voltar à primeira páginaResumo Este trabalho apresenta a importância da obra de André Green para o desenvolvimento da psicanálise contemporânea. É considerado central para esse desenvolvimento o seu esforço para a renovação e valorização da teorização psicanalítica por meio de uma criativa articulação da metapsicologia freudiana com a obra de autores como Bion, Winnicott e Lacan. Ao lado disso, destaca-se a concepção final de Green sobre os elementos constitutivos dos sucessos e dos fracassos da clínica psicanalítica. Palavras-chave André Green; história da psicanálise; psicanálise contemporânea e clínica psicanalítica. Autor(es) Nelson Ernesto Coelho Junior é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica, professsor e pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São paul. Autor, entre outros livros, de A força da realidade na clínica freudinana e Dimensões da intersubjetividade (organizado em conjunto com Perla Klatau e Pedro Salem). Notas [1] Green fez formação em medicina e depois psiquiatria, mas, como ele mesmo afirma, na época de estudante de medicina "lia mais obras de psicologia e de filosofia do que de medicina" (1999, p.?41). O primeiro texto de Green que li, no início dos anos 1980, foi seu texto de 1964 "Du comportement a la chair: intinéraire de Merleau-Ponty", publicado na revista de filosofia Critique, em um número em homenagem ao filósofo francês, quando da publicação de seu livro póstumo, O visível e o invisível. [2] Luis CláudioFigueiredo, em seu livro As diversas faces do cuidar (Escuta, 2009), procura descrever o que denomina de "perspectivas inter e transescolares" (p.?16), como o que vem atualmente sendo produzido de significativo em psicanálise, e situa no final da década de 1970 o início deste movimento de "atravessamento de paradigmas". [3] Cf. C. Bollas, Le moment freudien. [4] No Brasil há que se destacar o trabalho pioneiro de autores como Renato Mezan, Luiz Roberto Monzani e Luiz Alfredo Garcia-Roza. [5] E. Morin, Introdução ao pensamento complexo, p.?15. [6] E. Morin, op. cit., p.?15. [7] Cf. J. e A.M. Sandler, e R. Davies (2000), Clinical and Observational Psychoanalytical Research: the roots of a controversy. Vale lembrar que Green, desde ao menos o 29o Congresso da IPA de 1975, em Londres, já enfrentava debates acalorados que o opunham não mais apenas a Lacan, mas também à tradição da Psicologia do Ego no contexto internacional, em defesa da metapsicologia freudiana e da criatividade do analista em seu trabalho clínico e teórico. [8] R. Bernardi "André Green: pensamento clínico y complejidad. Cuestiuones pendientes", p.218. [9] R. Bernardi, op. cit., p.?218. [10] Cf. A. Green (2002a), La pensée clinique, p.?27. [11] A. Green, op. cit., p.?30. [12] F. Urribarri, "Posface: Passion clinique, pensée complexe. Vers la psychanalyse du futur", p.?249. [13] M. Macias, "Apresentação", in A. Green, Um psicanalista engajado. Conversas com Manuel Macias, p.?12. [14] A. Green, Illusions et désillusions du travail psychanalytique, p.?11. [15] A. Green, op. cit., p.?173. [16] A. Green, O trabalho do negativo, p.?115. [17] A. Green, op. cit., p.?117. [18] A. Green, op. cit., p.?128. [19] A. Green, Illusions..., p.?133. [20] A. Green, op. cit., p.?172. [21] A. Green, op. cit., p.?172. [22] A. Green, op. cit., p.?172. [23] A. Green, op. cit., p.?172. [24] Faço a seguir uma tradução, em paráfrase, do trecho do livro (p. 181-188) em que Green apresenta o caso Nanon, visando a maior fidedignidade para posterior discussão das ideias presentes no texto. [25] A. Green, op. cit.., p.?172. [26] A. Green, op. cit., p.?125. [27] A. Green, La pensée clinique, p.?61. [28] Cf. L. C. Figueiredo, "Presença, implicação e reserva", in L. C. Figueiredo e N. Coelho Junior, Ética e técnica em psicanálise. [29] A. Green, Illusions..., p.?134. Referências bibliográficas Bernardi R. (2012). André Green: pensamento clínico y complejidad. Cuestiuones pendientes. Revista de Psicoanálises - APA, vol. lxix, n. 1, p.217-229. Buenos Aires: Cosmoprint. Bollas C. (2011). Le Moment freudien. Préface d'André Green. Trad. do inglês por Ana de Staal. Paris: Les Éditions d'Ithaque. Figueiredo L. C. (2008). Presença, implicação e reserva. In: L. C. Figueiredo e N. Coelho Junior. Ética e técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta. Segunda versão ampliada. _____. (2009). As diversas faces do cuidar. São Paulo: Escuta. Green A. (1964). Du comportement a la chair: intinéraire de Merleau-Ponty. Critique n. 211, p.?1017-46. _____. (1990). La folie privée. Paris: Gallimard. _____. (1999). Um psicanalista engajado. Conversas com Manuel Macias. Trad. José Martins Canelas Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo. _____. (2002a). La pensée clinique. Paris: Odile Jacob. _____. (2002b). Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine. Paris: PUF. _____. (1993/2010a). O trabalho do negativo. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed. _____. (2010b). Illusions et désillusions du travail psychanalytique. Paris: Odile Jacob. Macias M. (1999). Apresentação. In Um psicanalista engajado. Conversas com Manuel Macias. Trad. José Martins Canelas Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo. Morin E. (2005). Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Meridional/Sulina. Sandler J.; Sandler A. M.; Davies R. (2000). Clinical and observational psychoanalytical research: the roots of a controversy. London: Karnac. Urribarri F. (2010). Posface: passion clinique, pensée complexe. Vers la psychanalyse du future. In: A. Green, Illusions et désillusions du travail psychanalytique. Paris: Odile Jacob. Abstract This paper reflects on the importance of Green’s work in contemporary Psychoanalysis. The author feels that one of his main contributions for it is his effort to renovate theorization through very creative links between Freud and some of his sucessors, such as Bion, Winnicott and Lacan. Another important aspect of Green’s thought is his final conception of the elements leading to sucess and to failure in psychoanalytic treatments. Keywords André Green; history of Psychoanaysis; contemporary Psychoanalysis; psychoanalytic practice. voltar à primeira página
| | TEXTOA importância de André Green para a psicanálise contemporâneaThe importance of André Green for contemporary Psychoanalysis
Nelson Ernesto Coelho Junior
André Green teve importância fundamental para o desenvolvimento da psicanálise contemporânea. Sua participação foi decisiva nas mudanças teóricas, clínicas e institucionais sofridas pela psicanálise nos últimos quarenta anos. Esse texto procura explicitar dois aspectos em que isso se verificou de forma contundente. Na primeira parte do texto, destaco o papel de Green na transformação do cenário psicanalítico, de uma organização em torno das grandes escolas pós-freudianas para uma psicanálise "pós-escolas". Na segunda parte do texto, apresento as últimas contribuições de Green sobre a clínica, seus sucessos e fracassos. Como preâmbulo, apresento dois pontos centrais da obra teórica e da atuação institucional de André Green: a) De um lado, Green articulou de forma original a tradição psicanalítica, principalmente representada por sua revalorização da metapsicologia freudiana, com inovações pós-freudianas, no seu caso as obras de Winnicott, Bion e Lacan. Mais especificamente, uma articulação entre a dimensão pulsional/representacional e a dimensão relacional/objetal. b) Por outro lado, Green sempre foi um ardoroso protetor do legado freudiano frente aos ataques de detratores externos. Mais notadamente, frente ao que considerou os enganos de muitos psicanalistas que buscaram garantir a sobrevivência da psicanálise por meio de alianças mais ou menos espúrias seja com métodos das ciências objetivas seja com seduções de discursos humanistas. Nesse âmbito e com essa função, é preciso reconhecer que a própria obra de Green também se destaca, com conceitos originais e inovadores (a mãe morta, o trabalho do negativo, os processos terciários, as funções objetalizantes e desobjetalizantes, o duplo limite, o pensamento clínico, a posição fóbica central e a estrutura enquadrante, entre outros), com alto nível de abstração metapsicológica e um modo de conceber a clínica que o fez ser, possivelmente, o mais importante psicanalista da virada do século XX para o século XXI. Green: um psicanalista pós-escolas No que diz respeito ao primeiro ponto (tradição e inovação), é fundamental a atuação de Green na construção da passagem do período das grandes escolas psicanalíticas para o que hoje podemos denominar de um período pós-escolas. No âmbito da história da psicanálise é consenso que após a morte de Freud instalou-se um período marcado por projetos autorais que rivalizavam entre si (1940-1980): escola kleiniana, escola da psicologia do ego e escola lacaniana. A despeito das contribuições decisivas trazidas por cada uma delas, a marca principal desses quarenta anos foi a rigidez e o dogmatismo com que defenderam suas verdades psicanalíticas singulares. Atravessar as fronteiras teórico-clínicas foi, por muito tempo, algo bastante raro. A partir do final dos anos 1970 o cenário começou a mudar. Autores como