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Autor(es)
José Martins Canelas Neto
é psiquiatra formado pela Universidade de Paris, membro efetivo e Analista Didata da SBPSP e Editor da Revista Ide - Psicanálise e Cultura.

Octavio Souza
é psicanalista, professor do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ e do Departamento de Psicologia da PUC/Rio.

Renato Mezan
é psicanalista, membro Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor titular da PUC/SP, e autor de vários livros, entre os quais O tronco e os ramos: estudos de história da Psicanálise (Companhia das Letras).


Notas

[1]    Julius Caesar, ato II, cena 3.

[2]    André Green, São Paulo, Via Lettera, 2000. Coleção Psicanalistas de Hoje.

[3]    Cf., na Internet, o site www.etimo.it.


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 DEBATE

Vacância

Vacancy
José Martins Canelas Neto
Octavio Souza
Renato Mezan

22 de janeiro de 2012, um domingo. Como a buscar pares que pudessem compartilhar o sentimento de orfandade, muitos e-mails passaram a circular divulgando a morte de André Green. Ao longo das semanas seguiram-se biografias escritas por colegas de países diversos, como se ao sistematizar seu percurso e obra ou dimensionar suas contribuições, fosse possível circunscrever seu legado e diminuir a sensação de vazio pela sua ausência. Psicanalista egípcio radicado na França, Green conseguira ocupar espaços importantes no debate sobre a psicanálise contemporânea não só por transpor as fronteiras das instituições psicanalíticas ao fazer dialogar de modo fértil autores como Lacan, Melanie Klein, Bion e Winnicott, como por manter uma interlocução com a filosofia, a linguística e a antropologia. Para além do rigor e do cuidado com que agregou pensamentos de autores diversos ao seu trabalho clínico e teórico, é possível que sua morte ameaçasse deixar a comunidade psicanalítica órfã de uma posição política integradora entre espaços e grupos psicanalíticos. Ao articular a teoria pulsional e estrutural com as teorias das relações objetais, por exemplo, Green inaugurara uma abertura no modo de pesquisar, pensar e refletir sobre a clínica e a teoria psicanalítica que permitia ir além das problemáticas políticas e afiliações excessivamente devotas. Talvez um de seus maiores legados, ao se debruçar sobre a clínica dos limites ou do vazio, Green ampliou de forma significativa o papel e a função do objeto destacando o trabalho do negativo, cuja importância poderia ser constatada nesta clínica justamente pela falência da ação necessária (estruturante) do negativo ao apresentar suas manifestações extremas (patológicas), um efeito combinado do desinvestimento, da destrutividade, da fusão com o objeto e da identificação com o objeto destruído pela separação. Tal função psíquica de desinvestimento e desligamento, bastante primitiva, marcada pela pulsão de morte e pelas características refratárias ou "depressivas" dos objetos primários, seria o contraponto da função objetalizante, de ligação e investimento. E para Green pulsão e objeto estariam mutuamente implicados, o objeto a conter as pulsões e também a despertá-las e revelá-las, e as pulsões a investir e "criar" objetos. Assim, a partir de impasses surgidos na relação analítica, os ataques ao enquadre, as defesas rígidas e resistentes, as respostas contratransferenciais inusitadas e intensas que exigiriam do analista uma forma de atuação diferenciada, quiçá mais implicada, construiu-se um extenso campo de discussão teórico-clínica que ampliou significativamente a compreensão da constituição subjetiva e seus avatares.

A morte de André Green parecia anunciar, portanto, um lugar vago na história da psicanálise, aquele em que se praticaria uma psicanálise criativa e possível sem simplificações ou reduções, fora das fronteiras tantas vezes restritas e dogmáticas das instituições psicanalíticas. Uma psicanálise que postularia um sujeito em um processo de auto-organização permanente, um sistema aberto, uma realidade psíquica histórico-cultural. A seção Debates da Revista Percurso convidou alguns colegas para refletir sobre o significado desta "ausência" no campo da psicanálise.

 

JOSÉ MARTINS CANELAS NETO.  O legado de um psicanalista engajado

 

Refletir sobre o significado da ausência de André Green para a Psicanálise é, para mim, uma tarefa muito íntima, pessoal, na qual considero impossível manter uma distância suficientemente boa para que o turbilhão que os afetos causam ao pensamento não o desvie das "ideias claras e distintas". Também me parece que o peso dessa ausência demandará tempo para poder transformar-se em momentos criativos para a Psicanálise. O texto que serve de argumento a este debate - "Vacância" - sintetiza de maneira admirável as principais ideias e concepções que Green deixou para nós, analistas do início do século XXI. Por outro lado, a obra de Green está aí para ser estudada e discutida por todos os que se interessarem. Para mim, trata-se da obra que, após a de Bion, Winnicott, Klein e Lacan, possui a maior envergadura e importância na história da Psicanálise, tanto em relação à fecundidade dos conceitos quanto ao enorme esforço para articular em uma totalidade concepções que, muitas vezes, se opõem frontalmente.

