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Resumo
A psicanálise contemporânea tem atribuído lugar de honra à função do sonhar enquanto atividade simbolizante, e entre seus elementos constituintes ressalto a figurabilidade, resgatada da análise freudiana dos sonhos noturnos e tomada como trabalho psíquico do e no espaço intermediário entre analista e analisante. No mesmo sentido que a construção, a figurabilidade se revela como um operador fundamental de ligação – produtor, portanto, de novas realidades. Isto é investigado no jogo dos rabiscos de uma consulta terapêutica de Winnicott, e num momento fundamental do processo analítico com um de meus analisantes.


Palavras-chave
figurabilidade; sonho; ligação; transferência; jogo dos rabiscos; Winnicott


Autor(es)
Lia Pitliuk


Notas

1.W. Winnicott. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil, p.?20-36.

2.Derrida, filósofo francês, fazendo um belíssimo trabalho pela psicanálise, propõe que, mais do que em substituição, pensemos em disseminação (J. Derrida, La Dissémination); que mais do que em substituto, pensemos em suplemento (J. Derrida, De la Grammatologie)

3..W. Winnicott, op. cit., p.?23.

4.D. W. Winnicott, "O brincar: uma exposição teórica", in O brincar & a realidade, p.?59.

5.A edição brasileira da Standard Edition (Imago) das Obras Psicológicas Completas de Freud optou por traduzir Darstellbarkeit por "consideração pela representabilidade"; Laplanche e Pontalis, em seu Vocabulário da Psicanálise, propõem "consideração à figurabilidade ou representabilidade" (p. 250). Entretanto, os dois termos estão longe de equivaler. Para as questões de tradução e, para além delas, para um panorama histórico da própria noção de figura, o leitor pode consultar o Estudo I de A figura na Clínica Psicanalítica, de Eliana Borges Pereira Leite.

6.S. Freud. (1900), A interpretação de sonhos, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. v, p.?364-365.

7.S. Freud, op. cit., p.?362.

8.C. e S. Botella, La figurabilidad psíquica.

9.B. P. Leite, A figura na clínica psicanalítica.

10.    C. e S. Botella, op. cit., p.?70.

11.    C. e S. Botella, op. cit., p.?68.

12.    C. e S. Botella, op. cit., p.?68.

13.    D. W. Winnicott, Consultas terapêuticas..., op. cit., p.?23.

14.    B. P. Leite, op. cit., p.?190.

15.    E. B. P. Leite, op. cit., p.?71.

16.    D. Gurfinkel, Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe, p.?322-323.

17.    S. L. Alonso, "O trabalho da figurabilidade na escuta psicanalítica", in O tempo, a escuta, o feminino, p.?131.

18.    S. L. Alonso, op. cit., p.?131.

19.    T. Ayouch, "Genealogia da intersubjetividade e figurabilidade do afeto: Winnicott e Merleau-Ponty", Psicol usp, vol. 23, n. 2, 2012, p.?268.

20.    D. W. Winnicott, Consultas terapêuticas..., op. cit., p.?31.

21.    Guattari e S. Rolnik, Micropolítica - cartografias do desejo, p.?222-223.



Referências bibliográficas

Alonso S. L. (2011). O trabalho da figurabilidade na escuta psicanalítica. In O tempo, a escuta, o feminino. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Ayouch T. (2012). Genealogia da intersubjetividade e figurabilidade do afeto: Winnicott e Merleau-Ponty. Psicol. USP, vol. 23, n.?2, p.?253-274.

Botella C. e S. (2003). La figurabilidad psíquica. Buenos Aires: Amorrortu.

Derrida J. (1967). De la Grammatologie. Paris: Minuit.

_____. (1972). La dissémination. Paris: Éditions du Seuil.

Freud S. (1900/1977). A interpretação de sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. Vols. IV e V.

Guattari F.; Rolnik S. Micropolítica - cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.

Gurfinkel D. (2008). Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe. São Paulo: Escuta/Fapesp.

Laplanche J.; Pontalis J.- B. (1976). Vocabulário da Psicaná­lise. Lisboa: Moraes.