Green, J. B. Pontalis e, depois, Thomas Ogden, Cristopher Bollas, René Roussillon e Antonino Ferro, entre outros, começaram a publicar trabalhos em que as ideias de cada um dos patronos das diferentes escolas pós-freudianas apareciam articuladas a uma nova leitura da obra de Freud, alinhavadas pelas ideias originais de seus autores. Hoje, podemos reconhecer, as obras dos autores citados são movimentos em direção à construção de uma visão pluralista da psicanálise em que o atravessamento dos dogmas é a tônica. Identifico-me com a hipótese de que essa característica de parte da psicanálise contemporânea teve como grande impulso inicial um movimento que começa na França nos anos 60 do século passado e que gerou e propagou o trabalho de leitura rigorosa da obra freudiana. Se o mote lacaniano do "retorno a Freud" evidenciou-se, de fato, como um uso da leitura singular feita por Lacan dos textos de Freud para lançar sua própria visão do que deveria ser a verdadeira psicanálise, o trabalho empreendido por autores como J. B. Pontalis, J. Laplanche, A. Green, C. Stein, C. Le Guen e P. Fédida, entre outros, muitos deles psicanalistas com formação original em filosofia[1], permitiu que as ideias freudianas que haviam sido de certa forma dissolvidas pelos discursos das escolas pós-freudianas retornassem ao centro do debate. Com isso, uma nova geração de psicanalistas pôde começar sua formação lendo Freud e não lendo o Freud de Klein ou o Freud de Lacan, ou o Freud de Hartmann, Kris e Löwenstein, e assim por diante. A partir de Freud, nos anos 1970 e 1980, foi possível começar a vislumbrar com mais clareza qual tinha sido o destino da obra e das ideias freudianas nas mãos das "escolas pós-freudianas" e por que, não raro, essas escolas falavam de Freud como "o velho Freud", indicando que ele e suas ideias haviam sido ultrapassados. É por isso que, nos anos 1980, André Green, seguido por outros, indicou que a grande novidade da psicanálise nas últimas décadas do século XX era Freud. Não se tratava de um novo Freud, exatamente, já que mesmo com o acréscimo da publicação de correspondências inéditas de Freud e com novas traduções da obra do fundador da psicanálise, seus textos eram os mesmos. Mas, seguramente, uma nova leitura se instalava apoiada em estratégias de interpretação formuladas nas diferentes tradições filosóficas e hermenêuticas do século XX. Entendo que foram essas novas leituras da obra de Freud que possibilitaram o que hoje podemos reconhecer como um período "pós-escolas"[2] em psicanálise. Dessa forma, coube à obra freudiana, quarenta anos após a morte de seu autor, renovar a área de conhecimento que ele mesmo havia fundado. Trata-se, de fato, de uma exploração radical e renovada da descoberta freudiana, em favor de uma psicanálise pluralista e não sectária. Em muitas escolas e instituições de formação psicanalítica havia se instalado um sectarismo mortífero, como denominou Cristopher Bollas, em livro que foi prefaciado por Green quando da edição francesa[3]. Com isso, assentadas em uma rigidez no uso da teoria e da técnica analíticas, as "escolas" procuravam impor um único modelo, que recebia em todas elas o nome de "verdadeira psicanálise". Mas se hoje vislumbramos, mundialmente, uma psicanálise pluralista, pós-escolas, em grande medida devemos isso ao esforço de retomada da interpretação da teoria freudiana, em particular dos textos metapsicológicos de Freud. Os esforços conjuntos de vários autores contemporâneos[4] para dar uma cidadania epistemológica própria à obra freudiana recolocaram em cena a discussão de alguns temas centrais da psicanálise em sua tentativa de estabelecer uma teoria geral da constituição e do funcionamento do aparelho psíquico: a.A tensão necessária entre as dimensões da força (intensidades e movimentos pulsionais, tanto oriundos do corpo próprio quanto da presença desejante do outro) e do sentido (a formação e o encadeamento das representações e suas efetividades). b.A tensão necessária entre o que pode ser considerado como interno ao psiquismo e o que advém do mundo externo, que em certo nível recobre a tensão mais referida contemporaneamente entre as dimensões intrapsíquicas e as dimensões intersubjetivas (o que evidentemente ainda coloca em cena se há ou não um conceito de sujeito próprio à psicanálise). c. As dimensões quantitativas e qualitativas do aparelho psíquico. d. As relações entre Percepção, Representação, Consciência e Inconsciente. A manutenção desses temas na forma de questões em aberto no horizonte das pesquisas psicanalíticas não revela o fracasso de uma ciência, mas um compromisso