 

Por tudo isso, pensei em responder à questão que nos foi apresentada por meio de um depoimento pessoal de meu contato e experiência com Green, no período de treze anos no qual me formei, em Paris. Talvez, assim, eu possa dividir com vocês, leitores, minhas lembranças e afetos despertados por essa difícil perda. Espero, no entanto, que minha contribuição seja útil aos leitores e colegas para colorir com a "ilusão da vida" esse psicanalista e pensador tão admirável que foi André Green.

 

Meu último contato com Green foi durante o Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), em 2009, em Paris. Nesse evento, cujo tema foi "A linguagem em Psicanálise", ele coordenou uma mesa que me surpreendeu. Convidou dois pesquisadores de Antropologia, que apresentaram pesquisas e reflexões que mostraram de maneira muito surpreendente, para mim, uma relação profunda e existente desde o início da vida pós-uterina entre a aquisição da linguagem e os elementos da cultura transmitidos pela mãe já dentro da linguagem. Lembro que achei curioso como Green, já com 83 anos, ainda discutia e trazia o debate da linguagem em Psicanálise e da presença da cultura no indivíduo por meio da linguagem materna. A cultura está presente na formação da psique desde o início. Entretanto, a relação afetiva com a mãe, modulada "culturalmente" por meio de sua fala com o bebê, é o tema do início da obra de Green, sobretudo de seu primeiro livro, O discurso vivo (1973), escrito para se distinguir das ideias de Lacan, com quem sempre dialogou, em geral, criticando-o. Eu diria que o retorno a Freud de Lacan fez com que Green penetrasse com muita profundidade na obra de Freud. O fundador da Psicanálise é o autor fundamental para Green, com quem dialogou até o fim de sua vida.

 

Em geral, conhecemos mais a obra propriamente psicanalítica de Green, mas cabe lembrar que ele escreveu bastante sobre temas da Cultura, pensando sobre problemas e grandes questões contemporâneas, como no artigo "Por que o mal?" (1990), em que também tratou da obra de diversos artistas (Leonardo, Henry James, Shakespeare, Proust, Joseph Conrad). Green também foi um grande pensador. Uma vez, ele me disse: "Canelas, você sabe o que é a Psicanálise? Uma grande filosofia viva!".

 

Cheguei a Paris em 1983. Lacan morrera em 1981. Minha convivência maior foi, então, com essa geração pós-Lacan, com Piera Aulagnier, René Diatkine, e muitos outros. Convivi e trabalhei muito com analistas ligados à Sociedade Psicanalítica de Paris, na qual desenvolvi minha formação, mas, também, com colegas do Quarto Grupo e dos grupos lacanianos. Havia, ainda, um intenso turbilhão causado pelas ideias inovadoras e pelo temperamento provocador e instigante de Lacan, que, retornando a fundo a Freud, revelara outra leitura da obra freudiana, trazendo-a para mais perto daquela que era, então, a modernidade intelectual francesa. Percebia que os debates entre os analistas das diferentes correntes eram muito passionais, intensos, vividos na carne, levando a impasses muitas vezes empobrecedores para a reflexão psicanalítica. Era como se pudéssemos falar de uma "neurose infantil das transferências dos psicanalistas". Como eu vinha daquilo que era o "Terceiro Mundo", com sua língua "menor", ouvia tudo aquilo com certo distanciamento.

 

Foi, então, que comecei a frequentar um seminário aberto que Green fazia naquela época, em uma noite da semana até bastante tarde, em uma sala cedida pela Universidade de Paris na unidade de Censier. Desde o primeiro dia, senti-me impactado pelo rigor de pensamento, de inovação e de abertura aos verdadeiros grandes autores da Psicanálise e, também, à Filosofia e à Literatura. Também me marcou o fato de que Green não desprezava, de maneira alguma, o ponto de vista da Biologia na obra de Freud, tendo uma reflexão crítica muito interessante sobre isso. Ele diz que Freud construiu uma "metabiologia". Por se tratar de um seminário "não oficial", sem vínculo com qualquer instituição, Green era muito livre e deixava sua reflexão prosseguir por caminhos variados. Além disso, o público, que também era variado (a entrada era totalmente livre), colocava questões diferentes das que costumava ouvir nos círculos ligados às diversas instituições psicanalíticas. Desde então, comecei a estudar e frequentar seminários diversos com ele.

 

Uma vez mais estabelecido em Paris, com casa e emprego, surgiu a dúvida quanto ao grupo no qual faria minha formação. Tinha bastante contato com o Quarto Grupo, de Piera Aulagnier, com a SPP, de Green, e com os lacanianos da Escola da Causa Freudiana. Hoje, penso que a influência de Green me levou a escolher seu grupo, a SPP. Tive, então, oportunidade de ter mais contato com ele e de acompanhar várias trocas entre Green e os psicanalistas do 13ème (Associação de Saúde Mental do 13o Distrito de Paris), onde eu trabalhava. Posso dizer com segurança que Green também construiu sua obra a partir dessas trocas riquíssimas que ocorriam nos encontros clínicos e teóricos com os grupos do 13ème, da Escola Psicossomática de Paris (criada por Pierre Marty, Michel Fain e Michel De M'Uzan), com o Quarto Grupo, de Aulagnier, e com os colegas da Associação Psicanalítica da França (APF). Isso é importante realçar, para não cairmos novamente nessa neurose infantil dos psicanalistas e ficarmos presos em uma idealização de Green. Ele foi um teórico que colheu nesse caldeirão de experiências e discussões psicanalíticas boa parte da matéria-prima para sua obra. Penso que devemos, assim, desidealizar Green. Sei, por contato pessoal com ele, que não queria se tornar um chefe de escola em Psicanálise, não queria que surgisse um "greenismo".

