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Resumo
Este artigo trata da introdução do conceito de identificação passiva na Teoria da Sedução Generalizada e da relação desse conceito com a teoria da designação de gênero de Robert Stoller e com a hipótese de Laplanche sobre a origem do complexo de castração.


Palavras-chave
identificação passiva; gênero; Teoria da Sedução Generalizada


Autor(es)
Paulo de Carvalho Ribeiro
é psicanalista e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.


Notas

1 Este artigo reproduz com alterações e acréscimos algumas partes do artigo “Identification passive et séduction généralisée”, de minha autoria.

2 C. Dejours, “Théorie de la séduction : validation, réfutation”, p. 7-8.

3 J. Laplanche, “Le genre, le sexe, le sexual”.

4 Referência às teorias que pressupõem o sujeito como centro do psiquismo, assim como se supunha a Terra como centro do universo.

5 Cf., por exemplo, a seguinte afirmação contida no artigo “Implantation, intromission”: “Projetar, introjetar, se identificar, foracluir etc. Todos esses verbos com os quais a teoria psicanalítica trabalha para descrever os processos psíquicos têm em comum o fato de ter como sujeito o indivíduo em questão: eu projeto, eu introjeto, eu denego, eu recalco, eu foracluo etc. O que é que foi, como no caso de Aristarco, escotomizado? Simplesmente essa descoberta que o processo vem originalmente do outro. Os processos em que o indivíduo manifesta sua atividade são todos secundários em relação ao tempo originário que é aquele de uma passividade: a mesma da sedução” (in La révolution copernicienne inachevée, Paris: Puf, 1992, p. 357, traduzido por mim).

6 Num texto apresentado no iv Colóquio Internacional sobre a obra de Jean Laplanche, Silvia Bleichmar faz o seguinte questionamento: “[Si] reprimir es en principio traducir, cuáles son las condiciones mínimas de una traducción: presencia de un código – provisto por el adulto – y capacidad mínima de manejar un código: representarse. Es aquí donde diverge mi posición com la de Laplanche, quien lo resuelve nos siguientes términos: los messajes del outro son inscriptos antes de poder ser representados, pero el estadio de la traducción supone esse trabajo de répresentación que es secondario. Los lactentes pueden fantasear? (“Mi recorrido junto a Jean Laplanche”, p. 25).

7 Num texto apresentado no mesmo colóquio, eu fazia a seguinte objeção: “A criança traduz de forma incompleta as mensagens enigmáticas do adulto e o resto não traduzido torna-se objeto-fonte da pulsão. Considerando que esse processo é válido também para o recalcamento originário, uma importante questão se coloca: visto que ainda não existe um eu a quem poder-se-ia atribuir a iniciativa da tradução, então quem traduz?” (“Le sexué et le sexuel dans la formation de l’inconscient”. Traduzido por mim.)

8 Cf. Nouveaux fondements pour la psychanalyse, p. 93-95.

9 J. Laplanche, “Sublimation et/ou inspiration”, in Entre séduction et inspiration: l’homme, p. 310-311. (Traduzido por mim).

10 “Identity and Sexuality: A Study of Their Interrelationship in Man”, p. 179-260.

11 Psychanalyse à l’Université, p. 71-79.

12 Identification, refoulement et castration: Étude sur les effets du refoulement de l’identification à la mère dans la constituition de l’inconscient chez l’individu et dans l’élaboration de l’oeuvre de Freud, Tese de doutorado defendida em 22 de maio de 1992, na Universidade Paris 7, p. 66. (Traduzido por mim. Itálicos no original).

13 Eis alguns textos de J. André relacionados com a sexualidade feminina: “La sexualité féminine: retour aux sources”, Psychanalyse à l’Université, p. 5-49; La sexualité féminine; “Panpan tutu”, Psychanalyse à l’Université, p. 139-140; Aux Origines Féminines de la Sexualité; “Feminilidade adolescente”.

14 Aux origines féminines de la sexualité, p. 131.

15 R. Stoller, “La dificille conquête de la masculinité”, p. 211. (Traduzido por mim).

16 R. Stoller, The transexual experiment, p. 54-55. (Traduzido por mim).

17 R. Stoller, op. cit., p. 80.

18 R. Stoller, op. cit., p. 95.

19 Laplanche sustenta este ponto de vista valendo-se, entre outros argumentos, de uma referência ao artigo de Martin Domes intitulado “La théorie de Margaret Mahler reconsiderée”.

20 J. Laplanche, op. cit., p. 94.

21 J. Laplanche, op. cit., p. 93.

22 J. Laplanche, op. cit., p. 90 e 93.

23 “Resta a Stoller imensos méritos: ter ressaltado a aparição precoce da identidade de gênero. Ter, em seus momentos de maior lucidez, atribuído a identidade de gênero à unidade complexa feita de “designação” e das “mensagens infinitas, refletindo as atitudes dos pais, endereçadas ao corpo da criança e à sua psique” (J. Laplanche, op. cit., p. 95) (Traduzido por mim).