Leite E. B. P. (2001). A figura na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Winnicott D. W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
Among the symbolizing functions of dreams, figurability is prominent. Here it is taken as a part of the psychic work occurring in the “intermediate space” between analyst and patient. As a fundamental operator of linking, figurability is equal in importance to construction: it produces new realities. Examples of this can be seen in the “squiggle game”, both in a case of Winnicott and in the analytic process of one of the author’s patients.


Keywords
figurability; dream; Winnicott; analytic process.

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 TEXTO

Rabiscos em transferência: a figurabilidade na clínica psicanalítica

Squiggles in transference: figurability in the practice of Psychoanalysis
Lia Pitliuk

A psicanálise contemporânea tem se debruçado bastante sobre a centralidade da função do sonhar no psiquismo humano em geral, e no processo analítico em particular, o que nos convoca à pesquisa de seus elementos constituintes e à consideração de como estes se apresentam e se desdobram em nossa clínica. Entre esses elementos, penso que a figurabilidade, noção que ocupa uma posição bastante lateral na obra freudiana, merece atenção especial por seu potencial simbolizante e construtor de realidades.
 

Iniciemos pela clínica: uma consulta terapêutica de Winnicott que, por estar constituída por um único encontro, nos fornece um cenário relativamente simples, ideal para nosso objetivo de pesquisa. Quando Winnicott e Iiro começam seu jogo de rabiscos[1] e o menino desenha a pata de um pato, Winnicott a toma como representação das mãos e pés deformados de Iiro. Em psicanálise, estamos completamente à vontade com esse tema da substituição, artifício pelo qual o aparelho psíquico, sempre que necessário, evita o doloroso e o proibido, encontrando um caminho alternativo de descarga, de comunicação e de processamento. Os estudos freudianos sobre a neurose, sobre os sonhos e sobre muitas das realizações humanas, individuais e coletivas, se apoiam justamente nessa premissa da substituição.

 

Só que uma pata de pato não se limita a ser só um veículo de um sentido original, deslocado: em si mesma, ela carrega muitos sentidos. Por exemplo, ela é parte de um pato. E é assim que, no momento seguinte, Iiro desenha um pato... e, claro, não se tratava de um pato "em geral", mas um pato específico: um pato nadando num lago.

 

Temos aqui um enriquecimento da substituição. Podemos pensar que ela floresce, que se dissemina[2]. De fato, na transformação que Iiro faz do rabisco de Winnicott, com a chegada do pato nadando num lago, todo o cenário se amplia. Surgem, em Winnicott, um sentimento e uma associação: "Senti então que Iiro me havia comunicado um sentimento positivo em relação a patos, a nadar e a lagos. Incidentalmente, a Finlândia é composta de lagos e ilhas e todas as crianças de lá têm ligação com natação, barcos e pescaria"[3].

 

"Um sentimento positivo", diz Winnicott. Ligado, por um lado, à figura desenhada por Iiro... mas, evidentemente, superposta a uma outra figura, bem agradável, que emergiu em Winnicott por associação: crianças nadando, remando e pescando em lagos e ilhas da Finlândia. Eis aqui uma ilustração exemplar da famosa frase de Winnicott: "A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta"[4].

 

As superposições, entretanto, não se esgotam ali. Como leitora, ao deparar com essa passagem, também tive sentimentos e associações, e quase pude ver uma cena, um quadro primaveril, muito colorido, com lago, barco, crianças e patos... e quase escutei o barulho das crianças rindo e brincando, mergulhando na água, nadando e subindo de volta ao barco... Figurações.

 

Façamos uma breve visita à Interpretação de Sonhos, de 1900, quando Freud nomeia quatro mecanismos constituintes dos sonhos: a condensação, o deslocamento, a elaboração secundária, e um quarto mecanismo, a consideração pela figurabilidade[5]. A ideia de Freud é que, pela característica dos sonhos, o aparelho psíquico precisa trabalhar com figuras, com elementos que tenham forma plástica, sensível - forma pictórica, preferencialmente, ou forma acústica.