 

Outra fonte principal de sua obra vem de sua clínica, mais conhecida a partir das reflexões sobre os pacientes borderline. Ela se revela bastante no livro O pensamento clínico (2000), no qual descreve certas configurações psíquicas que nos levarão a pensar em nossos pacientes. Isso é o "pensamento clínico", que abre portas à associação com nossa própria clínica. São assim descritas, por exemplo: as relações entre narcisismo e masoquismo na análise, a analidade primária, a posição fóbica central, as relações diversas da histeria com as patologias-limite, etc. Por fim, em seu recente livro, ainda não publicado em português - Illusions et désillusions du travail psychanalytique (2010) -, Green se estende longamente sobre alguns casos clínicos específicos que considerou difíceis e enigmáticos. Nesse texto, podemos vê-lo melhor em sua clínica.

 

Um pouco antes de meu retorno ao Brasil, pude fazer uma supervisão individual com Green. Foi uma experiência muito impactante para mim. Ele era muito gentil, mas muito firme e rigoroso, sem ser rígido. Sempre me pedia para dizer o que aquele material tinha provocado em mim, no que eu havia pensado. Tinha a impressão de que ele buscava o que estava por trás daquela história transferencial que o paciente vivia comigo. Os movimentos da sessão eram bastante valorizados por ele, que dizia: "temos de perceber a respiração da sessão". Parecia se interessar menos pelas recordações e a história relatada pelo paciente do que pela história do processo que vivíamos, eu e meu paciente, naquele momento. Por isso, às vezes, perguntava ou se lembrava de detalhes relatados em supervisões anteriores que me surpreendiam.

 

A melhor definição de André Green é a de um "psicanalista engajado", como é o título de seu livro de entrevistas concedidas a Manuel Macias (Um psicanalista engajado), no qual revela muitas coisas de sua história pessoal, fato bem raro no meio psicanalítico parisiense. Um egípcio da colônia judaica de língua francesa do Cairo que encontrou em Paris a Psicanálise e a releitura de Lacan da obra de Freud, e que se engajou integralmente pela Psicanálise, sempre tentando mantê-la integrada e forte com muita paixão. Um homem assim só poderia fazer uma imensa falta a nós, psicanalistas, que continuamos aqui, nesse nosso tempo atual.

 

OCTÁVIO SOUZA. A reviravolta dos anos 20 e a abertura do diafragma da teoria

 

Em sua fala de conclusão ao Colóquio de Cérisi de setembro de 2004, organizado em torno de sua obra e intitulado Enjeux pour une psychanalyse contemporaine, André Green faz um apreciação autobiográfica de seu trajeto que vale ser citada em extensão, pela explicitação daquilo que melhor caracteriza sua relação com sua própria obra, assim como com as obras que constituem o campo psicanalítico.

 

Desde que me engajei na via da psicanálise, fui precocemente sensível ao fato de que a psicanálise do meu tempo - talvez porque fosse pós-freudiana - se apresentava de modo profundamente heterogêneo. Heterogêneo na França, principalmente, onde a presença de Lacan, cuja obra me influenciou a despeito de suas relações passionais com seus antigos colegas que sustentavam pontos de vista diferentes, contribuía para que a diversidade das abordagens gerasse uma certa confusão. Escolhi ficar na SPP, a despeito das pressões de Lacan para que eu o escolhesse de preferência a todos os outros. Foi necessário de início me reencontrar na selva francesa. Tentei escolher o melhor desses campos opostos. Mas não tardei a descobrir que Deus não era francês. Outras inspirações psicanalíticas chegavam a mim, da Inglaterra inicialmente, mas, logo depois, dos Estados Unidos e da América Latina. Mais uma razão para abrir o diafragma da teoria (grifo meu). Em vez de me tornar um discípulo a mais dos principais movimentos existentes, prossegui minha caminhada tentando levar em conta as ideias nascidas fora de nossas fronteiras que me chegavam aos ouvidos.

Foi assim que, tijolo por tijolo, consegui construir um edifício, utilizando, ao mesmo tempo, materiais oriundos do interior e do estrangeiro, ao mesmo tempo que edificava minha própria arquitetura, fundada sobre minha experiência, e abrangendo um campo vasto o suficiente para não me encontrar em setores muito confinados da prática analítica. Hoje me encontro diante desse corpus que vocês chamam de a obra de André Green.

O que foi feito foi feito. Hoje não é mais tempo de evocar somente o passado, precisamos imaginar ("songer") o futuro, essa é a razão desse título: "Enjeux de la psychanalyse contemporaine", o presente deixando adivinhar um futuro possível.