24 J. Laplanche, “Sublimation et/ou inspiration”, in Entre séduction et inspiration: l’homme.

25 Y. Bonnefoy, Giacometti, p. 374. (Apud J. Laplanche, Sublimation…, op. cit., p. 331-332).

26 J. Laplanche, Sublimation…, op. cit., p. 333.

27 Laplanche reproduz aqui algumas conclusões oriundas de um diálogo com Daniel Widlöcher sobre sexualidade infantil, que resultou numa publicação conjunta: Daniel Widlöcher & Jean Laplanche, Sexualité infantile et attachement.

28 J. Laplanche, ‘‘Court traité de l’inconscient’’.

29 Cf. H. Roiphe & E. Galenson. La naissance de l’identité sexuelle, p. 43-44. (Título original: Infantile origins of sexual identity, New York: International Universities Press, 1981) Para um comentário crítico das principais teses destes autores, ver o capítulo 7 de meu livro: O Problema da Identificação em Freud.

30 Cf. Ralph R. Greenson, “Dis-identifying from mother”.

31 J. Laplanche, Le genre… op. cit., p. 85.

32 K. Horney, La psychologie de la femme.

33 Cf. T. Laqueur, Inventando o sexo, corpo e gênero dos gregos a Freud.

34 Além de Freud, K. Abraham, E. Jones, K. Horney e M. Klein participaram dessa controvérsia. Uma excelente exposição dos principais aspectos teóricos e clínicos abordados nos diversos artigos publicados por esses autores pode ser encontrada no seguinte artigo: Catherine Laurin, “Phallus et sexualité féminine”.

35 Apropriamo-nos aqui de alguns termos e argumentos de J. André presentes em seu opúsculo sobre sexualidade feminina: La sexualité féminine, p. 48-49.



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Abstract
This paper studies the introduction of the concept of passive identification in the Theory of Generalized Seduction, its relation to Robert Stoller’s gender assignment theory and the Laplanche’s hypothesis about the origin of castration complex.


Keywords
passive identification; gender; Theory of Generalized Seduction.

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 TEXTO

Identificação passiva e a Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche [1]

Passive identification and Jean Laplanche’s Theory of Generalized Seduction
Paulo de Carvalho Ribeiro

Em 1987, Jean Laplanche publicou o livro Novos fundamentos para psicanálise, no qual sua Teoria da Sedução Generalizada foi apresentada. A retomada da teoria freudiana do trauma, sua relação com a sedução, com o surgimento da pulsão sexual, com a constituição da tópica psíquica e com o efeito de a posteriori que caracteriza as inscrições no inconsciente são os pontos principais que justificam a ideia de uma refundação. Laplanche adverte que não se trata da proposição de uma nova psicanálise e sim de um trabalho de renovação dos fundamentos já existentes; um retorno à fonte que permite avaliar as bases do edifício teórico da psicanálise, possibilitando assim repensá-lo sob a perspectiva de fundações renovadas e fortalecidas.

Se admitimos que a obra de Freud se apoia na descoberta do inconsciente e de sua origem sexual, podemos dizer que a Teoria da Sedução Generalizada procura extrair todas as consequências dessa descoberta, organizando-as de forma coerente. Christophe Dejours, numa apreciação de conjunto da teoria de Laplanche, destaca três elementos decisivos para essa organização: a) uma concepção do sexual cujo eixo central é a sexualidade infantil; b) uma concepção do infantil, ou seja, a situação antropológica fundamental caracterizada pela assimetria entre o adulto e a criança, e a inevitabilidade da sedução que esta última sofre por parte do primeiro; c) uma concepção do recalcamento originário baseada numa teoria tradutiva segundo a qual o inconsciente se forma a partir de traduções parciais de mensagens enigmáticas propostas à criança pelo adulto, mensagens cujos restos não traduzidos irão constituir verdadeiros objetos-fonte da pulsão [2].

A discussão mais ampla sobre a natureza dessas mensagens e seu destino no psiquismo infantil servirá de ponto de partida para a explicitação de três pontos de desacordo com Jean Laplanche. O primeiro deles diz respeito ao papel da identificação na situação antropológica fundamental, o segundo focaliza uma apreciação da noção stolleriana de imprinting e o terceiro refere-se a uma formulação sobre o complexo de castração.

Num artigo sobre o gênero e o sexual [3], Jean Laplanche introduz um elemento novo em sua teoria da sedução generalizada. Ao lado das mensagens enigmáticas relacionadas com os cuidados dispensados pelo adulto à criança, mensagens que se inscrevem num registro designado como “código do attachement”, uma outra modalidade de mensagens se apresentaria à criança a partir de um código social, configurando-se, assim, como mensagens do socius e tendo na designação do gênero seu principal veículo de transmissão.

Para exemplificar esta nova modalidade de mensagem, Laplanche recorre às fantasias inconscientes parentais e à possibilidade de que elas funcionem como “ruídos” (bruits) que interferem com a designação do gênero. Um pai que atribui conscientemente o gênero masculino a seu filho, pode ter desejado uma filha e abrigar em seu inconsciente fantasias de penetrá-la, adverte Laplanche.