 

Entre os muitos deslocamentos que uma ideia pode sofrer, escreve Freud, a montagem do sonho escolhe aquele que é mais passível de ser representado numa forma sensível e concreta. Num de seus exemplos[6], uma senhora tinha grande simpatia por um músico, chamado Hugo Wolf (wolf = lobo, em alemão), cuja carreira fora prematuramente interrompida pela loucura; na construção do sonho, a senhora se encontrava na ópera e em meio às poltronas havia uma torre alta em cujo topo ficava o maestro, correndo em torno de uma grade como um prisioneiro ou um animal enjaulado. Desta forma ele regia a orquestra. Freud nos diz então que a senhora desejava que aquele homem, com quem ela simpatizava, estivesse ali, "muito acima dos outros membros da orquestra". Colocá-lo fisicamente no alto de uma torre, girando como um louco, agindo como um animal enjaulado, foi a forma - figural - do desejo - censurado - se expressar.

 

Com Freud, então, diríamos que, entre as muitas maneiras que os pensamentos e os sentimentos de Iiro teriam para se expressar, deu-se aquela que era mais compatível com o jogo dos rabiscos proposto por Winnicott.

 

Entretanto, trabalhando com Freud e Winnicott, já não pensamos apenas no aparelho psíquico de Iiro, mas também no "aparelho relacional", ou no campo entre Winnicott e Iiro. Porque não temos como afirmar "sim, era isso mesmo que Iiro estava sentindo e pensando", ou "não, Winnicott pensou nisso sozinho, porque o pato de Iiro estava triste, solitário e abandonado naquele lago, e não nadando alegre e feliz". Se, como penso, sustentamos a noção de espaço transferencial como espaço intermediário, então a própria pergunta sobre autoria ("de quem eram essas figuras?") não deve ser feita: na superposição de experiências produziu-se uma composição nova. Já não se trata então de representação, mas de apresentação: algo se presentifica de modo imediato e direto, através de uma forma plástica, de uma imagem sensível.

 

Assim vai se delineando essa aptidão especial da figura para a criatividade, para produzir o novo. Aptidão já sublinhada por Freud no próprio A interpretação dos sonhos, ao marcar que a figurabilidade, além de implicar uma espécie de tradução dos pensamentos em representações pictóricas, traz também outros efeitos: ela beneficia a condensação... beneficia a censura... e produz uma riqueza associativa especial porque "os termos concretos [...] são mais ricos em associações do que os conceituais"[7]. E é esse ponto, justamente, que será ressaltado nos trabalhos de retomada da noção de figurabilidade, cem anos depois.

 

O trabalho da figurabilidade

Cito duas referências que me foram muito importantes. Curiosamente, dois livros publicados no mesmo ano, 2001, um na Europa e outro no Brasil, sem que nenhum dos autores tivesse conhecimento da pesquisa do outro. Por um lado, a publicação na França de César e Sára Botella, chamada A figurabilidade psíquica[8]; e, por outro, o excelente A figura na clínica psicanalítica[9] de Eliana Borges Pereira Leite, colega do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

 

Inicialmente, foi o trabalho com crianças psicóticas muito pequenas que levou os Botella a dar importância à figurabilidade, considerada como assunto de sobrevivência psíquica: a figurabilidade como um movimento regressivo que se dá no pensamento do analista frente a situações-limite. E esse movimento, dizem os Botella, "abre a sessão a uma inteligibilidade da relação dos dois psiquismos funcionando em estado regressivo"[10].

 

Com o tempo, os autores passaram a considerar os efeitos da figurabilidade em todas as formas de expressão psíquica, considerando-a como "trabalho diurno complexo, aparentado ao do sonho noturno"[11]. Tomando-a então como o procedimento primordial de toda ligação, em 2001 irão defini-la como um "processo psíquico fundador que, desenvolvendo-se na via regressiva, estaria determinado pela tendência a fazer convergir todos os dados do momento, estímulos internos e externos, numa única entidade inteligível, orientada a ligar todos os elementos heterogêneos, presentes numa simultaneidade atemporal, em forma de atualização alucinatória"[12].