Se então, foram os meus trabalhos que foram escolhidos como ponto de partida para essa reflexão, é precisamente pelas duas razões que evoquei. A primeira é a situação trans-societária na psicanálise francesa. A segunda é a necessidade de se situar diante das grandes teorias psicanalíticas que se desenvolveram no estrangeiro. Mencionarei sobretudo as teorias de Winnicott e de Bion que contaram para mim. Não há, no entanto, nenhuma pré-condição para refletir sobre o que os meus trabalhos apresentaram e às vezes descobriram. Os dados estão jogados. Tiremos deles as lições.

 

Nessa passagem, Green revela o modo de relação que entretém com a diversidade teórico-clínica que forma o conjunto do campo psicanalítico. Embora lhe fosse perfeitamente possível, não encaminha a avaliação de sua própria obra enfatizando a originalidade de seus achados. Sua narrativa enfatiza muito mais sua necessidade de compreensão, de mapeamento e de posicionamento em relação ao campo. Entende sua trajetória como um esforço de "abertura do diafragma da teoria". Esforço que se origina de uma necessidade de localização, "foi necessário de início me reencontrar na selva francesa", que desemboca na construção, "tijolo por tijolo", de um corpus teórico que agrega, numa arquitetura própria, "materiais oriundos do interior e do estrangeiro" e que objetiva ser vasto o suficiente para que seu autor não se veja preso "em setores muito confinados da prática analítica".

 

Em seu texto de 1975, "O analista, a ausência e a simbolização", Green identifica três momentos históricos no movimento psicanalítico. O primeiro, o do modelo freudiano, marcado pela descoberta do inconsciente e da transferência em função da aplicabilidade do método psicanalítico; o segundo, o momento pós-freudiano, marcado pela ênfase nas relações de objeto e na contratransferência; e o terceiro, o da psicanálise contemporânea, que se detém no funcionamento mental do analisando e do analista, assim como nas questões relativas ao enquadramento analítico. Como Fernando Urribarri observa, a obra de Green se constitui na vetorização das questões da psicanálise contemporânea. O relato de Green mostra que essa vetorização se fez através de um modo particular de relação com os momentos que antecederam o momento da psicanálise contemporânea.

 

Comparar o modo de relação de Green e de Lacan com os momentos do modelo freudiano e pós-freudiano pode ser esclarecedor. Para Lacan, a diversidade das orientações teóricas do momento pós-freudiano representava, principalmente, um desvio da verdade freudiana. "Quem vai varrer esse enorme monte de esterco das cavalariças de Augias, a literatura psicanalítica?" - perguntava-se em 1958. Nessa perspectiva de faxina, recusa as temáticas propriamente pós-freudianas da contratransferência e das relações de objeto e retorna a Freud através da redução da cacofonia pós-freudiana à simplicidade da lógica mínima do significante. A perspectiva de Green diante da cacofonia pós-freudiana não foi, propriamente falando, a de um retorno a Freud, mas sim a de "escolher o melhor desses campos opostos" e prosseguir, a partir de Freud, integrando a metapsicologia freudiana ao pensamento pós-freudiano. Em vez da redução da metapsicologia à lógica mínima do significante, propõe uma teoria geral da representação, mais próxima do vocabulário da metapsicologia freudiana, que reconhece no psiquismo a função básica de representar e na qual distingue várias instâncias da representação, desde o nível protorrepresentacional da moção pulsional e do representante psíquico da pulsão, até o nível representacional do afeto e das representações de coisa e de palavra. Ainda no âmbito da teoria geral da representação, desenvolve paralelamente - na trilha dos aportes de Winnicott e Bion, mas integrando também, de modo menos explícito, a valorização do próprio Lacan do papel do terceiro e da função da negatividade - uma teoria das estruturas do enquadre materno, através, principalmente, do conceito de alucinação negativa.

 

