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Resumo
Resenha de Anna Mehoudar, Da gravidez aos cuidados com o bebê. Um manual para pais e profissionais, São Paulo, Summus, 2012, 116 p.


Autor(es)
Eva Wongtschowski
é psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1.D. Kupermann, Transferências cruzadas, transferências nômades. Sobre a transmissão da Psicanálise e as instituições psicanalíticas, Rio de Janeiro, Revan, 1996.

2.Grupo de Apoio a Maternidade e Paternidade.

3.S. Laia, A prática psicanalítica nas instituições. In: Os Usos da Psicanálise. Primeiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2003.

4.Margarete Hilferding apresenta seu trabalho, Sobre as bases do amor materno, na reunião das quartas-feiras, em 1911. Sabine Spielrein expôs um trabalho no 6o Congresso Internacional de Psicanálise, em 1920, sobre desenvolvimento infantil, a linguagem e a importância da amamentação. Helen Deutsch editou, em 1925, Psicanálise da função sexual da mulher.


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 LEITURA

Gestação, parto e cuidados com o bebê: o abracadabra da transmissão

[?Da gravidez aos cuidados com o bebê. Um manual para pais e profissionais?]


Pregnancy, delivery and baby-care: the ‘salagadula’ of transmission
Eva Wongtschowski

A história deste livro começa na década de 1970, quando Anna Mehoudar se associa a um grupo de obstetras e se dedica a estudar e colocar em funcionamento um novo modo de prestar assistência aos protagonistas envolvidos no tempo da perinatalidade. Havia um consenso entre os profissionais de que as práticas habituais deveriam e poderiam responder às expectativas de maior participação dos pais no momento da chegada dos filhos. O final da década de 1970 viu a inauguração da iniciativa de convidar o pai para a sala do parto, do contato da mãe com o bebê e aleitamento logo após sua chegada, da permanência deles, pós nascimento, no mesmo ambiente, da exclusão da mamadeira de glicose nos berçários. Viu a possibilidade de considerar a episiotomia e analgesia procedimentos não necessariamente rotineiros.

 

Essas conquistas teriam que ser feitas de ambos os lados: cabia à equipe multidisciplinar defendê-las, explicitá-las; seus desdobramentos exigiriam mudanças substanciais no modus operandi dos atendimentos, portanto na própria forma com que a perinatalidade seria pensada. Aos pais cabia experimentar uma nova abordagem e ousar escolher. A teoria e a clínica psicanalítica têm um importante papel nesta mudança: darem ao trabalho de escuta toda sua potência, e fornecerem uma teorização complexa sobre o psiquismo feminino nas suas relações com o grupo social, o outro sexo, a maternidade. O trabalho de pesquisa e clínica neste campo se inicia com psicanalistas contemporâneas de Freud, inaugurando um campo fértil de estudo que se mantém e continua enriquecendo-se[1].

 

No começo da década de 1980 estabelece-se o Gamp[2], que propõe um programa de educação e prevenção para a gravidez, parto e cuidados com o bebê. O grupo nasce sob o signo do multiprofissional: entre médicos e enfermeiras, o psicanalista tem a função de dar lugar à subjetividade, à leitura singular das mudanças corporais, isto é, propiciar espaço para a fala e sua escuta cuidadosa. Trabalho realizado preferencialmente em grupo, se multiplicou e foi estabelecendo-se nos mais diferentes lugares: empresas, ONGs, múltiplos espaços públicos de saúde, entidades filantrópicas, associadas a órgãos públicos. O trabalho inicial desdobrou-se em programas de visitas domiciliares a famílias com bebês recém-nascidos, com o objetivo não só de facilitar o aleitamento materno, mas de emprestar uma presença num momento delicado de passagem e começo ao mesmo tempo.

 

A clínica enquanto prática psicanalítica, sustentada e inspirada pela teoria, está implícita no texto do livro. Tratar diretamente dela não é a preocupação central da autora. O fio condutor da obra é a transmissão dos desdobramentos do saber psicanalítico na clínica da perinatalidade. O que comunicar, como fazê-lo, e em que momento.

 

A experiência de escuta de muitos casais, nos mais diferentes espaços e no decorrer de muitos anos, propiciou à autora familiaridade com as inquietações, dúvidas, angústias que são explicitadas sob diferentes formas nos grupos ou atendimentos individuais.