ético que pauta o desenvolvimento de uma prática e de um campo de investigação, como está bem demonstrado na obra de Green. É justamente a natureza complexa do objeto psicanalítico que levou Green, a partir do final dos anos 1990, a recorrer à noção de pensamento hipercomplexo de Edgar Morin, para referir-se aos elementos de um pensamento clínico. Green parece dar continuidade, no campo da psicanálise, à concepção de Morin, que afirmou ser necessário reconhecer "as enormes carências de nosso pensamento, e compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes. É [preciso] tomar consciência da patologia contemporânea do pensamento"[5]. Morin insistiu no fato de que "a patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real. [...] A doença da teoria está no doutrinamento e no dogmatismo, que fecham a teoria nela mesma e a enrijecem"[6]. Foi o reconhecimento desse panorama na esfera da psicanálise que levou Green a um grande embate teórico, político e institucional, enfrentando a resistência de vários grupos dominantes no cenário psicanalítico[7]. Acho que é possível afirmar que um novo modelo de compreensão epistemológica do trabalho clínico em psicanálise começa a se esboçar a partir do encontro de Green com a noção de pensamento complexo de Morin. Ricardo Bernardi afirmou que "esta complexidade advém do fato de que a observação psicanalítica vai além do manifesto: inclui os efeitos que a observação produz no analista, as fantasias que paciente e analista constroem conjuntamente na sessão, as ressonâncias mútuas [...], etc."[8]. Trata-se de reconhecer que "uma observação que não leve em conta esta complexidade, como assinalou reiteradamente Green, é um método muito pouco apropriado para a psicanálise"[9]. Assim, a psicanálise contemporânea faz convergir o trabalho clínico e a construção teórica para a formulação de um modelo epistemológico apropriado ao objeto psicanalítico em sua complexidade. Considerando a ampliação do campo psicanalítico ao tratamento dos casos não neuróticos, tratava-se de explicitar um novo modelo a partir do pensamento clínico, agora reconhecido como um pensamento hipercomplexo. Nesse âmbito se destacam a importância que Green atribuiu à articulação entre a dimensão pulsional/representacional (o intrapsíquico) e a dimensão relacional (o intersubjetivo)[10] e a proposição do enquadre analítico dividido em uma matriz ativa (associação livre do paciente, escuta flutuante e neutralidade do analista) e uma fração variável (visibilidade ou não do analista, número de sessões semanais, forma de pagamento ou gratuidade etc.). Cabe destacar ainda, nesse contexto, a formulação inovadora de Green dos processos terciários: "Nós supusemos que a atividade analítica, em seu melhor nível, consistia em um vai e vem permanente entre os dados vinculados aos processos primários e àqueles do pensamento secundarizado"[11]. Trata-se de dar ênfase às formas de ligação entre os processos primários e secundários, denominadas por ele de processos terciários, na compreensão das dinâmicas presentes na clínica, e de valorizá-las na formulação de um modelo de pesquisa propriamente psicanalítico. Aliás, como bem expôs Fernando Urribarri em seu posfácio ao livro de Green Illusions et désillusions du travail psychanalitique, a "virada dos anos 2000" e a proposição do que poderia ser considerado um paradigma contemporâneo da psicanálise, marcantes nos trabalhos de Green no início deste nosso novo século, garantem que, "no lugar de um novo jargão, o projeto contemporâneo visa construir uma matriz disciplinar, uma articulação das ideias diretrizes para um programa de pesquisa sobre as questões (teóricas e clínicas) da prática atual"[12]. Para Urribarri, a matriz disciplinar contemporânea deve operar a apropriação das principais contribuições pós-freudianas e articulá-las com as contribuições originais de Freud na formação de uma psicanálise renovada. Mas esse projeto ganha seu maior sentido na medida em que os dados da clínica contemporânea se impõem como ponto de partida e de chegada. Ou como sugeriu Manoel Macias na apresentação do livro em que publicou as suas entrevistas com Green: "Para aqueles que se sentem pouco atingidos tanto pelas comprovações kleinianas quanto pelos matemas lacanianos, essa obra [de Green] não é unicamente uma obra pessoal interessante: é uma obra fundamental, uma obra marcante, estabelecendo uma nova relação com o "freudismo", a partir de dados clínicos atuais"[13]. Com essa afirmação de Macias gostaria de me voltar em mais detalhes para a forma como Green nos apresenta a clínica psicanalítica