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Resumo
Resenha de Lusimar de Melo Pontes, Tornar-se mulher: obstáculos em torno da feminilidade. São Paulo, Zagodoni, 2012, 144 p.


Autor(es)
Christian Ingo Lenz Dunker
é psicanalista, livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Fórum do Campo Lacaniano. Autor de Lacan e a clínica da interpretação (Hacker, 1996) e O cálculo neurótico do gozo (Escuta, 2002).

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 LEITURA

Sobre tornar-se mulher

[Tornar-se mulher: obstáculos em torno da feminilidade]


About becoming a woman
Christian Ingo Lenz Dunker

O trabalho de Lusimar Melo Pontes, originalmente sua dissertação de mestrado pela pucsp, possui forte potencial didático, tanto por apresentar de forma extensa e continuada um caso clínico narrativamente bem articulado, quanto por pensá-lo em sucessivas e articuladas camadas de consideração e conceito. O texto consegue reunir os tempos do caso, com os momentos de consideração do conceito em Freud e em Lacan. Fato raro entre trabalhos universitários, vemos que a construção de argumentos não se apresenta dissociada dos movimentos que lhes deram causa. A sua prudência é capaz de escapar do esquematismo empobrecedor. Não há triunfalismo clínico nem soberania estética da experiência, mas justa medida da experiência do caso.

 

A feminilidade aparece aqui como um drama existencial, movido pelo problema do reconhecimento da e na experiência dialética do tratamento psicanalítico. Os obstáculos não são apenas momentos de ultrapassagem rumo ao fim de análise, categoria tão fetichizada nos últimos tempos. São eles a essência mesma da experiência em seu limite interno e externo. É assim na esfera da demanda de reconhecimento, com suas respectivas suspensões, bloqueios e derrogações que a alienação do desejo surge como primeiro obstáculo à feminilidade. É assim que o déficit da expectativa de reconhecimento (inveja do pênis) marca o encontro feminino com a castração, segundo obstáculo. A realização subjetiva do gozo fálico aparece como terceiro obstáculo, agora histérico, à feminilidade. Este equívoco de falso reconhecimento ultrapassa em muito o tema da identificação, da reinvindicação imaginária e da reposição narcísica.

 

Retomando as formulações lacanianas sobre a chamada questão da mulher, Lusimar Pontes descobre como em todas suas incidências encontramos o tema da atribuição de existência. O problema maior não é saber o que é o falo, a mulher, o desejo ou a fantasia feminina envolvida na formulação da relação sexual, mas o que significa existir, ou seja, o que significa ser na expressão ser o falo. Quando perguntamos pelo reconhecimento da feminilidade em psicanálise, somos levados a reconsiderar, a cada vez, o que significa "existir". Existir pode significar reconhecer, ter reconhecido ou fazer reconhecer um desejo pelo Outro. Existir pode significar ser um objeto. Existir pode nos remeter a identificar-se em um significante ou uma imagem. Existir pode querer dizer gozar "em", "de" ou "fora" de um corpo.

 

Para enfrentar esta variedade da existência feminina, Lusimar Pontes aborda um caso clínico em toda sua extensão e detalhamento. O caso de alguém que não foi reconhecida como mulher no momento crucial de perda da virgindade, o que teria levado a um bloqueio generalizado da possibilidade de reconhecimento do desejo. Há algo no gozo feminino que resiste ao reconhecimento e a sua designação ostensiva. Ou seja, não é só o problema de que os pais e a cultura não confiram dignidade e existência simbólica à sua posição de mulher. É que há algo que nem eles e nem ela mesma pode reconhecer nesta experiência. Não se trata do dasein (ser-aí), mas do diese (ser-isto) que torna o feminino um problema.