Muito mais interessante do que a constatação desse tipo de “ruído”, uma outra ideia inteiramente vinculada à importância do código social é apresentada por ele. Trata-se de uma forma nova de pensar a identificação, na qual uma “total mudança de vetor” permite que ela seja vista como identificação por em lugar de identificação a.

Admitir a existência de uma identificação por oferece a possibilidade de superação do que Laplanche afirma ser o caráter ipsocentrista ou ptolomeico [4] que se manifesta quando esse conceito é pensado a partir da forma reflexiva do verbo identificar, como na frase “eu me identifico”, por exemplo [5]. Além de assegurar um lugar copernicano, ou seja, que não tem o sujeito como centro, e se conciliar com o papel central que o outro desempenha na teoria da sedução generalizada, a identificação por representa também, a meu ver, uma possibilidade de solucionar um dos maiores problemas dessa teoria, a saber, a concepção tradutiva do recalcamento, apoiada na pressuposição da capacidade tradutiva do bebê. A postulação da efetividade desse recurso tradutivo antes do surgimento da tópica psíquica contrasta com a afirmação da passividade do bebê diante do adulto e sugere a existência de uma função egoica anterior à constituição do eu. Algumas críticas à existência desse bebê tradutor já foram feitas por mais de um autor e algumas delas levadas ao conhecimento de Laplanche. Porém não foram suficientes para que ele reformulasse essa parte de sua teoria. Motivado, talvez, pelas críticas que lhe foram feitas por Silvia Bleichmar [6] e por mim [7] durante um colóquio de 1998, Laplanche dedicou parte de um ensaio publicado no ano seguinte a acrescentar alguns novos elementos à sua concepção da díade adulto/lactente, que havia sido sucintamente apresentada nos Novos fundamentos [8]. Uma tênue silhueta do que poderia ser o bebê tradutor é redesenhada por Laplanche quando ele afirma que as capacidades precoces de interação do bebê foram por muito tempo subestimadas e que entre os mamíferos, principalmente, a subsistência vital encontra-se integrada a uma intercomunicação, sobretudo entre mãe e criança, à qual, a partir de Bowlby, damos o nome de attachement. Laplanche prossegue dizendo que

A existência de relações primárias, ou pelo menos muito precoces, entre o bebê e seu meio não tem como não reforçar a ideia de Balint de amor primário de objeto, sobre a qual é preciso, no entanto, assinalar com vigor que ela não se situa no plano do sexual. Mas, do meu próprio ponto de vista, é também para situar melhor a mensagem enigmática, ponto de partida da pulsão sexual, que é necessário supor uma comunicação de base, não sexual, entre a mãe e o bebê, uma espécie de onda portadora que seria modulada, ou melhor, parasitada pela intervenção sexual do adulto. Sobre a base de uma comunicação recíproca, alguma coisa passa de forma vetorizada, unilateral. [9]

É inegável que essa passagem visa esclarecer alguns aspectos das mensagens enigmáticas e sua implantação pelo adulto. Porém, a capacidade precoce de interação e a existência de intercomunicação informam indiretamente sobre a natureza da suposta capacidade tradutiva do bebê humano: ela seria, provavelmente, tão inata quanto essa aptidão comunicativa e poderia prescindir de uma instância egoica para funcionar.

Sem pretender discutir a validade dessas teses sobre a competência comunicativa do bebê, olho com reservas essas proposições de Laplanche e proponho-me a superá-las, buscando alternativas mais condizentes com outros fundamentos de sua própria teoria da sedução generalizada.

A identificação por, que passarei a denominar identificação passiva, é uma hipótese que me ocorreu desde meus primeiros contatos com o pensamento de Jean Laplanche. Em 1989, quando frequentava seu seminário de doutorado em Paris 7, levei a seu conhecimento um importante artigo de Heinz Lichtenstein [10] no qual o termo “sedução” era utilizado de uma forma que se aproximava bastante da sedução generalizada. Quatro anos mais tarde, publiquei, com o incentivo de Laplanche, um artigo intitulado “Identité et séduction chez Heinz Lichtenstein” [11] no qual destaquei a ideia desse autor de que uma sedução tomada no sentido amplo (“seduction in a broader sense”, são os termos de Lichtenstein) determinava o surgimento de um “tema de identidade” (identity theme) no qual se abrigavam aspectos derivados da sexualidade inconsciente da mãe. O caráter inconsciente desse tema de identidade seria capaz de assegurar, segundo o ponto de vista do autor americano, uma busca imperativa de confirmação identitária, perfeitamente compatível com as forças que excedem o princípio do prazer e determinam a compulsão à repetição. Em outros termos, Lichtenstein apontava para a dimensão pulsional do tema de identidade e sugeria uma equivalência entre seu surgimento e a origem da própria pulsão.

