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Resumo
Resenha de Beatriz S. A. Oliveira, Marta G. G. Baptista (orgs.), Linguagem e saúde mental na infância: uma experiência de parcerias, Curitiba, CRV, 2010, 119 p.


Autor(es)
Cibele Barbará
é psicóloga, psicanalista do Espaço Singular Clínica de Psicologia – sp, especialista em Psicanálise e Linguagem pela pucsp, participante das formações clínicas do Fórum do Campo Lacaniano sp. Graduada em Psicologia pela Universidade São Marcos.

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 LEITURA

Inspirações, transpirações e travessias

[?Linguagem e saúde mental na infância: uma experiência de parcerias?]


Inspirations, transpirations and crossing-over
Cibele Barbará

No calor da discussão sobre psicanálise, autismo e saúde pública, este é um livro que agrega e muito ao assunto, pois traz um verdadeiro testemunho de múltiplas práticas e vivências na área de linguagem e saúde mental na infância. Experiências que abordam temas preciosos e frequentemente discutidos por aqueles que trabalham na área: a formação terapêutica, a infância e o infantil, políticas públicas, trabalho interdisciplinar e institucional, inclusão escolar, entre outros. O livro reúne artigos de vários profissionais psicanalistas, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, assistentes sociais, psiquiatras e enfermeiros que, em algum momento, acompanharam e/ou participaram, diretamente ou através de parcerias institucionais, do trabalho com os Grupos de Linguagem e Psicopatologia na Clínica-escola do Centro Universitário São Camilo - SP. Alguns dos artigos trazem casos clínicos, o que torna a transmissão destas experiências ainda mais tocante e engrandecedora.

 

As autoras e organizadoras do livro, Beatriz Oliveira e Marta G. Gimenez Baptista, apresentam o trabalho realizado a partir do pedido da clínica-escola do curso de Fonoaudiologia do Centro Universitário São Camilo para atender crianças e adolescentes com comprometimentos psíquicos graves. Um projeto que implicou questões fundamentais, pois eram casos atípicos da clínica fonoaudiológica, principalmente para os alunos que ali estagiavam. Como acolher, como tratar os casos graves e como, a partir dessa experiência, os alunos ali inscritos poderiam construir um saber terapêutico para além da técnica e de um saber totalitário? Saber terapêutico, como explicam as autoras, que incluísse a particularidade de cada caso e as relações transferenciais em jogo entre terapeuta e paciente, que dizem muito e têm consequências na direção de um tratamento. Quando se pensa em formação como uma construção e um fazer, principalmente na área da saúde mental, será que a técnica é suficiente para dar conta da constituição de profissionais que tratarão de sujeitos? Será que a direção do tratamento desses casos não implica algo além?

 

A proposta e a aposta foram de um trabalho interdisciplinar, com supervisões semanais dos alunos e professores do curso de Fonoaudiologia em conjunto com uma psicanalista: "O encontro com este tipo de questionamento em nossa experiência como supervisoras sustentou a aposta de que fosse possível a construção de um espaço de supervisão em que a escuta dos alunos fosse privilegiada para a constituição de um saber sobre a prática clínica [...]." (p. 13). Para as autoras, sem este espaço o aluno, terapeuta em formação, dificilmente estaria em condições de se posicionar enquanto agente dessa construção, que pode vivenciar a experiência para além da técnica e extrair sua maneira de praticar a clínica.

 

Desse modo, a descrição de como organizaram o projeto e pensaram sua estrutura amplia e questiona a formação e a prática terapêutica não só da área de Fonoaudiologia, mas também dos mais variados profissionais da saúde mental e suas relações com as instituições onde trabalham. Como parece essencial e as autoras o destacam, quando se oferece um espaço de tratamento é esperada a queixa de sofrimento do paciente e a demanda de que o terapeuta tudo resolva. Diante disso é comum que alunos e profissionais sintam-se responsáveis em acabar com todo mal-estar, o que evidentemente não é possível. E frente a essa impossibilidade muitos alunos e profissionais aliam-se às instituições na tentativa de apagar qualquer contingência ou dificuldade inerentes ao exercício clínico. Sobre isso elas lembram que essa experiência aconteceu não só no contexto do discurso médico, mas também no do discurso da educação e que ambos mantêm relação íntima com as mais altas aspirações de perfeição intelectual e técnica: "Isso coloca em jogo as relações que se passam dentro das instituições, relações que não são sem consequências quando se sustentam num discurso que se pauta por verdades universais e silenciam a subjetividade de seus autores" (p. 14).