Talvez seja útil pensar que as diferenças entre Green e Lacan se originam em suas distintas avaliações das relações entre as duas tópicas freudianas. Lacan enxerga na segunda tópica, principalmente, a possibilidade de complexificar a primeira tópica através da introdução, no funcionamento desta última, da negatividade repetitiva da pulsão de morte. Deste modo, efetua uma operação de rebatimento da segunda tópica sobre a primeira, pela qual a compulsão à repetição do indizível da pulsão de morte é concebida como o motor mesmo do retorno do recalcado. Por esse mesmo gesto, esvazia o desejo inconsciente de seus conteúdos imaginários, reduzindo-o à insistência metonímica de uma falta que se representa no intervalo entre os significantes. Também reduz a interpretação analítica ao corte que marca a escuta de um desejo que se metaforiza nas cadeias da associação livre. Com tudo isso, permanece no horizonte da primeira tópica, na qual o desejo inconsciente não cessa de se dizer nas formações do inconsciente. Em consequência, não valoriza as diferenças entre o sistema representacional do inconsciente e o caldeirão pulsional do id, ao mesmo tempo que concebe a relação com o objeto como uma relação com a falta do objeto, constituída pela castração. As relações entre ego e id são concebidas nos mesmos moldes de desconhecimento que o pré-consciente entretém com o inconsciente na primeira tópica, deixando passar em branco todas as indicações de Freud a respeito da função de ligação que o ego exerce para dotar as pulsões do id de representação. Ainda no mesmo movimento, limita sua consideração da angústia à sua função de sinal. De um ponto de vista mais amplo, a teoria permanece constituída tendo a neurose como patologia de referência, o que faz com que a questão da formação do analista, ou seja, do término da análise e da passagem do analisando para o analista, ocupe grande parte das reflexões sobre a prática clínica. Qualquer possibilidade de modificação do método, tendo em vista seus limites e o acolhimento das patologias-limite, é considerada como desvio da novidade da descoberta freudiana. É verdade que em seu último ensino Lacan retorna sobre essas questões e as remaneja de forma radical, mas o fato é que esses remanejamentos ainda tiveram de esperar quase duas décadas após sua morte para serem reconhecidos em seu alcance e para produzirem efeitos mais generalizados sobre a prática clínica dos lacanianos, os quais, hoje em dia, relativizam o papel central da castração na estruturação da subjetividade e não hesitam em falar de patologias-limite, de "psicoses ordinárias". O papel externo que a psicanálise não lacaniana certamente exerceu sobre a sensibilidade dos lacanianos para a abertura a esse tipo de temática é passado em silêncio.

 

Green, por sua vez, considera a segunda tópica, a "reviravolta dos anos 1920", como uma ampliação radical, sem retorno, das questões contidas na primeira tópica. Observa que, ao falar de id, Freud muda seu vocabulário, passando a falar muito mais em moções pulsionais do que em pulsão propriamente dita. Ao contrário do sistema do inconsciente, no qual as representações se encontram garantidas em sua permanência, no id existem moções pulsionais em busca de representação. Percebe aí o delineamento das questões relativas ao trabalho de simbolização em sua dimensão intrapsíquica. A compulsão à repetição, em sua instância primeira, é tida como indício de fracasso do trabalho de simbolização. A pulsão de morte, em seu exercício de desligamento, é compreendida em termos de falha da função objetal. Valoriza a diferenciação entre as diversas instâncias da angústia, desde as angústias de abandono e de invasão, até a angústia como sinal. Reconhece que Freud, embora tenha começado a mudar sua concepção de objeto a partir de "Luto e melancolia", não chegou a desenvolver de modo pleno o papel da função objetal na complexificação do aparelho psíquico. Concede às teorias pós-freudianas da relação de objeto uma importância fundamental para a elaboração desta função, embora ao custo de uma desvalorização do papel econômico da pulsão, que insiste em não abandonar. Nesse sentido, recorre extensivamente às contribuições de Winnicott e de Bion para elaborar uma teoria da função objetalizante, sem desatender à necessidade de desenvolver uma teoria da função subjetivante para a compreensão da elaboração do fator econômico da pulsão e da complexificação do aparelho psíquico. Insiste no fato de que Freud, ao elaborar a segunda tópica, se afasta da referência à neurose e passa a construir suas teorias principalmente a partir da reflexão sobre as neuroses narcísicas e a psicose. Acompanha as propostas pós-freudianas de modificação do método analítico para o tratamento dos quadros de não neurose, mas valoriza, desenvolvendo as intuições de Winnicott e Bleger, a função do enquadramento analítico, função que introduz a dimensão do terceiro na compreensão da relação analista-analisando, compreensão esta tradicionalmente formulada pelos autores pós-freudianos nos termos mais duais da relação de objeto e da contratransferência. Nesta trilha, valoriza a importância da construção psicanalítica e da participação imaginativa do analista para a simbolização das experiências traumáticas das falhas objetais.

 

Nisso tudo, cabe ressaltar que a originalidade das teorias de Green se fazem na referência permanente a trabalhos oriundos de horizontes diversos do campo psicanalítico, ou, em suas palavras, na "abertura do diafragma da teoria". Esta abertura não deve ser entendida como um artifício, como um deixar-se influenciar por teorias esparsas, mas como uma tomada de posição, como um imperativo de posicionamento. Em decorrência deste modo de teorizar, compreender Green é, de certo modo, compreender a psicanálise como um todo e, em seu interior, posicionar-se. Esse é o sentido da vetorização da psicanálise contemporânea que a obra de Green representa em seu mais alto nível. Muitas obras podem servir como via de trânsito por entre as teorias psicanalíticas e exigir, de cada psicanalista, o esforço de posicionar-se, mas, a meu ver, a de Green é a que melhor encarna esse espírito dentre todas, por sua acuidade, por sua extensão, e por se fazer no esforço de contornar e atravessar o conjunto ampliado do campo analítico, agregando o que de melhor encontrar num todo original.

