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Resumo
Escrevi estas linhas quando a morte de André novamente me colocou face a face com a perda de um ente querido. Mas desta vez foi diferente, pois o desaparecimento dele me fez também confrontar o meu próprio declínio e a perda dos meus investimentos mais importantes: amor, trabalho, projetos. Estas linhas são uma reflexão sobre este momento de guinada na vida, uma tentativa de lutar, por meio do pensamento, contra o desinvestimento mortífero.


Palavras-chave
investimento/desinvestimento; pulsão de morte; renúncia; envelhecimento


Autor(es)
Litza Guttieres-Green
é psiquiatra e psicanalista, membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris e da Sociedade Suíça de Psicanálise. Escreveu vários artigos sobre a histeria, a dor psíquica e o feminino. Entre 2010 e 2011, André Green estava terminando duas novas obras, inéditas no momento em que faleceu. A autora estabeleceu a edição final desses textos, cujo primeiro volume foi publicado em outubro de 2012, pela Éditions d'Ithaque, em Paris, sob o título: La clinique psychanalytique contemporaine.


Notas

[1]   S. Freud (1923), Essais de psychanalyse, p.?273. [Ed. bras.: "O Eu e o Id", Obras Completas, vol. 16, p.?72.]

[2]   A. Green (1982) Postface à Narcissisme de vie, narcissisme de mort, Minuit, 2007. [Ed. bras.: posfácio de Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p.?284.]

[3]   "Le travail du trépas", in M. De M'Uzan, De l'art à la mort: itinéraire psychanalytique, p.?182-99.

[4]   Da obra de Honoré de Balzac com o mesmo título, talismã feito da pele de um tipo de jumento, o onagro, que realiza os desejos de seu proprietário, mas que a cada desejo atendido encolhe e encurta a vida de seu dono, até a morte [nota da tradutora].

[5]   Ed. bras.: Freud: Vida e agonia. Uma biografia.

[6]   S. Freud-K. Abraham, Correspondance complète: 1907-1926.

[7]   E. Traverso, L'Intellectuel à Auschwitz: notes sur Jean Améry et Primo Levi, p.?99.

[8]   S. Freud, L'avenir d'une illusion (1927), p.?16 [Ed. bras.: O futuro de uma ilusão, p.?55.].

[9]   "Le Moi et le Ça", op. cit., p.?234. [Ed. bras.: op. cit., p.?27.]

[10]  B. Rosenberg, Masochisme mortifère et masochisme gardien de la vie.

[11]  "Mémoire" (1990), La Diachronie en psychanalyse.



Referências bibliográficas

Freud S. (1923/1981). Le Moi et le Ça. In: Essais de psychanalyse. Paris: Payot. [Ed. bras.: (2011) O Eu e o Id, trad. Paulo César de Souza. Obras completas, vol. 16. São Paulo: Companhia das Letras.]

Freud S. (1927/1995). L'avenir d'une illusion. Paris: puf. [Ed. bras.: (2010) O futuro de uma ilusão, trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&pm].

Freud S. ; Abraham K. (2006). Correspondance complète: 1907-1926. Paris: Gallimard.

Green A. (1982/2007). Narcissisme de vie, narcissisme de mort. Paris: Minuit. [Ed. bras.: (1988) Narcisismo de vida, narcisismo de morte, trad. Claudia Berliner. São Paulo: Escuta.]

Green A. (1990/2000). Mémoire. In La Diachronie en psychanalyse. Paris: Minuit.

M'Uzan M. de. (1977). Le travail du trépas. In De l'art à la mort: itinéraire psychanalytique. Paris: Gallimard.

Rosenberg B. (2003). Masochisme mortifère et masochisme gardien de la vie. In: Monographies de la Revue française de psychanalyse. Paris: puf.

Schur M. (1982). La Mort dans la vie de Freud. Paris: Gallimard. [Ed. bras.: (1981) Freud: Vida e agonia. Uma biografia. Rio de Janeiro: Imago.]