 

Seria então a teoria psicanalítica da feminilidade uma inferência projetiva do sonho de curar a histeria? Seria o feminino nada menos do que a anti-histeria? O estatuto de desconhecimento da histeria pelos psicanalistas e psiquiatras que não acreditam mais na existência da histeria, como quadro único e integrado da multiplicidade de sintomas, apontaria para uma espécie de esgotamento do modelo histérico das aspirações de reconhecimento. Outra forma de pensar diria que a importância de advogar a unidade da histeria reside no fato de que é a partir desta unidade que podemos pôr à prova a fragilidade de nossa teoria do reconhecimento. Neste caso a ultrapassagem da teoria positiva, autorreferente e essencialista do reconhecimento exige a preservação desta forma de vida chamada histeria. Assim, há um parecer que substitui o ter. Mas há ainda um tipo de parecer (o semblante) que substitui o ser. O semblante feminino e o semblante histérico (mascarada) seriam o indexador clínico desta não existência. Descobrir que ser não é ser-fálico constituiria a dificuldade insondável e traço limite da histeria.

 

O segundo movimento do texto está baseado na importância da existência determinada por um olhar. Não é ainda o registro do reconhecer - ser reconhecida como mulher, mas o de reconhecer-se sendo reconhecida como e por um olhar anônimo, impessoal, despersonalizado. Aqui se trata de admitir que ser é ser para o Outro, que ser é inscrever-se no campo do olhar. Não existir é um momento dialético entre o pai destituído, cujo reconhecimento nada vale, e o reconhecimento objetal, por alguém que não pode mais ser um pai.

 

No terceiro movimento do tratamento e do livro não se trata mais apenas de existir para o olhar do Outro. Há outros modos de reconhecimento, modos pelos quais é possível ser sem existir, decaída como objeto menina dos olhos. Vemos neste momento como a paciente separa-se do masoquismo, da mascarada masoquista e da devastação materna ao suportar uma forma de gozar com este não existir.

 

O quarto movimento desta experiência de ser, que contém a não existência feminina, aborda o embate entre identificação e sexuação. Aqui o reforço da identificação é invertido e advertido pela falsa oposição: não ser mãe, não ser mulher, não ser como minha mãe. Ela é não existência, mas não existência como a mãe. Surge assim uma identidade patológica, que funciona como restrição ou barreira ao gozo feminino. Este fora-da-castração não é apenas um inexistente transcendental, que não afeta nem a cultura nem a linguagem, mas a entrada na ideia de não relação. É esta forma de inexistência interna que não cessa de não ser nomeada pela cultura. Nomeação insuficiente, equivocada e negada, de maneira a confundir a feminilidade com a natureza antifálica da qual fala Lacan.

 

No quinto movimento surge o reconhecimento precário e instável pelo Outro do amor. Aqui a existência aspira à universalidade. Ela não se constrange mais à sua particularidade-singularidade: ser como este, ser como esta, ser como isso, e suas negações recíprocas. É o drama feminino de que seu amor seja não só este amor, mas o amor generalizado e universalizado. Prova clínica que a dialética do reconhecimento não é um programa clínico de juventude em Lacan, que teria sido abandonado posteriormente. Aliás, é muito possível que parte substancial dos impasses de teorização da psicanálise lacaniana dos últimos tempos decorra do desconhecimento de que uma teoria do reconhecimento é condição necessária e inarredável para uma clínica psicanalítica.

 

Depois de uma temporada de trabalhos lacanianos sobre a feminilidade e a histeria, o trabalho reluzente de Lusimar Pontes nos ajuda a entender por que a histeria tornou-se um quadro extenso demais. É porque a feminilidade tornou-se um problema vasto demais, dada a crescente insatisfação com as soluções apresentadas por Freud e pelos incrementos lacanianos. É preciso separar quatro abordagens lacanianas da histeria, que são virtualmente compatíveis com ângulos de abordagem da feminilidade: o desejo histérico e o problema da incidência da castração feminina (privação), a identificação histérica e o problema da devastação feminina (masoquismo), o tema da estrutura histérica e a questão do gozo fálico (coordenado pela fantasia) e o tema do discurso histérico que nos leva à problemática do gozo feminino em sua relação com o simbólico (laço social) e com o real (sexuação). Lusimar Pontes consegue fazer um trabalho transversal, reunindo os últimos e os primeiros desenvolvimentos de Lacan, articulando com graça e elegância como a clínica bem feita nos permite ver com clareza os problemas teóricos que temos pela frente.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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