 

O texto se inicia com uma discussão sobre as ideologias envolvidas nas diversas abordagens de assistência a perinatalidade: naturalista, tecnicista e humanista. O que entra em jogo, em cada uma delas, é a potência ou não do corpo feminino, maior ou menor intervenção médica, maior ou menor consideração pelas variáveis culturais e subjetivas. O efeito dessas ideologias não poucas vezes se reflete no temor ao parto, tema central das preocupações das gestantes. A discussão de cada uma das abordagens tem como pano de fundo as estatísticas brasileiras do parto cirúrgico que, apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde, vem aumentando gradativamente entre nós nos últimos anos. Anna Mehoudar defende o protagonismo dos pais no decorrer de todo o processo gravídico puerperal, e fornece elementos para que cada um "aprofunde afinidades e escolhas". Esta é a razão maior do livro: oferecer informações precisas, bem dosadas, redigidas com cuidado e clareza, sobre os temas que cobrem o período da gravidez, parto e cuidado com os bebês. As informações vão de temas dos mais práticos e simples até os mais complexos e delicados. Tão simples mas pouco considerado é o tema que se refere aos "olhos, o olhar e a voz" (p. 65): a autora alude em poucas palavras ao movimento do bebê na busca da voz da mãe ou do pai nos primeiros cinco minutos após o nascimento: "o bebê gira o corpo em direção à voz da mãe ou do pai. Ele acalma-se e pode até dormir". E os convida ao encontro dessa competência do bebê. A "volta ao trabalho" (p. 85) costuma ser um tema espinhoso para as mães, pela ambiguidade que desperta: o desejo de voltar ao trabalho, retomar a rotina, e a dificuldade para se separar do bebê. A autora aponta o conflito e indica alguns caminhos para administrá-lo.

 

Segundo o desejo de Freud e Anton von Freund, os institutos de psicanálise que se organizavam na Europa e nos Estados Unidos em torno dos anos de 1919 e 1920 deveriam implementar, além de um sistema de formação, um serviço de psicoterapia para o público em geral e um espaço de pesquisa[3]. Na década de 1920, Berlim havia se tornado um polo importante do desenvolvimento da Psicanálise: organizavam-se palestras abertas para o público leigo; profissionais de medicina, como ginecologistas e obstetras, de pedagogia, se aproximavam do Instituto de Psicanálise; a clínica disponível para classes socioeconômicas menos privilegiadas, incluindo crianças, se expandia[4]. Isto é, a psicanálise está intrinsecamente ligada, desde seu começo, com a transmissão de suas descobertas e desenvolvimento àqueles profissionais para quem o conhecimento do psiquismo faz aliança com um trabalho potencialmente mais rico e eficaz.

 

Ao tema da transmissão se soma a preocupação da autora em desenvolver a possibilidade dos pais em participar como atores principais nas decisões e escolhas: o texto caminha com o objetivo de convidá-los a perguntar, escolher, tomar decisões, a serem observadores das suas gestações e do universo que se desdobra deles. Convida a uma parceria ativa com médicos e enfermeiras, e com o filho. Participa do ponto de vista de que a gestação como processo, quando pode ser subjetivado e expressado, proporciona um momento de transformação. A troca de experiências e fantasias no casal e entre os casais é uma fonte para criar soluções para cada novo impasse e dificuldade: torna positiva a singularidade de cada manifestação e ao mesmo tempo enfatiza a importância de socializá-las. A observação de si mesmos por parte dos pais pode vir a ser uma passagem para a futura observação e leitura das expressões do bebê.

 

A autora abre o leque para a consideração das manifestações psíquicas que coloca fora da patologia, e as promove como algo a ser esperado diante das vicissitudes da perinatalidade. Aponta para o perigo das interpretações psicológicas "levianas", e valoriza dúvidas e apreensões aparentemente prosaicas, mas que, esclarecidas, se transformam em instrumento para administrar ansiedades e desconfortos inerentes ao período. Há propostas no livro, curiosas, que têm implicações importantes, como a mala do pai para a ida à maternidade.

 

A consideração por pequenos elementos, não poucas vezes desvalorizados, dá ao texto um efeito desmistificador: pode-se e deve-se falar sobre o que incomoda, perguntar mesmo sobre o que parece ter pouca importância. Afirmações dadas como naturais ou fatos celebrados como certos são amplamente discutidos.

 

O subtítulo do livro informa ser este indicado para pais e profissionais. Obstetras podem obter informações sobre as fontes de angústia da mulher e do homem grávidos, a força da história pessoal da mulher no modo como vive a gravidez, o impacto das mudanças corporais na mulher e no homem. O texto é inspirador ao indicar o mérito de se levar em conta o que pais expressam, seja em forma de perguntas ou de preocupações, e evidencia a diferença que esta postura introduz na vida do casal e do filho que chega.

 

Durante a leitura poder-se-ia perguntar por que a autora optou por apresentar situações pontuais e aparentemente pouco centrais no percurso da gestação, parto e cuidados com o bebê: o namoro no pós-parto (cap. 5, p.?72), a prevenção de acidentes com os bebês (cap. 7, p.?102), os direitos das gestantes nos espaços públicos (cap. 8, p.?105). Contrária aos Cursos de Preparação para o Parto exclusivamente em forma de aulas expositivas, a intenção da autora é familiarizar os profissionais de saúde com os mais diversos ângulos das questões que envolvem a perinatalidade, com o objetivo de lhes dar liberdade para ouvir e poder administrar, a cada vez, o que vem a ser a prioridade de cada grupo e cada público. As surpresas e os desconhecimentos na condução dos grupos são a regra, e a proposta do texto é incluí-los e torná-los objeto de discussão e pesquisa.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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