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AUTOR


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Autor(es)
Sérgio Telles Telles
é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor.

Carlos Guillermo Bigliani

Elias Mallet da Rocha Barros Barros
é psicanalista, membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da British Psycho-Analytic-Society.

Elizabeth Lima da Rocha Barros Barros
é psicanalista, membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da British Psycho-Analytic Society.


Referências bibliográficas

Fédida P. (1991). Nome, figura e memória. São Paulo: Escuta.

Fédida P. (1986,1989). Communication et répresentation. Paris: Presses Universitaire de France. [Tradução brasileira: Comunicação e representação. Escuta, 1989.]

Manfredi T. S. (1998). As certezas perdidas da Psicanálise Clínica. Rio de Janeiro: Imago.

Meltzer D. (1967). The psycho-analytical process. Perthshire, Scotland: Clunie Press.

Morin E.; Moigne J. L. L. (1999). L'inteligence de la complexité. Paris: L'Harmattan.




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 DEBATE

Debate clínico

Clinical discussion
Sérgio Telles Telles
Carlos Guillermo Bigliani
Elias Mallet da Rocha Barros Barros
Elizabeth Lima da Rocha Barros Barros

Sabemos que, em função de suas próprias características, a psicanálise não pode preencher os critérios de cientificidade usados em diversos campos do saber, especialmente os ligados ao que se convencionou chamar hard sciences, ou ciências exatas. Cabe a nós, psicanalistas, estabelecer critérios epistemológicos que deem conta da nossa difícil tarefa da desvendar o inconsciente. Um dos caminhos a serem seguidos com este objetivo é a discussão detalhada de casos clínicos nos quais fique exposta, de forma o mais transparente possível, a maneira como pensamos e elaboramos as hipóteses (interpretações) em nosso trabalho, e como julgamos sua correção a partir da resposta suscitada por elas em nossos pacientes, como classicamente foi estabelecido por Freud.

 

Inspirados na seção "O analista no seu trabalho", do International Journal of Psychoanalysis, propusemo-nos iniciar, em nossa revista, uma nova seção em moldes semelhantes. Dentre colegas experientes, convidaremos um para apresentar o material clínico da forma mais explícita possível e sem considerações teóricas, e dois outros para comentá-lo. Os três colegas não precisam ter prévias relações pessoais ou afinidades teóricas. Na verdade, o ideal é que não se conheçam e que tenham formações diversas, pois assim o debate ficará mais rico e interessante.

 

Que analistas veteranos se disponham a mostrar seu material clínico é um saudável exercício, pois bem sabemos que na maioria das vezes são os iniciantes que o fazem, nos procedimentos ligados à formação, como bem criticou Otto Kernberg num artigo que publicamos recentemente[1].

 

Nesta proposta, não apenas o analista expõe a maneira como trabalha, como aceita o comentário. Na medida em que os comentadores não se comunicam e não sabem o que cada um vai dizer, evita-se que qualquer um deles se deixe levar imaginariamente a ocupar a posição de poder própria ao supervisor. Cada um terá sua opinião cotejada com a do apresentador e do outro comentador. Desta maneira, todos ficam em pé de igualdade, cabendo ao leitor a apreciação (nos dois sentidos da palavra) deste trabalho conjunto.

 

material clínico de sergio telles

Sobre os antecedentes da paciente, a quem chamarei Marina, restringi-me a dados essenciais para que o leitor possa entender de onde me autorizo a fazer minhas intervenções.

 

Marina é uma mulher de mais de cinquenta anos e que está há algum tempo em análise. A queixa inicial era a interminável guerra conjugal com o marido devido a uma atitude "feminista" que mantinha em casa, exigindo dele uma absoluta equivalência frente aos encargos domésticos, que não levava em conta os compromissos de trabalho do marido como profissional liberal. Mantinha esta mesma postura militante em seu trabalho como advogada, o que lhe gerava não poucos contratempos. Marina julga-se uma mulher independente e preza muito esta sua condição. Sua infância foi fortemente marcada pela irresponsabilidade do pai, que abandonou a família, deixando-a numa situação financeira muito precária, e pela preferência que a mãe sempre manifestou pelo irmão mais velho. Tais circunstâncias fizeram-na sair de casa muito cedo, por volta dos 20 anos. Passou a manter com seu próprio trabalho o estilo hippie de vida que adotou. Na faculdade conheceu Luís, com quem se casou há quase 30 anos e com quem teve um casal de filhos. Apesar de muito qualificada e bem posicionada em sua carreira, Marina não tem uma boa remuneração. A alta qualidade de vida que a família mantém é fruto basicamente dos rendimentos do marido, de longe o maior responsável pelo orçamento familiar. No momento, Marina vem à análise uma vez por semana.