 

O momento da psicanálise contemporânea, no qual Green se inclui, não como líder, mas como partícipe, traduz uma perspectiva antidogmática em psicanálise. Sucede ao momento pós-freudiano, que trouxe para a psicanálise importantíssimos desenvolvimentos teóricos, mas que teve o custo de dividir a psicanálise em escolas voltadas sobre si mesmas de modo dogmático. Na psicanálise contemporânea a originalidade da contribuição de cada autor é melhor avaliada levando-se em conta a posição que ocupa no quadro mais amplo de um conjunto de autores que compartilham questões aproximáveis entre si, questões estas que se formaram ao longo do desenvolvimento histórico da psicanálise. A psicanálise contemporânea não se volta para a construção de uma doutrina unificadora do campo, como desejaram, por exemplo, de modo mais ou menos explícito, Anna Freud, Klein, Lacan ou Kohut, mas de muitas teorias que confluem e se redistribuem. É deste modo que cabe interpretar as palavras de Green no fim da passagem acima citada. Importante notar o quanto valoriza sua própria obra por sua função de fazedora de caminhos em um campo que se constitui em um processo permanente de invenção, de convergências e de divergências: "Se então, foram os meus trabalhos que foram escolhidos como ponto de partida para essa reflexão, é precisamente pelas duas razões que evoquei. A primeira é a situação trans-societária na psicanálise francesa. A segunda é a necessidade de se situar diante das grandes teorias psicanalíticas que se desenvolveram no estrangeiro. Mencionarei sobretudo as teorias de Winnicott e de Bion que contaram para mim. Não há, no entanto, nenhuma pré-condição para refletir sobre o que os meus trabalhos apresentaram e às vezes descobriram. Os dados estão lançados. Tiremos deles as lições".

 

Para mim, lacaniano de formação e que em determinado momento quis transitar pelo conjunto mais amplo das orientações psicanalíticas, a frequentação da obra de Green foi a que melhor serviu para que o passeio por entre as diversas teorias psicanalíticas não se dispersasse em ecletismo teórico. Green convida, o tempo todo, pela complexidade do pensamento e pela força arrebatadora do caráter que não hesita em se manifestar, à tomada criteriosa de posição no campo psicanalítico em seu conjunto. A cada passo, existem escolhas a serem feitas. Há o que de pegar e há o que de largar. A falta que sua morte representa é enorme, apenas amenizada pela consciência do trabalho conjunto em continuação permanente que seu gesto abrangeu.

 

RENATO MEZAN. André Green e a Psicanálise aplicada

 

Em Un psychanalyste engagé (1994), André Green afirma que Shakespeare quase ocupou para ele o lugar de analista. Assim, não é inapropriado iniciar estas notas lembrando como Marco Aurélio introduz seu discurso ao pé do cadáver ainda quente de Júlio César: "the evil men do lives after them; the good is oft interred with their bones" (o mal que os homens fazem vive depois deles; o bem é muitas vezes enterrado com seus ossos)[1].

 

Paradoxo: a longa e frutífera carreira de Green é um dos mais enfáticos desmentidos à validade universal do que diz o romano. Se fez algum "mal" - e deve ter feito, pois era um homem apaixonado -, o "bem" está longe de ter sido "enterrado com seus ossos". Ao contrário, é por causa dele que o lembramos, que se tornou um dos mais importantes psicanalistas do nosso tempo, e que a ausência da sua voz tonitruante se faz sentir com tanta intensidade. E com certeza não lhe teria desagradado - a ele, que jamais aceitou ser um "devoto" (nem mesmo do Grande Bardo) - que a obra que nos legou comprove, também neste caso, o perigo das generalizações apressadas, mesmo que feitas com a melhor das intenções.

 

O texto proposto pelos editores da Seção Debates resume os principais elementos desse "bem": por um lado, contribuições de peso à metapsicologia, à psicopatologia e à teoria do processo analítico; por outro, uma "posição política integradora" entre as várias correntes da Psicanálise contemporânea. Os artigos deste número de Percurso dão uma ideia bastante nítida da extensão e da importância das suas realizações tanto na esfera da clínica quanto no plano da teoria; aqui, gostaria de me deter brevemente sobre o segundo aspecto - o político - e destacar, no conjunto do que produziu, um grupo de escritos que me parece de particular relevo: os que ilustram o que Freud chamava "Psicanálise aplicada".

 

Quando Green deixa seu Egito natal para estudar medicina em Paris (1945), a Psicanálise está entrando na "era das escolas". Esta fase, que perdurou até meados dos anos 1970, caracteriza-se pela organização do movimento em quatro correntes bem diferenciadas, com uma face institucional e política, e outra doutrinária: a psicologia do ego, a escola kleiniana, a das relações de objeto, e o lacanismo. Cada uma dessas tendências pretendia - ainda que com graus variados de dogmatismo - constituir a única e reta continuação de Freud, e lançava sobre as outras o anátema de ter abastardado, diluído e por fim traído a inspiração essencial da obra fundadora. A virulência desses ataques só encontra paralelo na olímpica indiferença ao que as demais podiam conter de verdadeiro: para Lacan, Melanie Klein nunca saiu do imaginário, e os ego-psychologists não passam de arautos da ideologia do self-made man; para os kleinianos, os que não compartilham das suas concepções são surdos ao clamor do arcaico; segundo a IPA, as sessões curtas de Lacan são tudo menos psicanálise; os teóricos da relação de objeto (talvez os menos intolerantes, é preciso reconhecer) não deixam de criticar o que lhes parece um inaceitável descaso dos demais para com o papel do ambiente na constituição do sujeito.