Dentro deste mesmo esforço de demonstrar a necessidade de aproximar a sedução originária dos mecanismos psíquicos relacionados com o surgimento do eu e do inconsciente, defendi, em 1992, minha tese de doutorado, na qual sustentava a existência de uma identificação feminina primária indissociável da sedução originária e caracterizada pela natureza passiva de sua constituição. Naquela época minha concepção da identificação passiva fazia-se nos seguintes termos: “A identificação primária seria então o resultado da proposição de significantes pelo outro (adulto) a um ‘sujeito’ que só existe aos olhos desse outro e cujo único acesso possível à existência consiste em ser identificado aos significantes que lhe vêm do outro” [12]. Laplanche, meu orientador, manifestou- se contrariamente a esse ponto de vista, insistindo no que, naquela época, lhe parecia uma incompatibilidade entre, de um lado, a origem alteritária e o efeito fragmentador das mensagens enigmáticas e, de outro, o caráter autocentrado e totalizante das identificações.

A definição do conceito de identificação feminina primária e sua vinculação à sedução originária têm se mantido no centro de meus interesses teóricos desde então. Fui, assim, levado a buscar os fundamentos metapsicológicos e clínicos que pudessem sustentar a compatibilidade dessa concepção de identificação primária com a exigência de descentramento e a preeminência do outro presentes na teoria da sedução generalizada. Dois autores me foram extremamente valiosos nessa empreitada, a saber: Robert Stoller e Jacques André. Sobre o primeiro voltarei a falar logo em seguida, quando retomar os comentários sobre o artigo de Laplanche. Antes disso, ocupemo- nos rapidamente de algumas ideias e alguns dados sobre a trajetória do segundo autor, para que possamos justificar o aspecto surpreendente de determinadas vicissitudes do pensamento psicanalítico sobre a feminilidade.

Sedução e feminilidade: a tese de J. André e o problema da leitura laplancheana de R. Stoller

Jacques André dedicou uma boa parte de sua produção acadêmica ao tema da sexualidade feminina [13], abordando-o a partir dos conceitos e ideias da teoria laplancheana. Mais precisamente, seu interesse foi dirigido preferencialmente à relação entre sedução originária e feminilidade. Esta importante associação entre sedução e feminilidade se estende muito além da metapsicologia e da clínica psicanalítica, atingindo o domínio das artes, da sociologia e da antropologia. Limitar-meei a ilustrar esse aspecto central do pensamento de Jacques André, focalizando uma passagem em que se evidencia um dos pontos que mais contribuíram para meu trabalho de aproximação da sedução originária com a identificação feminina primária. Trata-se da relação entre sedução, alteridade e feminilidade.

Quando Freud escrevia, em 1897, que “o elemento recalcado essencial é sempre o feminino”, ou quando, muito mais tarde, ele fazia do “repúdio da feminilidade” um dos entraves maiores do processo analítico, ele se aproximava muito de uma articulação entre o feminino e a alteridade, entre o feminino e o outro dentro de nós. Nossa própria hipótese tende, assim, a nos conduzir das origens da sexualidade feminina rumo às origens femininas da psicossexualidade.
Ao acentuar a oposição entre os termos, pode-se afirmar que o outro sexo é, para todos, homem ou mulher, sempre o sexo feminino. [14]

Tendo encontrado em J. André os elementos teóricos que confirmavam minha visão da sedução originária como fenômeno intimamente relacionado com a feminilidade, restava-me ligar esses dois elementos com a identificação, tarefa que foi facilitada pelo que já havia encontrado em Lichtenstein, desde a época da tese de doutorado, e pelo que pude encontrar em R. Stoller mais recentemente.

Naturalmente não caberia aqui uma exposição, mesmo que sucinta, da teoria stolleriana da identidade de gênero e de sua concepção da identificação feminina primária. Farei apenas referência a duas passagens onde se encontram proposições fundamentais para a formulação dos argumentos que apresentarei ao abordar o ponto de vista de Laplanche sobre as ideias de Stoller, tal como ele o expõe no artigo já mencionado.

Na primeira passagem, Stoller [15] afirma que as palavras “incorporação”, “introjeção” e “identificação” referem-se a uma atividade motivada, dirigida em direção a um objeto que não é reconhecido como parte de si mesmo. Segundo o autor, isso pressupõe a existência de uma mente suficientemente desenvolvida para apreender o objeto e desejar alojá-lo no interior de si. Stoller ressalta, então, a necessidade de se reservar um lugar para outros mecanismos não motivados pelo indivíduo, graças aos quais a realidade externa possa também encontrar seu lugar no interior.