atual. E, ao lado disso, a forma como apresentou o seu próprio trabalho clínico, principalmente em seus últimos anos de vida. Os sucessos e os fracassos da clínica psicanalítica contemporânea O desenvolvimento do trabalho de Green sobre o processo analítico, que tem seu início nos anos 70 do século passado, desembocou em seu último livro publicado em vida, Illusions et désillusions du travail psychanalitique, de 2010. É um instigante estudo das causas dos sucessos e dos fracassos na clínica psicanalítica. Embora se possa discutir a validade testamentária desse livro, as primeiras frases indicam a reflexão que se anuncia: "Este livro é o resultado de mais de 50 anos de prática psicanalítica. Reúne as ideias recolhidas por minha experiência. Não toda a minha experiência, que é mais diversa e que foi, habitualmente, fonte de uma grande satisfação, quando fui capaz de ajudar e às vezes curar alguns de meus pacientes. [...] Eu reuni as ideias que pude reter de minhas experiências menos felizes"[14]. Entendo que o fato de Green escrever sobre os fracassos em análise, incluindo seus próprios fracassos em tratamentos analíticos, é parte constituinte das marcas de um autor interessado, como poucos, no trabalho investigativo e voltado para o desenvolvimento de um campo teórico e prático. É possível que um livro como esse só pudesse ser escrito na reta final de um longo percurso. Green nos oferece uma sequência de casos clínicos que analisou ou supervisionou. Material raro em seus outros livros (com algumas exceções, como o caso Gabriel do artigo "A posição fóbica central", publicado no livro La pensée clinique, de 2002), os casos nos aproximam do Green analista, de sua prática e de seus afetos como clínico. Bastante transparente em suas exposições de caso, Green anuncia esperar contribuir com sua experiência para ajudar outros analistas a "evitar certos erros ou mesmo certas ilusões"[15]. Para fundamentar essa contribuição, Green retoma elementos de trabalhos anteriores, estabelecendo aspectos constitutivos e condicionantes de sucessos e fracassos clínicos. O ponto central do livro converge para um grupo de questões: como abordar uma análise que não produziu, ao menos sobre o analista, a convicção de um sucesso? De quem foi a culpa? Trata-se de culpa, de incompetência, de inabilidade, de incompatibilidade ou de alguma outra coisa? Algumas respostas foram antecipadas no texto "Masoquismo(s) e narcisismo nos fracassos da análise e a reação terapêutica negativa", publicado em 1993 no livro O trabalho do negativo: Duas posições muito gerais dividem os sentimentos do analista confrontado com o fracasso: a projeção paranoica ("a falha é do paciente que era inanalisável, portanto responsável pelo resultado negativo da análise") e a autoacusação depressiva ("a falha é do mau analista mal analisado"). Essa segunda eventualidade, por ser mais disposta a reconhecer a parte do analista no fracasso do tratamento, não deveria enganar. Pois se poderia interpretar esse julgamento dirigido a si mesmo como resposta protetora à reprovação muito mais severa do outro. Nos dois casos, o sentimento de culpa é facilmente discernível. Surpreenderá também - além do fato de que os limites da análise não são levados em conta aí - a omissão pura e simples de qualquer referência à ignorância persistente em que nos encontramos quanto às possibilidades de mudança do psiquismo, como se não fosse preciso admitir que muitos recônditos dele permanecem desconhecidos para nós. [...] Se o papel do sentimento de culpa e do masoquismo foram há muito tempo reconhecidos no fracasso da psicanálise, o do narcisismo, ainda que pressentido, foi muito menos considerado[16]. Como insiste Green na sequência do texto, há um sentimento inconsciente do narcisismo culpado. Ou seja, é preciso admitir que "a relação com o objeto servia de disfarce para uma relação narcísica cuja meta final seria o questionamento, em seu princípio, da relação objetal enquanto tal"[17]. Mais ainda: "para a psique que prossegue esse trabalho jamais acabado de destruição, convém dividir pelo narcisismo e reunir pelo masoquismo"[18]. Para Green, são as seguintes as fontes do fracasso analítico: 1. a tenacidade das fixações; 2. a potência das pulsões destrutivas; 3. o caráter "solidificado" do masoquismo; 4. a dificuldade do ego em renunciar às suas defesas narcísicas arcaicas; 5. a rigidez das resistências. Green diferencia as verdadeiras "desilusões" do trabalho analítico daquelas que apenas causam decepções temporárias que acabam por se resolver. Por outro lado, as formas de reconhecimento de um sucesso