 

É é assim que, nesse momento, César e Sára Botella cunham a feliz expressão trabalho da figurabilidade - trabalho de ligação dos elementos mais diversos que, então, convergem numa entidade, numa figura, composta por elementos múltiplos e heterogêneos: o discurso ou a ação do analisando - como, no nosso caso, a transformação do rabisco feita por Iiro; a transferência e a contratransferência, obviamente; o material perceptivo atual (como, na consulta terapêutica, a visão das mãos de Iiro por parte de Winnicott); as impressões corporais do momento; etc. Em resumo: pela via regressiva, os estímulos presentes na situação - e suas ressonâncias - convergem numa figuração, numa atualização, que pode mesmo se parecer com uma alucinação.

 

Voltemos à consulta terapêutica de Iiro, em que logo se chega a uma nova figuração: quando, conversando sobre música, Iiro diz que toca um pouco de piano, Winnicott o imagina tocando uma melodia com um único dedo, deformado; e associa a isso a imagem de um pato tocando flauta, o que lhe permite propor ao garoto, via brincadeira, uma primeira apresentação da ideia de incapacidade: "difícil um pato tocar flauta"[13].

 

Temos aqui um novo exemplo da criação da figurabilidade. E não uma criação qualquer, mas um encaminhamento, uma invenção de uma realidade singular que a dupla usará para seguir em seu trabalho. A este respeito, é muito precisa a frase de Eliana Borges Pereira Leite: "No limiar entre o sensorial da imagem e a abstração da linguagem verbal, a figura é recepção, trânsito e transformação, ponto de encontro, passagem [...]"[14]. E pensar assim permite que a autora tome o próprio método analítico como um método de construção e interpretação figural em que as produções do paciente "[...] despertam no analista imagens que passam a mover-se num espaço de natureza virtual, como o do sonho [...]"[15].

 

Trata-se, então, de nos colocarmos em posição de acolher as figurações, e essa talvez seja uma das marcas mais importantes do que podemos entender por psicanalista: alguém que cultiva essa qualidade de presença, esse posicionamento que nos situa, na clínica, como cossonhadores. A este respeito, em Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe, Décio Gurfinkel conclui sua vasta pesquisa sobre o sonhar e sua relação com a experiência analítica com uma formulação irretocável: "[...] além do suposto saber, o que estrutura a situação analítica e sustenta a transferência é também um suposto sonhar. Supõe-se, no próprio analista, uma capacidade de sonhar, e uma disposição para colocar este sonhar a serviço de um outro"[16].

 

Parafraseando Gurfinkel, digamos então que se supõe no analista uma capacidade de figurar e uma disposição para colocar esse figurar a serviço de um outro. Silvia Alonso explorou exatamente esse tema em 2005, propondo dois elementos necessários para que o trabalho da figurabilidade possa se dar no processo analítico. Por um lado, situa a "importância da mobilidade psíquica do analista, assim como do papel fundamental da criatividade e do humor [...]"[17]. E, por outro lado, o funcionamento regressivo (no sentido tópico) do analista, que "o levaria ao limite do mundo da representação, propiciando o surgimento de uma imagem, quase uma alucinação, que ele então coloca em jogo, entrega para o analisando"[18].

 

Por estar se referindo a uma impossibilidade representativa do paciente, Alonso supõe um trabalho da figurabilidade a cargo do analista: este, acolhendo as ressonâncias das expressões do paciente, propicia em si mesmo a formação de figuras que ele, então, "entrega para o analisando". Encontramos essa mesma ideia num artigo recente de Thamy Ayouch, psicanalista francês que, num interjogo entre Merleau-Ponty e Winnicott, aborda também o tema da figurabilidade: "Trata-se de providenciar, nas ‘imagens autóctones' do analista, um material sensorial, encarnado, corporal, suscetível de traduzir aquilo que nunca recebeu forma nem figuração no analisando"[19].