 

Na prática terapêutica, não é possível esquecer os laços com a família e com outros profissionais especialistas, as diretrizes das instituições, as políticas de saúde pública, etc., todos os atores e fatores devem ser levados em conta, seja porque atravessam o tratamento ou mesmo porque são essenciais na sua condução no âmbito da saúde mental. Conforme Rabello, para pensar no trabalho com a psicose, por exemplo, é imprescindível que se estabeleça o laço ou o vínculo com as mais variadas instituições e pessoas, pois, de forma contrária, corre-se o risco de conservar uma prática que reforça a exclusão social e institucional: "Lembrar de todos aqui é imprescindível, uma vez que o trabalho com a psicose não pode se dar na dimensão do autocentramento, não pode acontecer na ética do narcisismo - aí está o lugar próprio desse adoecimento" (p. 62). Para ela, construir e sustentar relações com a alteridade é condição da saúde mental, não só com a psicose, mas na comunidade em geral. Portanto, não é à toa que esses entrelaçamentos são tratados em cinco capítulos deste livro.

 

Um deles é o da Clínica Interdisciplinar Prof. Dr. Mauro Spinelli[1], no qual a equipe revela que em suas reuniões costumam discutir os jogos lúdicos que os pacientes apresentam nas sessões. Mais do que diversão, brincar é formação, experimentação, uma resposta do sujeito: "Mais especificamente, isso implica que lemos aquilo que a criança traz como se tratando de uma brincadeira" (p. 49). É brincando que a criança fala, elabora, põe em cena e se posiciona. Entender o brincar, dessa forma, é antes de tudo tomar a criança como alguém que está ali e tem algo a dizer: "Ao brincar, a criança tece uma ficção, e dar credibilidade a essa ficção é decisivo para o devir do sujeito. É por isso que o brincar se diferencia da realidade, mas toca a verdade do sujeito" (p. 55). É possível aprender muito mais com a criança tomando-a como que tem algo dizer, independente da profissão de quem a escuta: "Epistemologicamente, certamente também teremos muito mais a aprender com a criança quando, em vez de partir da delimitação de fronteiras rígidas entre as áreas do conhecimento, nos deixemos interrogar pelo que as transpõe, circula, tal como o brincar" (p. 55). Este posicionamento ético permite que se vá além de intervenções programadas, esquematizadas que visam encaixar aquilo que se recolhe na clínica na teoria. Como se, a partir de um mesmo caso, cada especialidade tivesse que reconhecer e enquadrar o brincar-dizer da criança a partir de um conhecimento pré-estabelecido. Cada qual em sua área dentro de suas próprias fronteiras.

 

A psicanalista Silvana Rabello também aborda o trabalho em rede através da história do Projeto Espaço Palavra, da pucsp. Mais que uma simples história, é um depoimento sobre as dificuldades, conquistas e elaborações da saúde mental, em especial no tratamento da psicose. Paralelo à história dessa instituição, é possível alcançar de maneira simples, mas contundente, um pouco do percurso da saúde mental na infância e alguns movimentos políticos e éticos que marcaram e marcam até hoje esse campo de trabalho. Tempos em que a maioria dos pacientes chegava para tratamento em idade avançada, os pais vinham desamparados e desinformados, os recursos de tratamento eram muito escassos e restritos a processos psicoterapêuticos, tudo isso sem que houvesse discussões sobre intervenções educacionais e pedagógicas. Conflitos que exigiram que profissionais, das mais variadas áreas e linhas teóricas, tivessem que se aproximar, para "rever seus paradigmas em busca de uma nova e melhor compreensão do que se passava com essas crianças e sobre o que pudesse melhor atender às suas necessidades" (p. 66). Revisão imprescindível que ajudou (e ajuda) muitos profissionais e instituições repensarem o lugar do sujeito além de seus modelos. Daí surge a necessidade, como salienta a autora, de rever constantemente a formação dos profissionais que atuam nesta área, a importância do trabalho interdisciplinar na direção de um tratamento e de construir e reconstruir os saberes sobre esses pacientes. Em suma, movimentos internos e externos necessários e constantes, contra verdades absolutas. Como diz Rabello, o trabalho com a psicose, em especial, "não pode acontecer na ética do narcisismo - aí está o lugar próprio desse adoecimento" (p. 62). Na condução desses tratamentos é preciso uma rede de cuidados não só para o paciente e para a família como também para o profissional da saúde ou da educação. Um difícil e desafiante exercício ético e político que valoriza a alteridade e articulação em rede:

 

O professor solitário desanima, o psicólogo solitário desanima, o fonoaudiólogo solitário desanima, o paciente solitário desanima - os obstáculos são muitos. Só a rede de profissionais pode sustentar o sentido de tantos investimentos, o reconhecimento das pequenas conquistas diárias que irão compor, aos poucos, as importantes mudanças na qualidade de vida deste paciente, seja ele adulto ou criança (p. 73).