analítico (tratados por ele como conquistas ideais que podem, em parte, ser realizadas no decorrer de uma análise) seriam: 1. a variedade, a diversidade e a riqueza dos investimentos, com uma prioridade para as relações com outrem; 2. a ausência de rigidez das fixações e defesas; 3. a suavidade e a mobilidade do funcionamento psíquico; 4. a capacidade de amar e também odiar sem se deixar levar por uma atitude passional; 5. a possibilidade de investir positivamente as duas imagos parentais; 6. uma convivência de partilha pouco conflitiva entre amar e trabalhar; 7. a possibilidade, quando as circunstâncias assim exigem, de fazer o luto sem que ele se torne interminável; 8. a faculdade de suportar as decepções e as frustrações, assim como o reconhecimento do privilégio de amar. Mas acrescenta ao final da enumeração dos elementos necessários para um pleno sucesso analítico: "Quem poderia pretender se aproximar de tal ideal?"[19]. Relato de um caso atendido por Green "São as lembranças de experiências decepcionantes, não más lembranças"[20], afirmou Green ao apresentar os casos que atendeu e que considerou fracassos. E, um pouco à frente, complementou: Pensando nos casos que relatarei a seguir, não tenho o sentimento de me arrepender de ter tratado esses pacientes, mesmo que muitas vezes tenha ficado impaciente diante de suas resistências ou tenha sentido decepção diante da obstinação que eles mostraram, em uma época em que ainda ignorava aquilo que depois viria a denominar de trabalho do negativo[21]. Assistimos a um autor consagrado realizando um claro exercício de elaboração de casos que ainda pedem pensamento e novas formas de compreensão: Eu deparei com esses casos muito cedo em minha carreira, em geral porque professores ou analistas mais velhos superestimaram minhas capacidades terapêuticas. Nunca me considerei um terapeuta capaz de grandes proezas, mas posso dizer que me esforcei em me manter um analista, sempre tendo em conta aquilo que eu imaginava serem as necessidades de meus pacientes[22]. Vê-se grande sinceridade e preocupação em oferecer um modelo de analista, em termos éticos e técnicos. "Não que hoje eu tenha sucesso onde no começo eu fracassei; mas tenho a impressão de compreender melhor a razão de ser de algumas angústias, assim como a necessidade de certas defesas, em pessoas que parecem não poder correr o risco de uma mudança que as exporia perigosamente"[23]. Ao lado de cada relato acompanhamos um trabalho de reflexão teórica e psicopatológica, com vistas a compreender casos que até o final da vida de Green parecem continuar enigmáticos. Relatarei um desses casos, acompanhado de um breve comentário crítico sobre os elementos em jogo na dinâmica do trabalho realizado por Green. Nanon - um enigma diagnóstico[24] A paciente de 23 anos foi indicada para Green por um colega lacaniano, de quem a paciente havia sido aluna no curso de filosofia na Sorbonne. Desde o início das aulas, o colega de Green havia notado a grande inteligência da jovem que, no entanto, fracassou nos exames orais por razões que ele denomina de "neuróticas". Esse fracasso causou uma ferida narcísica intolerável. Segundo Green, no começo da análise a paciente tinha um perfil neurótico caricatural: uma histérica provocadora, que suportava muito mal a passividade. Reagia ao analista com uma atitude fóbica e fugidia. Tinha uma relação fusional com a mãe, que por sua vez eclipsava o pai completamente. Logo depois do início da análise, a paciente tenta fazer com que Green vá atendê-la em sua casa, o que ele recusou. Ela o ameaçava pelo telefone, dizendo que iria denunciá-lo à Ordem Médica, por falta de assistência à pessoa em perigo. Depois, para ser perdoada, mandava flores à esposa de Green. A homossexualidade transbordava por todos os lados, segundo Green. Ela o provocava, buscando transgredir as regras fixas do enquadre. Inútil dizer, afirma Green, que uma análise é impossível nessas condições. Esse momento da análise é descrito como um "braço de ferro", em que a paciente precisava vencer sempre. Três anos após o início do trabalho, Green começa a falar em término, dizendo estar o contrato concluído. A paciente se opõe, reclamando de sintomas físicos que precisavam ser tratados. Sentindo-se culpado, Green recua quanto ao término da análise. A paciente não falta às sessões, mas continua a lutar contra o tratamento. A transferência continuava bloqueada, por meio das narrativas de suas projeções referidas à mãe. No divã, a paciente fechava as pernas. Green entendeu esse comportamento como uma proteção contra a fantasia de ser violada ou ao menos