 

Note-se, entretanto, que, embora os autores estejam se referindo a figuras que se formam no analista, não há aqui dualidade opositiva analista/analisando: a figurabilidade é um trabalho do e no campo da superposição. O produto desse trabalho - a figura - se presentifica em um dos membros da dupla analítica, ou alternadamente em um e em outro, ou no que se tece entre eles; o fundamental é que não o situemos como produto de um psiquismo, mas como operação desdobrada no espaço transicional da transferência.

 

Com alguma frequência, tal operação chega mesmo a sustentar a possibilidade de um processo analítico. Isto se deu, por exemplo, num momento intenso e dramático do início do trabalho com Julia, analisanda jovem, advogada, muito racional, firme e mesmo dura, que solicita análise quando seu casamento desmorona. Iniciamos o trabalho de análise sem que eu tivesse razão alguma para supor que não se tratasse de uma neurose - bem estruturada, inclusive.

 

Antes de mais nada, um parêntese sobre meu modo habitual de trabalhar: costumo ser bastante rigorosa no enquadramento dos processos analíticos, porque em enquadres bem delimitados me vejo trabalhando melhor, e mais livremente. E no início das análises, ao propor meu modo de trabalhar, sempre incluo a possibilidade de troca de horários de sessão, desde que o paciente solicite isso com no mínimo 24 horas de antecedência. Isso é explicado com bastante cuidado, e me certifico de que seja bem compreendido pelos analisandos.

 

Julia compreendeu bem minha proposta de trabalho e durante algum tempo seguiu esse combinado à risca, pedindo trocas com alguma frequência, e funcionávamos bem. Até que, numa noite, deixou um recado em minha secretária eletrônica dizendo que não viria em seu horário do começo da tarde do dia seguinte, e que combinaríamos a troca durante a próxima sessão. Na sessão subsequente, então, frente à sua retomada do pedido, eu lhe respondi que não poderia fazer a troca porque, como eu tinha lhe explicado, preciso de um mínimo de 24 horas para me reorganizar e realocar horários.

 

Foi como se um raio a atingisse: Julia se enfureceu, transformando-se numa espécie de promotor público justiceiro e raivoso, argumentando num tribunal de júri quanto aquilo não era justo. A transformação foi brutal, e a cena de fúria era realmente impressionante e extremamente violenta.

 

Sustentei a situação naquela sessão e em boa parte da seguinte, dizendo-lhe que precisávamos compreender o que estava em jogo. Julia continuou discursando, furiosa... até que tive uma "quase-alucinação": de repente, eu "a vi" com uns quatro anos de idade, numa praia muito lotada de guarda-sóis e pessoas, perdida, desesperada, sem localizar nenhuma referência. Mais que tudo, "vi" o pânico nos seus olhos.

 

Precisei de alguns minutos para acolher o que "vi", antes de poder lhe dizer: "Julia, não concordo com seus argumentos, eu realmente trabalho com esse espaço de 24 horas de antecedência porque eu preciso desse tempo. Mas vou aceitar o seu pedido de troca. Não porque você tenha me convencido, mas porque vejo que você precisa muito disso. E precisa já!".

 

Julia não utilizava o divã, o que me permitiu ver sua expressão facial nesse momento, muito difícil de ser traduzida em palavras; introduzindo outra figura, agora, eu diria que era como se eu tivesse me transformado numa porta para um outro mundo, como se ela estivesse vendo algo muito estranho "através" de mim. Julia se acalmou... logo achamos um horário para a troca... e depois de algum tempo ela me contou o que tinha escondido até ali: que ela se cortava - barbaramente, vim a saber mais à frente; que isso acontecia quando recebia certos "nãos" do mundo; e que, "pela minha rigidez" na sessão anterior, tinha vindo a esta sessão decidida que seria a última, e que no fim de semana faria seu "ritual do se cortar", interrompido desde sua primeira consulta comigo.