Numa outra passagem [16], ele afirma que por muito tempo presumiu que a identificação era o processo essencial pelo qual alguns meninos tornavam-se altamente afeminados. Considerando, no entanto, que a identificação requer um certo grau de desenvolvimento da memória e da fantasia cuja existência é improvável nos primeiros meses de vida, seria mais adequado pensar num processo passivo de imprinting. Stoller prossegue argumentando que a identificação é um processo internamente motivado, ligado ao princípio do prazer, o que torna mais pertinente supor que, nos estágios precoces, esses meninos não buscam a feminilidade, mas recebem-na passivamente por via da “excessiva imposição dos corpos demasiadamente ternos de suas mães”, o que não seria uma função do princípio do prazer, uma questão de escolha, mas a recepção de uma força externa extremamente gratificante, contra a qual a criança não teria motivo de se defender. Uma vez constituída, de forma passiva, essa matriz feminina, a identificação passaria então a desempenhar um papel cada vez maior. Stoller vê esses meninos, por volta do fim do primeiro ano, como “aspiradores de pó”, sugando tudo de feminino que lhes aparece no caminho. Ele se pergunta, então, se a chamada identificação primária não seria o resultado de algo que é impresso na “complacente protopsique e no inacabado snc da criança”.

Por maior que seja a distância entre os pensamentos de Laplanche e Stoller, estas passagens testemunham uma visão copernicana da identificação primária, que aqui se confunde com a aquisição da identidade de gênero. Em seu artigo intitulado “Le genre, le sexe, le sexual”, Laplanche dedica um extenso apêndice (hors texte) ao pensamento de Stoller, além de fazer referências esparsas sobre sua teoria do gênero no próprio artigo. Numa dessas referências, a hipótese stolleriana do imprinting é tomada como expressão de uma concepção ipsocentrista, ou seja, centrada apenas no indivíduo:

[…] o gênero não é nem uma impregnação cerebral hipotética, que seria impregnação hormonal, […] nem uma impressão ou marca à la Stoller, nem um hábito. Todas noções que são, enfim, noções que chamo ipsocentristas, quer dizer, centradas no indivíduo. [17]

É curioso notar que apesar desta avaliação – a meu ver completamente equivocada – do significado da noção de imprinting em Stoller, Laplanche reconhece como um dos méritos desse autor justamente o fato de ter dado a devida importância à designação do gênero pelos outros e às “mensagens infinitas, refletindo a atitude dos pais, endereçadas ao corpo da criança e à sua psique” (palavras de Stoller citadas por Laplanche). “Vê-se aí a porta entreaberta para a teoria da sedução generalizada” [18], ele conclui. Cabe perguntar: em que as “mensagens infinitas endereçadas ao corpo da criança e à sua psique” diferem do imprinting responsável pela aquisição da identidade de gênero? Em outras palavras: por que o imprinting seria ipsocentrista, enquanto as mensagens endereçadas ao corpo não o seriam?

As curiosidades não param por aí. Em sua crítica da teoria de Stoller, Laplanche detém-se num aspecto que me interessa particularmente: a transmissão da feminilidade da mãe para a criança. A teoria da separação-individuação de Margaret Mahler e, em primeiro lugar, o conceito de simbiose mãe-criança são os alvos principais da crítica laplancheana. Por ter se apoiado nesses fundamentos teóricos inteiramente superados [19], “a explicação stolleriana da identidade de gênero desaba de todos os lados” [20], conclui Laplanche. Porém, como ele mesmo se incumbe de ressaltar, “a forma como Stoller adere ao mahlerismo é, no entanto, bem particular” [21], na medida em que postula uma “simbiose particular”, relacionada ao gênero e diferente da simbiose em geral. Tal fato assegura a existência de pessoas que avançam com grande desenvoltura no processo de separação-individuação, apesar de nunca conseguirem livrar-se da feminilidade de suas mães. Mesmo admitindo ignorar o mecanismo exato que produz esta transmissão com tamanho poder de fixação, Stoller destaca a força do olhar na relação mãe/criança, “os olhos nos olhos, como nos apaixonados”. Laplanche considera essa hipótese como sinal de “uma verdadeira ausência de seriedade”, um “subterfúgio” e um “truque de mágica teórico” (tour de passe-passe théorique) [22].

Este rigor crítico de Laplanche talvez não merecesse muita atenção e pudesse ser parcialmente contrabalançado pelo reconhecimento de alguns méritos de Stoller [23], não fosse o grande interesse demonstrado por Laplanche pela questão do olhar e a importância que ele pode adquirir na sedução originária. Num texto apresentado pela primeira vez na Universidade de Atenas, em 1999 [24], a importância do olhar na criação artística de Giacometti é comparada à percepção dos olhos, por Leonardo Da Vinci, como “janela da alma”. Ao argumentar que a criação artística é vetorizada pela pesquisa/procura (recherche) ou, mais precisamente, pela busca/investigação (quête), Laplanche se posiciona sobre a natureza da inspiração, afirmando que a direção desse vetor é sempre a mesma da sedução, ou seja, originando- se do outro em direção ao artista, por mais que o trabalho de busca que participa da criação mostre o empenho do artista e evidencie a direção centrífuga dessa busca. Em Leonardo, os olhos como janelas da alma podem ser tomados como uma abertura, ou até mesmo uma exposição da alma ao trauma vindo do outro. Em Giacometti, continua Laplanche, é o olhar do outro que se constitui como enigma por excelência. A seguinte passagem extraída do livro de Yves Bonnefoy sobre o pintor e escultor suíço é citada por Laplanche como confirmação desse efeito traumático do olhar: “Assemelhar/reproduzir (faire ressemblant), para Giacometti, foi compreender e exprimir a tensão que faz que este ser de dentro, esta ‘alma’, arrisquemos a palavra, se apodere dos olhos, da boca, da fronte, para retirá-los do espaço” [25]. Não basta que Laplanche advirta seu leitor, dizendo: “Longe de mim a ideia de que o enigma do outro seja sempre, como quer Levinas, mediatizado, vetorizado pelo olhar” [26]. A importância generalizada do olhar como instrumento de trauma e enigma salta aos olhos quando Laplanche comenta uma foto de família em que uma troca de olhares entre Giacometti e sua mãe “ultrapassa qualquer descrição” e remete ao poder enigmático do sorriso em Leonardo, confirmando assim que o rosto humano, sobretudo o olhar, é um instrumento importante de implantação de enigmas.