 

Da mesma forma a equipe do Capsi Jabaquara - SP (Centro de Atendimento Psicossocial da Infância) e equipe do Hospital Dia Infantojuvenil - Hospital das Clínicas - SP descrevem a história e funcionamento dessas instituições pautadas nos desafios inerentes a qualquer projeto terapêutico no campo da saúde mental. O esforço do trabalho interdisciplinar, com os mais variados dispositivos de saúde e de educação, vai sempre em direção de transformar a atuação solitária do especialista em atenção multiprofissional, sustentando um espaço de discussão, construção e articulação de soluções para os casos que ali se apresentam. Para que esse diálogo ocorra é preciso, muitas vezes, colocar em pauta as especificidades de cada membro, as particularidades de cada especialidade, as dificuldades individuais e de equipe e, por fim, estar aberto a rever posturas, atitudes e condutas. Um esforço em direção à criação de soluções alternativas, evitando, comodeclaram, a psiquiatrização e a psicologização.

 

Com relação à inclusão educacional, tema que não poderia deixar de marcar presença nesta publicação, a fonoaudióloga Marta Gimenez aborda também a importância do trabalho em equipe, mas sugere que, antes da discussão sobre a inclusão, é fundamental repensar como a criança aprende. Ela relembra que a criança aprende, antes de tudo, se separando, experimentando e interagindo com os outros e constitui sua singularidade independente da constatação de um grave comprometimento físico ou psíquico. Em outras palavras, ter algumas limitações ou dificuldades não a impede que se desenvolva, aprenda, interaja e faça parte da comunidade ao seu modo. Trabalho que começa em casa e tem continuidade nas relações que estabelecerá com a família, amigos, vizinhos, escola, etc. É preciso ter isso claro para entender que circular em outros espaços sociais, em especial na escola regular, tem importância para além da aprendizagem formal. A autora explica que para que essa experimentação possa acontecer é preciso que o professor estabeleça com a criança um vínculo de confiança que dê lugar para suas dúvidas, reflexões espontâneas, comentários. Que dê espaço para que o previsto e também o imprevisto possam vir à tona: "O imprevisto é algo que faz com que o educador reconstrua seu papel, modificando atitudes, planejamentos, expectativas. Enfrentar o desconhecido é deparar com o que não se sabe, o que torna complicada a posição do professor, para quem até então se cobrava o saber" (p. 111). Tarefa árdua quando constamos que, na contemporaneidade, o imprevisto é considerado um erro e os professores são convocados ao imperativo de tudo saber, de corresponderem a ideais: "Para o professor que sempre foi chamado a saber sobre tudo, quando depara com o não saber, não ter a melhor resposta para atender àquela criança é muito difícil. A sensação de impotência e incompetência comparece atrapalhando o trabalho" (p. 111). E, perante essas sensações angustiantes, o risco é fazer sobressair o diagnóstico e amarrar o sujeito dentro desta fronteira, sem levá-la em conta: "Se a escola destaca a questão do diagnóstico pode amarrar, sem perceber, o destino do aluno na instituição educacional e a possibilidade de a criança surpreender e realizar um caminho singular independente da história da sua doença" (p. 110). E isso vale, a meu ver, para todos aqueles envolvidos no tratamento da criança, inclusive pais e familiares.

 

É sobre o risco de operar a clínica através de discursos hegemônicos, que as psicanalistas Ana Laura Prates Pacheco e Beatriz Oliveira falam a respeito do lugar que a criança e a infância passam a ocupar a partir da modernidade e do discurso científico. Destacada e diferenciada do adulto, a criança passa a ser objeto de inúmeros estudos e a infância, um momento em que, imperiosamente, ela deve ser educada, preparada, disciplinada e seu corpo conformado. A criança é elevada a uma espécie de categoria geral de estudo, ramificada em especialidades que se dividem e discutem o desenvolvimento natural e orgânico por um lado e, por outro, sua constituição social. Ainda para complicar, como alertam as autoras, comumente é depositária dos ideais de sucesso e desejos insatisfeitos de seus pais. Assim, estariam destinados a realizá-los quando adultos, pagando o alto investimento em educação e sacrifícios feitos por seus familiares: "‘O tempo para se educar' corresponderá, então, ao tempo da passagem, da transição entre o infans e o chamado ‘adulto' - o sujeito formado, educado, maduro, desenvolvido e adaptado" (p. 24). Dificilmente, e esta é uma das críticas fundamentais trazidas por ambos os textos, as crianças são tomadas como alguém que participa, escolhe, tem suas próprias fantasias, suas próprias questões e ideais. É justamente neste ponto fundamental que a psicanálise é subversiva, pois toma cada criança, uma a uma, sem se "embaraçar pelos fenômenos e discursos sobre a infância que apagam o sujeito" (p. 39).

 

 Nos capítulos desta publicação, encontramos diversos relatos de profissionais e de instituições, que falam a partir de lugares e temas diferentes. Mas, ao longo da leitura, é revelada a parceria que fizeram. E mais, é possível perceber claramente que o que atravessa todos é um posicionamento ético, que não se cansa de repensar, construir e reconstruir um saber e um fazer. Que são cientes das inúmeras dificuldades e impasses, mas que, ainda assim, apostam nos sujeitos na sua máxima diferença.
 

. Não tomam a técnica com um fim, nem o diagnóstico como destino.



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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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