penetrada. Ela contava muitos sonhos que terminavam da mesma forma: sem penetração. A paciente apresentou novos sintomas físicos e deixou a mãe e o analista igualmente impotentes. Na transferência, torna-se cada vez mais difícil. Queixas recorrentes de estar sendo mal atendida e mal compreendida e novos telefonemas com ameaças. Começa a respeitar cada vez menos o enquadre, andava pela sala e ameaçava: "quero saber por que minha análise fracassou. Ou seja, por que você fracassou como analista?" Green passou a se envolver em discussões intermináveis e perdeu a neutralidade. De acordo com ele, nesse momento começam os maiores erros contratransferenciais, "em que fui pego na armadilha das atitudes negativas". Para Green, tornara-se impossível suportar a transferência raivosa. No total, o tratamento já durava 20 anos (durante os quais a paciente se formou em filosofia e depois em psicologia, pensando em entrar para o Instituto de Psicanálise da SPP). Green decidiu uma vez mais pôr fim à análise. A paciente se recusava a passar para o face a face, interpretando esta sugestão como sinal de fracasso. Green insistiu que terminassem a análise e a paciente começou a procurar outro analista. Ela fez o tour dos analistas de Paris, para lhes falar mal de Green e do quanto ele a havia maltratado. Encontrou analistas que a aceitaram em análise. Mas, a cada vez, ela não dava continuidade e interrompia. Acabou por encontrar um antigo amigo de Green, que a aceita em análise e por intermédio de quem ela tenta retomar a análise com Green. Green a recusa por achá-la fora do alcance de uma análise. Alguns anos depois, Green soube da morte de sua ex-paciente, aos 54 anos, pelos jornais. Ele comenta que esse caso mantém-se como um mistério para ele e entende, ao final, que o diagnóstico de histeria foi um erro. Contrariamente, acredita que a persistência de sua organização psíquica tenha revelado um narcisismo patológico caracteriopático e uma evolução psicossomática. Neste relato de caso, Green indica como causa do fracasso uma dificuldade contratransferencial e a impossibilidade de conter certas dimensões psíquicas atuadas pela dupla analítica. Segundo ele, possivelmente a hipertrofia da dimensão narcísica do analista em início de carreira contribuiu para isso, desejoso que estava de fazer jus à confiança nele depositada por colegas mais experientes. Enfim, pode-se reconhecer a presença de armadilhas do campo transferencial-contratransferencial, mas que parecem, nesse caso, efetivamente vinculadas às lacunas da análise do analista. É possível reconhecer, principalmente, que em casos como esse é o narcisismo do analista que interfere em sua escuta e o leva a atuar. Ao lado dessa hipótese, cabe reconhecer uma característica destacada por Green, nos pacientes "que parecem não poder correr o risco de uma mudança que os exporia perigosamente"[25]. O fracasso da análise seria resultado da impossibilidade da paciente de abandonar um modo de identificação primária. Estaríamos aqui diante de um limite do método, diante do limite do alcance terapêutico da psicanálise? É sem dúvida difícil saber onde começa o limite do método e até onde vai o limite do analista. Psicanálise ou psicoterapia? Destinos clínicos da psicanálise contemporânea Diante da imposição do fracasso, em vez de buscar uma reflexão metapsicológica à la Green, muitos analistas acabam tentados a afrouxar o setting, mesmo com as melhores intenções. Mas, como sugeriu o próprio Green: Longe de mim a ideia de contestar as vantagens da técnica face a face com relação às dificuldades de aplicação do método psicanalítico clássico. Foram vistas numerosas situações estagnantes em que só foi possível avançar o processo por meio do abandono do método clássico. Mas não é suficiente constatar resultados encorajantes para se renunciar a uma interrogação sobre as diferenças[26]. É no debate que envolve as comparações e a explicitação das diferenças entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica que Green procura se situar para investigar os impasses e os fracassos terapêuticos da psicanálise. Diferenças sugeridas por Green: 1. Nas psicoterapias face a face há uma alteração no poder metaforizante do enquadre (condição possibilitada pelo enquadre analítico para a transformação de uma conversa comum em um discurso metaforizado). 