 

Vale ressaltar que até o surgimento da figura em meu psiquismo, eu não via razões para abrir uma exceção no enquadramento do nosso trabalho: eu entendia que Julia tentava subverter nosso combinado, buscando não pagar preço algum pela intercorrência que lhe impossibilitaria vir a uma sessão. Entretanto, com minha "quase-alucinação" uma outra realidade, não perceptível até então, veio ao nosso campo compartilhado: a realidade de um desamparo e de uma angústia terroríficos, que necessitavam de reconhecimento e acolhimento imediatos para que um espaço de análise pudesse se constituir.

 

Não tenho dúvidas de que essa figuração, "vista" por mim, foi produzida entre analisante e analista. Por um lado, havia seu olhar desesperado, até aquele momento muito ofuscado pela rudeza de seu tom de voz e de seus gestos; por outro, estavam minhas lembranças de infância relativas a "crianças que se perdem em praias entulhadas de turistas", representantes pessoais do sentimento de desamparo e de pânico. No encontro entre esses dois universos presentificou-se a figura que, em seu impacto, introduziu uma transformação crucial no processo analítico.

 

Construindo malabares

Mantidas as proporções, entendo que, no final de sua consulta terapêutica, a experiência de Winnicott - uma "quase-alucinação" relativa a um Iiro pequenino - foi semelhante à minha, só que referida a um sentimento de bem-estar, bem diferente do que tive com Julia. Winnicott figura Iiro em "estado primitivo", no pré-nascimento, e recém-nascido... com pés e mãos ligados... bem e feliz. E Winnicott não se limita a traduzir essa imagem em palavras, mas a utiliza numa formulação que merece ser retomada por inteiro: "Está me dizendo que gosta de você, mesmo com seus pés e mãos ligados, e que precisa que as pessoas o amem da maneira como era quando nasceu. Já crescido, você quer tocar piano, flauta e fazer trabalhos manuais, e assim concorda em continuar a ser operado, mas a coisa principal é ser amado como é e do modo como nasceu"[20].

 

É uma fala que, desdobrada, abre passagem para alguns dos pontos mais essenciais da obra de Winnicott - ao tema da aceitação, por exemplo, cuidadosamente diferenciado de qualquer adaptação submissa. Através de uma formulação interpretativa no espaço transicional-transferencial ("está me dizendo que..."), Winnicott produz, junto com Iiro, essa perspectiva sobre a importância, e a capacidade, de ser amado. Era uma potencialidade presente no modo de Iiro ser e viver, mas que, para germinar, também precisava de um Winnicott, justamente alguém que teoriza sobre self verdadeiro e falso... e sobre adaptação e submissão e vida reativa... e que pensa que só sendo amado como se é, é que se consegue ser e, assim, viver uma vida própria e significativa.

 

Claro que com a frase "está me dizendo que...", Winnicot não pretendeu fazer uma tradução do que se passava com Iiro: tratava-se, mesmo, de uma construção da dupla. Uma construção que não se limitava a esclarecer algo - o que já não seria pouco -, mas que também indicava novos caminhos, no mesmo sentido em que Guattari propõe que tomemos os lapsos e os sintomas: "[...] como pássaros que vêm bater seus bicos no vidro da janela. Não se trata de ‘interpretá-los'. Trata-se, isto sim, de situar sua trajetória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos de referência, os quais podem adquirir uma consistência suficiente para provocar uma virada na situação. [...] É um pouco em função disso que conduzo minhas estratégias. O que fazer, em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação que se está vivendo? [...] É preciso aprender a fazer malabarismos"[21].

 

Nesse contexto, tomo o trabalho da figurabilidade como um operador fundamental do processo analítico. Um trabalho conjunto "malabarístico", composto por elementos psíquicos das mais variadas naturezas (afetos, percepções, sensações, representações, vivências), desdobrado no campo transicional da transferência, que permite, facilita e promove o surgimento de uma figuração. E, mais que tudo, acredito que, tratando-se de verdadeiro trabalho, e de uma experiência - não redutível, portanto, a uma mera representação de algo pré-existente -, a figurabilidade conduz para algum lugar, provoca uma "guinada" na situação, aponta para novos universos - parte essencial do que entendemos por trabalho psicanalítico.


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