 

Na sessão que passo a relatar, Marina chega e logo diz que havia descoberto, naquele dia mesmo, que Luís estava tendo um caso com uma menina de 20 anos. Estava ela arrumando a casa quando, por acaso, encontrou em cima de uma estante uma caixa de fósforos de propaganda de um motel. Tal descoberta imediatamente a fez lembrar-se de que no mês anterior havia visto o débito de um motel na conta do cartão de crédito que usa junto com Luís.

 

Até este instante estou escutando em silêncio o que Marina diz e registro que ela não havia me falado, como seria de esperar, sobre a conta do motel, fato ocorrido - como ela acaba de dizer - há mais de um mês.

 

Ela continua, dizendo que mostrou a Luís a caixa de fósforos junto com a nota do cartão de crédito com a conta do motel, perguntando-lhe o que aquilo significava. Atrapalhado, ele respondeu que a conta do motel era da última vez que ali haviam estado juntos. Como havia muito tempo, talvez anos, que os dois não iam a um motel, a resposta de Luís era um contrassenso, uma evidente mentira. Marina ficou tão desconcertada com isso que resolveu não insistir mais no assunto naquele momento. Mas, como ficara ainda mais desconfiada, quando Luís saiu para o trabalho, foi vasculhar o computador dele, fazendo uma descoberta que a deixou ainda mais surpreendida - encontrou uma troca de e-mails amorosos entre ele e uma mulher. Viu também outros e-mails de um hospital para Luís, com exames médicos de uma outra mulher.

 

À noite, ao confrontar Luís com essa troca de correspondência, ele confessou que conhecera num congresso uma jovem recepcionista gaúcha, cuja inteligência muito o impressionara. Fizeram amizade e ele logo ficou conhecendo a precária situação financeira em que ela e sua família viviam, o que a impedia de continuar os estudos numa faculdade particular. Penalizado, dispusera-se a pagar seus estudos e a ajudar o tratamento de sua mãe doente, o que a moça aceitara. Luís disse ainda que não tinha tido nenhum envolvimento sexual com ela, que estava agindo desinteressadamente. Perplexa com o que ouvia, Marina lembrou-se dos e-mails com os exames médicos de um hospital e perguntou de quem eram. Luís disse que eram justamente da mãe da moça.

 

A história toda era inacreditável e Marina se mostra completamente confusa, angustiada, raivosa, sem saber o que fazer. Não sabe se deve romper ou não o casamento.

 

Com exceção de uma ou outra pergunta para entender melhor seu relato, eu escutara Marina em silêncio, percebendo sua angústia e tristeza. Digo-lhe que é compreensível que esteja confusa, ferida e magoada, sem saber o que fazer. E se não sabia o que fazer, talvez o melhor fosse não fazer nada até poder pensar com mais calma sobre a situação. Com esta intervenção, meu objetivo era mostrar-lhe que eu estava atento a seu sofrimento, bem como oferecer-lhe alguma contenção, pois, contratransferencialmente, temia que ela pudesse agir de forma intempestiva, complicando ainda mais a situação com uma possível atuação de sua parte. Vendo sua angústia, ofereço-lhe uma sessão extra no dia seguinte, o que ela aceita.

 

No final da sessão, procurei reconstruir a cronologia dos fatos, expostos de forma um tanto desorganizada por Marina. Entendi que cerca de um mês antes ela vira a conta do motel e nada falara - nem para o marido nem para mim, o que entendi como uma expressão maciça de negação, possivelmente decorrente do susto provocado por sua descoberta e pelo temor das consequências que ela poderia desencadear, caso confrontasse o marido com o fato. No dia anterior ao desta sessão, encontrara a caixa de fósforos de propaganda do motel e este inesperado achado rompera com a negação, trazendo de volta a lembrança da conta do cartão de crédito e forçando-a a conversar sobre tudo isso com o marido. Ao abordá-lo e receber sua descabida resposta, Marina recua, pois percebe o desconcerto do marido e teme que a situação piore caso prossiga a conversa. Mais desconfiada ainda, vai remexer no computador de Luís, encontrando os e-mails comprometedores, que a levam a confrontá-lo mais uma vez. Impossibilitado de negar os fatos frente às evidências, Luís cria uma história inacreditável - a que tinha ficado com pena de uma pobre gaúcha que encontrara num congresso, a quem resolvera ajudar nos estudos e no tratamento médico da mãe. Penso que Marina luta entre enfrentar uma dura realidade ou continuar negando, aceitando as explicações desconjuntadas do marido.