Ora, em Atenas não teria sido tão difícil lembrar o que Tirésias pagou com os olhos. Que melhor meio de transmissão da feminilidade poderia haver que não fosse o olhar apaixonado que as mães dirigem a seus filhos?

Crítica da concepção laplancheana da castração

Uma das principais teses contidas no artigo de Laplanche sobre o gênero, o sexo e o sexual diz respeito ao efeito recalcante do sexo e do gênero sobre o sexual infantil. O gênero, como vimos no início deste texto, passou a ser considerado por Laplanche como o principal veículo de transmissão do enigma relacionado ao socius, sobretudo ao pequeno socius da família, de onde partem, inicialmente, as designações de gênero e os “ruídos” que as acompanham. O sexo, por sua vez, atuaria como um elemento de organização do gênero; como uma forma de tradução recalcante assentada na diferença anatômica. O gênero, assim organizado pelo sexo, agiria contra o sexual infantil, produzindo, desta forma, o recalcamento por excelência, ou seja, opondo-se à dispersão pulsional infantil polimórfica, da qual Laplanche ressalta os seguintes aspectos [27]: ela funciona sob um regime econômico particular em que se busca o aumento e não a diminuição da tensão; ela tem o objeto fantasmático como fonte e não como fim, invertendo assim a relação de objeto; ela tende, finalmente, a invadir todos os espaços psíquicos e evolui por tentativas de organização, oferecidas ou impostas pelo outro em sua maior parte, mas sempre precárias ou insuficientes.

O complexo de castração, por dizer respeito ao sexo e à diferença anatômica, comparece nesse momento da argumentação de Laplanche ocupando a mesma posição de agente de recalcamento que já lhe havia sido atribuída desde o “Court traité de l’inconscient” [28], de 1993. No artigo do qual me ocupo prioritariamente aqui, escrito dez anos depois, essa função recalcante do complexo de castração ganha contornos mais nítidos e é associada à proposição por Roiphe e Galenson [29], dois pesquisadores americanos, de uma “fase genital precoce”, pré-edipiana, em que o complexo de castração deixa de estar vinculado ao complexo de Édipo e passa a ser interpretado exclusivamente como uma reação à descoberta da diferença dos sexos. Laplanche fala então de uma reação pelo complexo de castração, a ser incluída como operação de organização do gênero e de recalcamento do sexual infantil.

Um complexo de castração não edipiano requer, naturalmente, uma teoria que responda por sua origem. De fato, se não se trata de uma origem edípica-retaliativa, ligada à ameaça de castração, como queria Freud; nem de uma origem edípica-linguística-estrutural, como propunha Lacan; nem muito menos de uma origem edípica-identificatória, comportando a ideia de desejo de castração do menino e de sua desidentificação com a mãe, como eu venho propondo, na esteira de Stoller e Greenson [30]; se não se trata de nada disso, uma outra origem passa a ser requerida e, ao apresentá-la, Laplanche produz, a meu ver, mais uma dessas surpreendentes vicissitudes que marcam as teorias psicanalíticas da feminilidade desde Freud. No presente caso, Laplanche não se propõe a formular nenhuma teoria da feminilidade, mas acaba por produzir uma teoria do complexo de castração que não tem como não afetar qualquer teoria psicanalítica da feminilidade. Vejamos então onde se situa esse aspecto surpreendente.

Retomando a afirmação de Freud segundo a qual a anatomia é o destino, para relacioná-la com o complexo de castração, Laplanche assinala o equívoco normalmente suscitado por essa afirmação e para o qual o próprio Freud contribuiu ao considerar, por exemplo, o complexo de castração como um limite biológico do tratamento analítico. A anatomia de que se trata não deveria, portanto, ser confundida com biologia, evitando assim que o destino ao qual ele se refere fosse associado com biologismo, no sentido de um suposto determinismo capaz de induzir, entre outros erros, ao de se buscar uma gênese hormonal da sexualidade. Para Laplanche, a anatomia que realmente interessa à psicanálise neste caso, aquela que se constitui como verdadeiro destino, além de não ter esta conotação biologicista, não é uma anatomia que se ocupa da descrição rigorosa das estruturas ou dos sistemas (reprodutor, p. ex.), mas uma anatomia popular, puramente perceptiva e até mesmo ilusória.