Traverso E. (1993). L'Intellectuel à Auschwitz: notes sur Jean Améry et Primo Levi, Bulletin de la Fondation Auschwitz.





Abstract
I wrote these lines when the death of André Green made me face the loss of a dear one. This time, however, with a difference: his departure led me to realize my own ageing, and the loss of my most important investiments: love, work, projects. this writing is a reflection on a tun=rning point in life, an attempt to fight, through the activity of thinking, against a deathly disinvestment.


Keywords
investment/disinvestment; death instinct, ageing.

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 TEXTO

Envelhecer, morrer

Ageing, dying
Litza Guttieres-Green

Depois da morte de meu marido, André Green, sempre que meu neto de cinco anos vinha me visitar, perguntava: "Mas onde está o André? Dormindo? Trabalhando?" Eu respondia: "Não, ele não está mais aqui. Morreu!" E meu neto continuava: "Tá, mas então, onde ele está?" E seu irmão mais velho, de sete anos e meio: "Eu queria ir com ele para ver o Paraíso!" Havia, portanto, um lugar em que essa criança conseguia imaginar o avô falecido! E esse é exatamente o lugar que todas as religiões nos proporcionam, oferecendo-nos uma esperança de sobrevida, uma explicação da morte: voltaremos a nos encontrar , para todo o sempre. Não sabendo o que dizer para aquelas crianças, percebi que eu tampouco entendia realmente o que é a morte. A morte não tem porquê, sejam quais forem as explicações biológicas ou racionais. A morte é algo que o inconsciente desconhece, é "um conceito abstrato de teor negativo", escreveu Freud em "O Eu e o Isso"[1].
 

Podemos dizer que, para o inconsciente, a morte não existe. Mas será que ela existe para o consciente? "O homem não pode saber o que é a morte, nem consciente nem inconscientemente"[2]. Face à morte dos entes queridos, experimentamos a recusa dessa realidade. O Eu clivado "sabe" que a morte existe, que a pessoa amada está morta, mas não acredita. Não consegue imaginá-lo. Assim como não imagina o infinito no espaço ou no tempo, o afeto não percebe o que a razão acredita saber. Sei que a morte existe, que não voltarei a ver aqueles que morreram, mas não acredito nisso. A morte é sentida como uma ausência. E, pouco a pouco, nos acostumamos a esperar. Os mortos continuam a viver em nossa memória de sobreviventes. Quando lutamos por um "dever" de memória, é por nossos mortos que lutamos. Porque não conseguimos aceitar essa injustiça, o desaparecimento deles. Eles se apagarão aos poucos, quando aqueles que os conheceram desaparecerem. Nos sonhos, é comum eles reaparecerem. Estão aqui, de novo, continuam jovens, enquanto nós envelhecemos com nossos cabelos brancos e nossa idade. Ficamos às vezes espantados de os ver, e perguntamos: "Onde você estava?" Eles não respondem e desaparecem de novo, deixando-nos perplexos.

 

Na verdade, é a nossa própria morte que não conseguimos imaginar nem representar. Como é possível abandonar a si próprio? De M'Uzan falou do "trabalho de falecimento"[3], renúncia à vida, às vezes precedida de um pico de vitalidade, de um desejo de se apegar, de encontrar um novo investimento, negação da velhice e da perda de esperança que ela implica.

 

A velhice vem nos preparar para essa renúncia final. Pouco a pouco, já "não vale mais a pena" viver a vida. Para aceitar a perda de tudo que nos importava, temos, primeiro, de suportar o viver. O declínio de nosso corpo transforma-o, de objeto valorizado, fonte de prazer, em fonte de preocupação, que conduz ao desligamento e ao nada. À medida que os investimentos diminuem como uma pele de onagro[4], o corpo-dor ocupa o primeiro plano. O narcisismo é atacado por todos os lados, e é preciso haver investimentos para evitar que desmorone.