 

Talvez - como sugere François Duparc na sua excelente introdução ao pensamento de Green[2] - a origem multicultural tenha contribuído para o tornar mais sensível que outros a um fato deixado na sombra por tais polêmicas: os psicanalistas de todas as tendências têm bons motivos clínicos e teóricos para sustentar suas posições. Em todas, a reflexão parte de fenômenos realmente existentes e verificáveis nos tratamentos, e busca dar conta deles utilizando conceitos e hipóteses que em nada "traem" o que Freud formulou. Por outro lado, a necessidade de justificar suas opções levou cada escola a reivindicar para si a condição de única herdeira legítima do pensamento freudiano, numa mistura de sectarismo e demonização recíproca bem ao estilo do clima de Guerra Fria então vigente na política mundial.

 

Em oposição a isso, a convicção de que o psíquico é por natureza complexo, que é feito de elementos heterogêneos que não podem ser reduzidos a um único tipo, guiará Green no seu trabalho, e o levará a elaborar uma sofisticada metapsicologia, na qual articula de modo rigoroso e original os três grandes paradigmas da Psicanálise pós-freudiana: o pulsional, o objetal e o "subjetal" (Lacan).

 

A assimilação da Psicanálise britânica tem neste movimento um papel fundamental, mas tampouco é possível ignorar o que Green aprendeu nos sete anos em que frequentou o seminário de Lacan. Não é por acaso, afinal, que construiu uma teoria da linguagem que parte da noção de significante, mas se recusa a ver no inconsciente nada mais que uma combinatória desencarnada deles. Winnicott lhe servirá para complementar a teoria do simbólico com a dimensão do afeto, que vai resgatar em Freud graças à minuciosa leitura que encontramos em O discurso vivo (1973). Da mesma forma, a descoberta de Bion é uma das origens dos conceitos de "psicose branca" e de "mãe morta", com os quais Green deu grandes passos para esclarecer os estados limítrofes (borderline). Por outro lado, não poupa aos americanos e ingleses a crítica de terem praticamente abolido a dimensão da sexualidade, jogando fora o bebê de que tanto falam junto com a água do banho libidinal em que Freud o mergulhara desde os Três Ensaios.

 

A circulação entre esses grandes ramos da árvore psicanalítica, e a constante referência ao tronco freudiano dela, dá a Green um ponto de vista privilegiado. É ela, creio, que lhe permite estabelecer o "diálogo" do qual falam os editores da Seção Debates, e, ao longo dos anos, "agregar" e "integrar" o que lhe parecia verdadeiro nas diversas elaborações teórico-clínicas que servem de fundamento às escolas. É também ela que o conduziu ao que Duparc chama "os grandes debates ideológicos", na defesa intransigente da complexidade do psíquico frente às reduções - a seu ver simplificadoras e empobrecedoras - dos "devotos" de todas as obediências.

 

Nesse percurso, os estudos de Psicanálise aplicada estão longe de ser apenas ocasiões para exibir sua inteligência cintilante e seus formidáveis dotes de intérprete. De modo algum eles constituem um hobby, ou, como se diz na França, um violon d'Ingres (alusão ao fato de, nas horas vagas, o pintor ter se dedicado ao violino). Ao contrário, desde os estudos sobre a tragédia que enfeixou em seu primeiro livro (Un oeil en trop, 1969), a análise de textos literários, assim como ocasionalmente de quadros (Revelações do inacabado, 1992), lhe permite refinar elementos centrais da sua visão da psique, e do trabalho emocional/intelectual tanto do criador quanto do destinatário da obra de arte.

 

Aqui convém abrir um parêntesis. Tornou-se comum descartar, quando se fala deste gênero de escritos, o termo "Psicanálise aplicada". Dizem os que o recusam que a palavra remete a algo mecânico, para não dizer automático: do alto da sua sapiência, e desrespeitando a constituição singular do objeto cultural, o analista lhe "aplicaria" seus conceitos, o aplastaria sob suas certezas inquestionadas, e no fundo apenas reencontraria, após a leitura, aquilo que nela (e nele) enfiara a golpes de martelo. Tautológica para dizer o mínimo, dogmática e superficial nos piores casos, irrelevante nos melhores, a Psicanálise aplicada acabaria por levar a resultados opostos aos desejados, entre eles o de persuadir o leitor não profissional quanto à veracidade e fecundidade da teoria psicanalítica ilustrando-as num material facilmente acessível, contrariamente ao que ocorre quando o objeto da análise é um processo terapêutico em sentido estrito.