Mas de onde surge essa anatomia popular cuja prevalência equivale a nada menos que o destino? Surge da adoção da posição ereta (la station debout) pelos seres humanos, responde Laplanche. Esse fenômeno evolutivo teria sido responsável pela anulação perceptiva dos órgãos genitais femininos, posto que eles estariam subtraídos não apenas à visão mas principalmente ao olfato. Diferentemente dos animais que percebem, olfativa e visualmente, dois conjuntos genitais distintos, os seres humanos, salvo procedimentos de inspeção, percebem apenas um, transformando assim a diferença dos sexos em diferença de sexo.

Esta percepção de apenas um sexo que pode estar presente ou ausente não tem, para Laplanche, nenhuma relação nem com a biologia, nem com a fisiologia e nem mesmo com a diferença macho/fêmea. A diferença de sexo ganha assim o status de significante. Fato a respeito do qual Laplanche expressa sua admiração com as seguintes palavras:

Não é um destino extraordinário esta contingência? A posição ereta torna os órgãos femininos perceptivelmente inacessíveis. Ora, esta contingência foi elevada por muitas civilizações, e sem dúvida a nossa, ao posto de significante maior, universal, da presença/ausência. [31]

Vista desta forma, a diferença anatômica perceptiva equivale, para Laplanche, a um “esqueleto de código” capaz de gerar esta lógica extremamente rígida que é a lógica do terceiro excluído, ou seja, a lógica fálica da presença/ausência, do zero e do um, que ganhou “um impulso impressionante no universo moderno das ciências informáticas” e se instalou como complexo de castração no indivíduo, nele atuando como verdadeira ideologia.

Não há dúvida de que se trataria de algo extraordinário se, de fato, pudéssemos fazer derivar a aquisição de um recurso simbólico tão decisivo para a civilização da simples adoção da posição ereta pelos nossos ancestrais pré-históricos. Alguns fatos me conduzem, porém, a me opor ao ponto de vista de Laplanche e a localizar alhures algo realmente extraordinário, a saber, a tendência generalizada das teorias psicanalíticas da diferença anatômica a recalcarem um determinado fato aparentemente insuportável da sexualidade infantil. Se o complexo de castração é uma ideologia do recalcamento, como quer Laplanche, ele assim se apresenta muito mais quando é teorizado pelos psicanalistas do que quando é utilizado pelas crianças na construção de suas teorias sexuais. As crianças conhecem a força de atração das experiências passivas e a associam com a intrusão pelo outro. Para elas, o complexo de castração traz à baila e ajuda a criar tanto as moções pulsionais passivas quanto as reações defensivas que lhes correspondem. Diante da diferença anatômica, as crianças não opõem simplesmente presença à ausência ou fálico a castrado, mas principalmente penetrante a penetrado, dominador a dominado, agressor a agredido etc. Basta lembrar que há entre as crianças um gosto especial pelas brincadeiras que envolvem subjugação, imobilização, susto e medo para que se suspeite que a transformação da diferença anatômica em oposição sexual abrange este jogo de passividade e atividade. Tentemos aprofundar este ponto de vista mostrando o que me parece ser obra do recalcamento nessa concepção laplancheana do complexo de castração assentada na posição ereta.

Meu primeiro argumento contra a proposição de Laplanche sobre a inacessibilidade dos órgãos genitais femininos apoia-se no fato de que a inspeção desses órgãos pela criança é a regra e não a exceção. A observação clínica da qual resultou a formulação do complexo de castração por Freud, a fobia de Hans, põe em evidência a curiosidade do menino sobre tudo que dizia respeito aos genitais, à gravidez, ao parto e às funções excretórias em geral. No caso do “homem dos lobos”, de forma semelhante, Freud nos apresenta uma criança acostumada à observação do coito entre animais, curioso a respeito das funções excretórias e engajado em jogos sexuais com sua irmã. Seriam essas duas crianças freudianas exceções, ou estaríamos mais próximos dos fatos ao conceber uma inspeção generalizada resultante da curiosidade infantil? Como não admitir que a simples existência de funções excretórias inteiramente relacionadas com os genitais obriga as crianças a pesquisar seus próprios genitais e a se interessar pelos dos outros? A inspeção não precisa ter a profundidade de um exame ginecológico ou proctológico para que uma criança descubra a natureza orificial dos órgãos genitais femininos e do ânus. Cabe aqui um reconhecimento do pioneirismo de Karen Horney, que foi a primeira a contestar o ponto de vista de Freud sobre a masculinidade primária das meninas e a valorizar a “paixão das crianças pelas funções excretórias” como fato decisivo na formulação das teorias sexuais infantis” [32].

