua religião. O rabino persiste na necessidade do cadáver para autorizar a lápide, como se somente a presença do corpo morto permitisse a memória do vivo:

 

A falta de lápide equivale a dizer que ela [a filha] não existiu e isso não era verdade: ela existiu, tornou-se adulta, desenvolveu uma personalidade, criou o seu mundo, formou-se na universidade, casou-se. [K.] Sofre a falta dessa lápide como um desastre a mais, uma punição adicional por seu alheamento diante do que estava acontecendo com a filha bem debaixo de seus olhos[5].

 

Lápide como sêma, signo do corpo morto e memória do vivo que morreu, mas persiste na lembrança. A falta do elo intermediário, do cadáver, repete, no drama dos desaparecidos das várias ditaduras, a sinistra previsão feita pelos responsáveis dos campos nazistas a Primo Levi[6], quando, nos últimos dias da Segunda Guerra, isto é, quando se tornou claro que a Alemanha nazista ia ser vencida, os prisioneiros dos campos foram obrigados a desenterrar os milhares de cadáveres de seus camaradas, jogados em valas comuns, para queimá-los em gigantescas fogueiras: não podia sobrar nenhum rastro desses mortos, nem seus ossos, nem seus nomes. Os nazistas prepararam a historiografia negacionista; os militares brasileiros, por sua vez, a impossibilidade de apreensão da verdade, sobretudo da prova da tortura e do assassinato: sem o corpo, como saber com certeza da morte e dos suplícios?

 

Desolado, K. ainda tenta, como o poeta épico de outrora, compor um livrinho, um folheto, "uma lápide na forma de livro"[7], para poder lembrar a filha e enviar essa lembrança a amigos e familiares. Recolhe materiais, fotografias, depoimentos das amigas da filha e entrega o material a uma pequena gráfica do seu bairro, que havia pertencido a um velho anarquista italiano. Agora, o filho imprime convites de casamentos e notas fiscais. Aos gritos, recusa imprimir o livrinho sobre a desaparecida, uma subversiva, uma comunista.

 

Sem gritos, mas com a maioria dos votos e somente dois em branco, a Congregação do Instituto de Química da USP segue o relatório da "comissão processante" da Reitoria da Universidade e demite, 19 meses depois do seu sumiço, a Professora Ana Rosa Kucinski por "abandono de função"[8].

 

No seu segundo livro de "ficção", Você vai voltar para mim, publicado em 2014, um dos contos, "O Velório", retoma a temática do funeral e do corpo morto, do sôma. Novamente, temos um pai que quer enterrar seu filho, e, desta vez, o consegue. Seu Antunes é velho, sente sua morte próxima e quer enterrar seu filho antes. Compra um belo caixão, convida todos e todos vêm: os vizinhos, os irmãos e cunhados com respectiva prole, os amigos não mais tão jovens do morto, as solteironas que não mais falam mal do filho morto, no fim, chegam de carro preto "o prefeito Belisário, o delegado de polícia, dr. Costa, e o padre Gonçalves"[9]. O conto parece a crônica de uma pequena cidade interiorana, com lances humorísticos, muitos copos de Guaraná, muitos salgadinhos, um ambiente festivo num velório que reúne toda a cidade, como constata, várias vezes e com alegria, o velho pai. O leitor já percebeu, desde o início, que não há ninguém no caixão, somente um paletó e um par de sapatos que pertenciam ao Roberto, o filho desaparecido. Não há corpo, mas há velório e enterro, num gesto bem-humorado e respeitoso de lembrança coletiva - toda a cidade - e solidária com os familiares dos desaparecidos. Gesto utópico num certo sentido porque um dos grandes ardis dos sucessivos governos brasileiros, militares e democráticos, foi ter conseguido restringir o debate sobre os desaparecidos, os torturados e os mortos a uma discussão de casos singulares e individuais, que concernem a famílias enlutadas ou cidadãos revanchistas, que se tenta apaziguar com indenizações. Assim, o país como entidade coletiva que possui um passado comum e, igualmente, um presente e um futuro a serem inventados por todos, é deixado de lado. Em outros termos: a rememoração como ato político não acontece.

 

Nesse contexto, o conto de Kucinski aponta para algo além da evocação jocosa de uma vida interiorana e mais protegida: para a possibilidade de uma certa alegria se os mortos pudessem ser lembrados por todos.

 

Vala comum

Em 2014 foram lembrados os cinquenta anos do golpe militar no Brasil. A maior parte dos desaparecidos durante a ditadura continua sem túmulo e mesmo sem que se saiba se e como morreram. Alguns militares de patente alta morreram e deixam documentos reveladores que jogam uma luz sobre esses mortos sem sepultura. Outros assumem tortura, morte e sumiço de corpos, como o coronel Paulo Malhães em depoimento frio e impactante à Comissão da Verdade do Rio e a vários jornais da cidade. Esclareceu em particular a odisseia do cadáver do deputado desaparecido Rubens Paiva, preso em casa em 20 de janeiro de 1971, torturado e morto, mas cujo corpo nunca foi encontrado. Et pour cause: como resume a Wikipédia, o cadáver foi primeiramente enterrado no Alto da Boa Vista, depois desenterrado porque uma estrada ia ser aberta por perto e se temia a descoberta do corpo. Transportado até o Recreio dos Bandeirantes e enterrado na areia, foi novamente desenterrado dois anos mais tarde e levado numa lancha, saindo do Iate Clube da Urca, e finalmente jogado no mar quando as correntes marítimas estavam propícias. Esse cuidado com o sumiço dos cadáveres é comum a todas as ditaduras do Cone Sul, como se mares e desertos tivessem, em sua beleza, o emblema final da vaidade e da fragilidade da memória.

 

Outros desaparecidos surgiram e surgem todos os dias: segundo entidades como "Mães da Sé" e a Associação Brasileira de Busca e de Defesa dos Desaparecidos, no Estado de São Paulo hoje desaparecem, em média, 60 pessoas por dia[10]. Muitos morrem de velhice, de doença ou de cansaço, num hospital ou na rua. A maior parte com documento no bolso, o famoso RG, a "identidade". Mas, quando são pobres, "indigentes" como se prefere dizer[11], quando ninguém vem reclamar seus corpos no prazo previsto por lei (72 horas depois do óbito), quando os familiares não conseguem orientar-se entre delegacias de polícia, hospitais, iml e svo (Serviço de Verificação de Óbitos) nesses três dias contados, mesmo com "identidade" e números de celulares de amigos e parentes na carteira, os cadáveres vão para os cemitérios da Vila Formosa ou de Perus e são enterrados em covas para indigentes ou em valas comuns. No mesmo cemitério de Perus onde houve também sepultamento de desaparecidos políticos. No Brasil de hoje, não desaparecem só os "terroristas" e os "comunistas". As famílias dos "indigentes sem RG" não são avisadas. Mesmo com corpo presente, o túmulo não traz o nome do morto. Bastaria ele ser pobre? A pergunta não quer calar.


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