 

Não penso que essa posição seja adequada, nem vejo ganho em substituir a expressão "Psicanálise aplicada" por eufemismos ou paráfrases do tipo "extramuros", "psicanálise em extensão", e outros semelhantes. Em primeiro lugar, porque ela é de Freud: Zeitschrift für angewandte Psychoanalyse era o subtítulo de Imago, a revista que fundou com Otto Rank precisamente para difundir esse gênero de estudos. Em segundo, e mais importante, porque uma consulta ao dicionário revela a enorme riqueza conotativa do vocábulo: aplicar um remédio, um método, uma injeção, uma penalidade, entregar-se com afinco a uma atividade ("aluno aplicado"), fazer um investimento que frutifica ("aplicações financeiras"), concentrar um sentido para perceber algo ("aplicou o ouvido à porta", num exemplo do Aurélio), entre outros. Falamos de "aplicativo" para designar um programa de informática que permite fazer coisas, de "aplicável" no sentido de conveniente ou adequado ("tal lei é aplicável ao caso em questão"), de "artes aplicadas" para a criação de objetos utilitários bonitos e funcionais...

 

Todas essas acepções derivam do latim applicare. Plica é a prega ou dobra (também em português: o leitor, como eu, é portador de uma "plica sinovial" em certas articulações, como o joelho). Plicare quer dizer dobrar, e ad-plicare é justapor, como ocorre quando se juntam os lados de um tecido ou papel[3]. Desse sentido literal decorrem as conotações mencionadas, uma das quais é evidentemente infundir, introduzir algo que afeta e estimula aquilo no qual é colocado, e eventualmente revela certas características dele, como num exame médico por contraste. É esse poder metaforizante da ideia de aplicação, a capacidade de produzir algo novo (por exemplo conhecimento, quando se aplica um método a um fragmento do real) que se perde nos eufemismos, e me faz manter - e valorizar - o bom e velho conceito de Psicanálise aplicada. Café expresso é café expresso, mesmo e sobretudo se alguém prefere chamá-lo de "rubiácea dicotiledônea em solução aquosa a dez por cento".

 

É nesse sentido que Green o adota - e com que resultados! A leitura psicanalítica de obras de arte não apenas o auxilia a prosseguir em sua autoanálise, desvendando os mecanismos e fantasias que o fazem se comover frente a algo belo e forte: permite avançar em pontos obscuros da teoria, porque elas são objetos "transnarcísicos", capazes de ser compartilhados pelo autor e pelo leitor/espectador, e porque, como qualquer produção psíquica, trazem em si as marcas dos processos que as engendraram. Desde que se respeite, é claro, a sua estrutura, cuja colocação em evidência é sempre um passo indispensável: Green jamais descura a leitura atenta daquilo sobre o que se debruça, antes e aquém de qualquer tentativa de interpretação. Para ele, cada obra solicita (e mesmo impõe) um modo de abordagem específico. Assim, a Orestíada exige a tomada em consideração do contexto histórico-religioso do teatro grego, enquanto Otelo admite uma leitura "puramente textual", e outros textos permitem "certas conjecturas sobre as relações do autor com seu escrito", como lemos na apresentação de O desligamento (1992).

 

Não é possível, aqui, detalhar o que esse tipo de interpretação encontra em cada caso: é preciso seguir passo a passo os meandros da leitura que propõe de Hamlet, de Macbeth, de A Dama de Paus (Puchkin), de Ifigênia em Áulis (Racine), do poema El otro tigre (Borges), ou as fantasias inconscientes que determinam a composição plástica do Cartão de Londres, que Leonardo pintou como preparação para a "Virgem dos Rochedos". Em todos eles, há pistas da maneira pela qual foram concebidos e executados, das sutilezas pelas quais a elaboração secundária (a "ligação") disfarçou ou ocultou os fatores inconscientes que se encontram na origem da obra, e sobre os meios pelos quais ela "entra em ressonância" com o inconsciente do destinatário, permitindo a este o ganho de prazer do qual Freud falou em "O escritor de ficção e a fantasia". E, o que é mais importante, os conceitos com os quais se efetua a análise não saem dela como entraram: enriquecem-se, mostram possibilidades insuspeitadas de utilização, tornam-se mais precisos e mais flexíveis - em suma, ferramentas melhores para a compreensão do psíquico tout court.

 

Jogando com a homofonia dos verbos lit (lê) e lie (liga), Green dirá que a escuta psicanalítica da obra não a lê, mas a des-lê/des-liga (délie), de onde a déliaison que dá título a um dos seus livros. Dedicado "àqueles dos meus colegas que não creem na possibilidade de uma Psicanálise aplicada", ele o inicia dizendo que "a crítica literária psicanalítica é, sem sombra de dúvida, uma parte integrante do patrimônio psicanalítico". A paixão, o rigor e o brilho das suas contribuições à Psicanálise - não só à aplicada, é claro - explicam por que elas se tornaram "parte integrante" do patrimônio de todos nós.

 

Ler Green é uma experiência exigente, porque, embora seu intuito seja sempre o de ser o mais claro possível, os temas de que trata são complexos, e ele não obscurece esse fato. Mas quem aceitar se embrenhar com ele no que há para ser pensado quanto ao espírito humano será recompensado com um ganho considerável: o de compreender um pouco mais, e maravilhar-se um pouco mais, com aquilo que faz de nós o que somos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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