 

Em La Mort dans la vie de Freud[5], Max Schur descreve a garra de Freud, a persistência, até o fim, de seu interesse intelectual, de sua vontade de continuar pensando, escrevendo, atendendo seus pacientes, apesar do sofrimento físico e das dificuldades externas, das decepções, do nazismo, da imigração, da perda de seu país e de seus familiares e conhecidos. Podemos, é claro, dizer que Eros era mais forte. Mas como e por quê? Numa carta dirigida a Abraham em 1924, ele escreveu: "Tenho, profundamente arraigada em mim, a certeza de meu fim próximo... uma espécie de depressão senil, centrada na distorção entre um desejo irracional de viver e o bom senso da resignação"[6]. Ainda sofreria por 15 anos até chegar à renúncia: "Não vale mais a pena". Sem qualquer crença num além consolador. Se Freud conseguiu superar tudo por tanto tempo, foi porque a psicanálise, sua obra, tinha se tornado a razão de continuar esperançoso, o objeto de amor que o fazia tolerar as perdas sofridas.

 

A velhice é sinônimo de castração, perda das faculdades psíquicas e físicas. Para os intelectuais, depois da perda da sedução, ela é a perda da capacidade de pensar, pois o prazer, a esperança, os projetos e as perspectivas estão relacionados com as sublimações. É nesse momento que o idoso, já não tendo um futuro para construir, volta-se para o passado, no qual lembranças tornam-se consolo. "A velhice", escreve Jean Améry[7], "nos torna... cada vez mais dependentes da lembrança. [O jovem] não é só o que é, é também o que será." Eu acrescentaria: um idoso é só o que foi.

 

Talvez isso explique o suicídio daqueles que, como Jean Améry e Primo Levi, sofreram o trauma da deportação. Não conseguiram enfrentar a ferida infligida pelo envelhecimento porque não tinham um passado para investir positivamente; tinham-lhes roubado a juventude. Para eles, era impossível enfrentar a irreversibilidade do tempo que passa e a castração derradeira representada pela proximidade da morte, como se repetissem a passividade insuportável já vivida no passado, e eles não pudessem se decidir a renunciar definitivamente ao que jamais viera a ser, ao que lhes tinha sido recusado.

 

Não somos todos iguais perante a velhice e a morte. Alguns aceitam seu destino, descobrem passatempos, compensações, resignam-se e até encontram paz na renúncia, quando, por fim, não precisam provar mais nada. Outros se empenham em encontrar prazer na vida restrita que agora lhes cabe. E a serenidade deles provoca nossa admiração e incredulidade. Não se queixam de nenhuma perda. Terão alcançado a sabedoria? Talvez apenas a aceitação de sua sorte, sem revolta, sem raiva, sem sentimento de injustiça, livres da inveja e da rivalidade para com aqueles que ainda lutam para viver - mas curvados sobre seu mundo passado. Pois, "tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar"[8]. Ela é uma alternância entre sensações de prazer de viver e sensações de sofrimento. "A dor", dizia Freud[9], "é uma coisa intermediária entre percepção externa e interna." Ora, com o envelhecimento, ela é principalmente interna. O objeto que sofre é o corpo próprio, é ele que inquieta e persegue. Torna-se um objeto de amor cujo abandono tememos e do qual cuidamos constantemente, numa espécie de relação sadomasoquista em que amamos nosso perseguidor. Para continuar gostando de si, é preciso erotizar o sofrimento físico, desfrutar assim mesmo, graças ao masoquismo de vida de que falava Benno Rosenberg[10]. (É comum ouvir, no ônibus, pessoas idosas se deleitando em contar suas doenças e visitas aos médicos...).

 

Há também aqueles que se revoltam, que se recusam a se resignar e que vivem seu declínio como uma desgraça insuportável, aqueles que não conseguem encontrar a paz, nos quais o padecimento físico destrói as reservas narcísicas, comprometidas pela imagem degradada que têm de si mesmos. O desprezo - que esconde a inveja do que eles imaginam que outros tiveram a chance de conseguir - não os impede de sofrer um desespero sem trégua. Isso porque o trabalho de desobjetalização necessário para haver luto é impossível: eles não conseguem se retirar da vida, não conseguem viver sem investir, e, por não conseguirem amar seu sofrimento, o ódio toma conta de tudo. Eles se odeiam, odeiam os outros: os médicos impotentes, as crianças que ousam viver a vida, as pessoas que os sucederam e todos os que os cercam. Ante sua fúria de viver, podemos pensar que, nessas pessoas, a pulsão de vida é mais forte que naquelas que se resignam, mas, na verdade, o que presenciamos é uma desintricação pulsional em que Tânatos triunfa, cortando os laços que tais pessoas mantêm com quem as cerca, acabando por destruí-las. O exemplo mais bonito disso é o do rei Lear, monstro de egoísmo patético. André Green escreveu:

 

[...] A velhice de um homem não é apenas o tempo passado de sua vida, todo o percurso que seu corpo fez - desabrochando para depois encolher até se apagar - do nascimento até a morte, mas a acumulação nele, pela lembrança, não só do que conheceu, viveu e guardou pessoalmente, mas também de seus vínculos com os outros: contemporâneos, ascendentes e descendentes, essa cadeia de vida que une seus mortos àqueles da sua estirpe que o sucederão[11].

 

Essa visão otimista da velhice ignora o caráter inelutável das perdas que se sofrerá. Quando as circunstâncias, os sofrimentos físicos ou os lutos fazem com que os laços se desmanchem, o desinvestimento costuma acarretar o reforço da pulsão de morte na forma da busca de paz, de nirvana, e por meio da evitação das perturbações ligadas a Eros.

 

Para André, enquanto os objetos de investimento continuaram satisfatórios e fonte de recompensas narcísicas, ele pôde superar as frustrações infligidas pelas doenças. O declínio do corpo era algo secundário. Ele não se queixava. O que importava era sua obra, o reconhecimento de que gozava, a música, a pintura, as sublimações. Até o fim, quando já tinha dificuldade de andar, ele ia ao museu, ao teatro, a concertos, à ópera e assistia a colóquios, onde tomava a palavra. Não podia renunciar a esses investimentos que lhe eram necessários, e lutava contra o cansaço, ignorando-o. Proust (O tempo redescoberto) achava que "a velhice é como a morte. Alguns a enfrentam com indiferença, não por serem mais corajosos que outros, mas por terem menos imaginação". Para André, não se tratava de falta de imaginação, mas da recusa a ceder ante a adversidade, da vontade de continuar apesar de tudo, de se proteger de uma depressão destruidora.

 

Envelhecer é também confrontar-se com repetidos lutos devido à morte dos contemporâneos. Nosso mundo vai se esvaziando aos poucos daqueles que amamos e de nossos valores. Sentimo-nos na linha de frente, tendo por único horizonte a decadência, a dependência e a morte. Agarrados a nossos hábitos, já não nos sentimos capazes de evoluir, de mudar de interesses e de modo de vida. Ficamos cada vez mais isolados, acuados. Sartre descreveu o inferno como esse "entre quatro paredes" que vai nos encerrando aos poucos, a antecâmara da morte. No melhor dos casos, resta-nos o espetáculo de nossa descendência, filhos ou alunos: eles vão continuar depois de nós, lembrar-se de nós, ser as testemunhas de nossa vida passada e da obra que deixarmos. Porém, para nos consolarmos, temos de ser capazes de nos identificar a eles, assistir à vida deles em vez de viver a nossa, aceitar ver nossas certezas e hábitos serem abalados.

 

Depois do acidente vascular que o levaria embora, André foi progressivamente renunciando ao que o fazia viver. Até aquele momento, continuava pensando e escrevendo. Inicialmente, esperava se recuperar e voltar à ativa, retomar suas atividades. Ainda lia no hospital, debatia com seus visitantes e ouvia música. Eu me perguntava se ele tinha entendido que já não havia esperança de recuperação, de que ele retomasse seu trabalho: escrever e ensinar. Foi quando já não deu para continuar que ele nos disse: "Chega!" Então a luz se apagou e ele se retirou do mundo dos vivos.

 

Cabe-nos agora aceitar sua ausência e preferir seguir vivendo... por um certo tempo.


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