2. Nas psicoterapias face a face a terceiridade típica da relação analítica tende a ser substituída por uma relação a dois. 3. Nas psicoterapias face a face o enquadre perde a potência de instância paternal. Apesar ou em função dessas características do atendimento face a face, Green afirma que a indicação para esse tipo de tratamento possui um espectro amplo, diferente do maior grau de exigência que requer uma boa indicação de análise. Devido a isso, maiores fracassos podem ser esperados em psicanálises indicadas de forma imprecisa. No entanto, para ele, mais do que tudo, o que precisaria estar presente em uma psicoterapia para que ela se mantenha no campo psicanalítico é o enquadre interno do analista. Ou seja, se em uma psicoterapia psicanalítica não contamos com a segurança do enquadre clássico, é necessário que o analista garanta e seja sustentado por um enquadre interno. Este é definido por Green como: [...] o enquadre que ele [analista] internalizou no curso de sua própria análise e que, mesmo ausente do trabalho analítico em psicoterapia, não está menos presente no espírito do analista, regendo o limite das variações que ele autoriza, trazendo de volta a segurança das condições necessárias à continuação das trocas, etc. Esta noção de enquadre interno é uma aquisição essencial da análise de formação [didática] que deve, portanto, ser cuidada com grande rigor para que o processo de internalização se complete[27]. Entendo, nesse sentido, que o enquadre interno é, em última instância, o próprio analista em sua função de guardião do tratamento do paciente. Assim, a possibilidade de manter solidárias a instância metaforizante, a função simbólica de terceiridade e a instância paternal repousaria nas condições propiciadas pelo enquadre interno do analista. Ou seja, a partir de sua própria análise, o analista constituiu e introjetou uma capacidade de ausência e de negatividade, simultâneas à capacidade de presença implicada, mas discreta[28], que podem sustentar um tratamento bem-sucedido, mesmo na ausência das condições de enquadre consideradas ideais para um tratamento psicanalítico. As exigências contemporâneas para a realização desses tratamentos (pacientes mais graves, diminuição da frequência em função de limites financeiros e condições urbanas adversas) geraram a necessidade de experimentações e modificações técnicas. Nesse contexto, Green relembra e reconhece as tentativas de autores como Roussillon e sua proposta de uma conversa psicanalítica (acrescento a proposta de Ogden de um talking as dreaming), como formas de contornar o que faz obstáculo à efetividade do trabalho analítico. Apesar do tom cético e da forma como comenta o que seriam as ilusões depositadas sobre técnicas como as referidas acima, sustenta que é necessário buscar alternativas que mantenham vivo o ideal psicanalítico. Afirma: "Melhor conhecer o adversário que o analista terá que enfrentar do que desconhecê-lo mantendo ilusões destinadas ao fracasso"[29]. Talvez essa última frase de Green deva ser tomada, de fato, em seu caráter testamentário. É o desejo de um grande analista, em seu fim de vida, ver os desafios colocados para a psicanálise sendo levados a sério pelos próprios psicanalistas, tanto em seu cotidiano clínico quanto no trabalho de elaboração teórica. Para terminar, retorno aos dois aspectos indicados no início do texto como determinantes para a importância central de André Green na constituição de uma psicanálise contemporânea. A articulação permanente entre tradição e inovação revela ao mesmo tempo uma forma de trabalhar com a história do pensamento e da clínica psicanalíticos e é a marca registrada de sua própria contribuição criativa. Em outra esfera, a defesa intransigente de um modo específico de pesquisa, consoante com o objeto e as condições particulares do trabalho psicanalítico, não fez de Green um autor dogmático e fechado às contribuições de outras áreas de conhecimento. Mas, para ele, os limites e os eventuais enganos da psicanálise não se estabelecem em contraste com as qualidades inerentes às descobertas de outras áreas, como as neurociências ou a psicologia do desenvolvimento. É no interior do próprio pensamento psicanalítico que os analistas devem reconhecer os limites que precisam ser enfrentados. É no cerne da descoberta freudiana, da sexualidade ao inconsciente, e no seu confronto com as teorias pós-freudianas, que os analistas contemporâneos devem buscar a inspiração para as lutas e desafios a serem enfrentados e suplantados. Desse modo, a psicanálise em direção ao futuro proposta por Green não será jamais uma psicanálise que se dissolve pouco a pouco por influência de outras formas de conhecimento e de dispositivos clínicos, mas uma psicanálise que avança a partir de seus limites e do reconhecimento de sua própria história.
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