Reflitamos agora sobre essas mulheres eretas das quais nos fala Laplanche. Elas só podem ser pré-históricas, já que adotaram a posição ereta e continuaram andando nuas. Será que seus órgãos genitais eram assim tão invisíveis? Será que elas não se assentavam de pernas abertas, não pariam suas crias diante dos outros, não subiam em árvores, não se abaixavam para pegar algo no chão sem flexionar totalmente os joelhos? Será que elas tinham hábitos de higiene suficientemente eficazes para evitar que odores genitais alcançassem os narizes alheios, alçados apenas a menos de um metro de distância de onde se encontravam antes da posição ereta? Convenhamos, não basta ficar de pé para tornar os genitais femininos inacessíveis. Seria preciso ter “bons modos”, ser pudica, asseada e recatada para torná-los inacessíveis à visão e ao olfato. Como então entender essa teoria de Laplanche, quando ela me parece tão descabida e improvável?

Antes de mais nada é preciso situá-la numa certa tradição teórica para que ela faça um pouco mais de sentido e me permita também interpretá- la, visto que a considero como efeito do recalcamento na teorização. Sobre essa tradição, limitar-me-ei a assinalar dois pontos decisivos. Primeiramente que ela é mais antiga que a psicanálise, como provam as teses do célebre anatomista Galeno, do século ii d.C., sobre a existência de um sexo único, o masculino, que se manifestava plenamente nos homens e encontrava-se retido internamente nas mulheres. Uma obscura noção de “calor vital”, supostamente muito mais intenso nos homens do que nas mulheres, servia de explicação para essa retenção [33]. Em segundo lugar é indispensável lembrar que apesar de já ter sido objeto de intensa controvérsia desde o início da terceira década do século passado [34], a tese freudiana sobre a existência erógena e perceptiva apenas do pênis e do clitóris até a puberdade ainda ressoa em algumas teorias psicanalíticas atuais, como podemos constatar nesse artigo de Laplanche. De fato, a ideia de que a posição ereta está relacionada ao recalcamento e à perda da acuidade olfativa está presente em Freud, como sabemos. Laplanche apenas a desenvolve, numa abordagem de inspiração linguística, ao relacioná- la com a lógica binária da presença/ausência. Mas a principal filiação freudiana dessa teoria encontra- se na tese do desconhecimento ou inacessibilidade dos genitais femininos. À semelhança de Freud, que considerava o descobrimento da própria vagina pela menina um acontecimento que só se produzia na adolescência, Laplanche considera que a posição ereta impede a percepção dos genitais femininos, dando assim origem a uma anatomia popular ilusória que os torna, em última instância, inexistentes. É bem verdade que o desconhecimento da vagina está associado, em Freud, principalmente ao despertar erógeno tardio desse órgão na puberdade, ao passo que, para Laplanche, é a impossibilidade de sua percepção pelo outro que está em questão. Essas diferenças não impedem, no entanto, que os dois pontos de vista convirjam num aspecto decisivo: a redução dos órgãos genitais femininos a uma negatividade contrastante com a positividade do pênis. Nesta mesma tradição devemos incluir também Lacan e sua tese da não inserção simbólica da vagina. Seja nos Propos directifs de 1954 ou no seminário Encore de 1973, uma parte da feminilidade e a própria vagina aparecem como elementos relacionados ao instinto (1954) ou como porções do real refratárias à simbolização, logo responsáveis por um gozo suplementar não fálico sobre o qual as mulheres nada podem dizer (1973). O enunciado “a mulher não existe” deriva desta lógica: excluída da mediação fálica, sua inserção no logos fracassa, tornando-a, consequentemente, incompatível com a categoria do universal [35].

O reconhecimento tardio da importância da identificação passiva na sedução originária, o equívoco na apreciação da noção de imprinting formulada por Stoller e essa surpreendente teoria da castração baseada na adoção da posição ereta nos remetem à ideia, cara a Laplanche, segundo a qual ao teorizarmos sobre o inconsciente não estamos imunes aos seus efeitos, ou seja, as teorias sobre a constituição psíquica e sobre o inconsciente não estão isentas dos efeitos do recalcamento. É justamente disso que se trata quando Jacques André expõe os efeitos do recalcamento tanto nas teorias psicanalíticas da feminilidade como no destino das moções pulsionais femininas na constituição psíquica de cada indivíduo. Para esse autor, a lógica fálica é a lógica do recalcamento do orificial e do penetrado pelo penetrante e fálico. No artigo de Laplanche sobre o gênero e o sexual, podemos dizer que a impossibilidade de reconhecer o caráter eminentemente penetrável dos genitais femininos guarda uma estreita relação com a impossibilidade de reconhecer o caráter anti-ipsocentrista da noção stolleriana de imprinting e com a admissão tardia de uma forma de identificação que tem o outro como origem. Estes dois últimos pontos têm em comum o fato de evocarem a ideia e a imagem de uma situação antropológica fundamental na qual a sedução generalizada se confunde com uma verdadeira penetração generalizada da criança pelo outro.

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