 

Na sessão do dia seguinte, Marina diz que tentara falar com Luís novamente sobre o assunto, mas ele se recusara, acusando-a de invadir sua privacidade ao vasculhar seu computador, quando encontrou os e-mails comprometedores. Ela retruca dizendo que ele quebrara o contrato de confiança que havia entre eles. Mais tarde, Luís ligou-lhe do trabalho para saber como ela estava. Alegando que havia feito uma gentileza ao ligar, acusou-a de não se importar com ele, pois, como havia luxado o pé esquerdo três semanas antes, esperava que ela também fosse gentil e perguntasse como ele estava. A conversa terminou azedando numa grande discussão.

 

Marina diz que Luís se acha muito importante e poderoso, gosta de se ver como o benfeitor e protetor de jovens pobres e desamparadas. Lembra a satisfação que ele mostrava em ajudar várias jovens que trabalharam para ele, e a quem passava a odiar quando elas resolviam seguir seus próprios caminhos, pois via isso como uma traição ou prova de ingratidão por parte delas. "Isso é uma coisa típica dele, dos homens, eles são traidores. Usam do dinheiro e do poder para se aproveitar das mulheres pobres e indefesas, e ainda acham que são protetores" - diz Marina.

 

Estou ouvindo o que Marina me conta e percebo que estou um tanto surpreso, pois imaginava que ela continuaria hoje tão angustiada e confusa quanto estava no dia anterior. No entanto, ela está calma, falando com relativa tranquilidade, como se não estivesse no meio do que me parecia se configurar como uma grande crise conjugal. Lembro-me de que no dia anterior ela me dissera que os primeiros indícios desta situação - a conta do motel - foram detectados um mês antes e que ela nada dissera em análise. Levando em conta sua postura feminista militante, era de esperar que mostrasse alguma indignação mais veemente e não o calmo relatório que me fazia. Tudo isso me fazia pensar novamente que, frente aos fatos do dia anterior, Marina continuava defendendo-se, fazendo uso dos mecanismos de negação e dissociação, confirmando a impressão que eu tivera no dia anterior. Vejo também que ela faz um recorte muito preciso nos acontecimentos que me relatara no dia anterior. Não privilegia o que - a meu ver - era o mais grave e angustiante, a forte possibilidade de que o marido estivesse tendo um caso com uma menina de 20 anos, e os efeitos que essa descoberta poderia ter em seu casamento. Parecia-me que ela fazia um deslocamento, focando sua atenção na inacreditável desculpa que Luís lhe dera, acreditando que ele caridosamente ajudava os estudos e a família de uma pobre moça inteligente. Que Marina desse crédito a uma desculpa tão frágil parecia-me claramente sintomático.

 

Digo-lhe então que me chama a atenção que ela se aferre ao aspecto de Luís como "benfeitor ou protetor de jovens pobres e desamparadas", o que, no contexto, era uma desculpa esfarrapada para ocultar sua infidelidade, consequentemente algo que - como ela mesma dissera no dia anterior - não merecia qualquer crédito. O importante é que Luís esteja desinteressadamente pagando os estudos de uma jovem desamparada, ou que esteja tendo um caso com ela? - pergunto.

 

Marina nada diz e eu fico pensando por que Marina estaria fazendo este deslocamento, enfatizando que Luís gosta de ajudar pobres mocinhas, negando-se a ver as possíveis implicações sexuais disso. É quando lembro que existe uma significativa diferença social entre a família de Marina e a de Luís. De certa forma, poder-se-ia dizer que Marina era uma "mocinha pobre" ao se casar com Luís. Dou-me conta de que a diferença social entre eles poucas vezes fora trazida diretamente nas sessões. Penso que isso poderia justificar o deslocamento, pois, por esta via, Marina estaria então falando de um importante e reprimido aspecto de sua relação com Luís.

 

Como se não tivesse ouvido o que eu dissera, Marina volta a falar. Pede-me que a oriente, pois ainda não sabe o que fazer. Sente-se uma idiota, tola, cândida, ingênua. Diz que acreditava em regras que há muito não mais existiam entre eles. Luís é um homem não confiável, continua ela. Tem problemas com mulheres, pois sua mãe é uma mulher autoritária, que se mete em tudo. Agora mesmo, com a luxação no pé sofrida por Luís, ela o deixava irritado ao dizer que o médico era incompetente e iria aleijá-lo. Marina acha que Luís tem medo das mulheres fortes e decididas como a mãe e ela mesma, reafirmando seu poder "salvando" mocinhas pobres. Diz que, apesar de estar sentindo-se tão mal, nada havia falado para sua mãe, que estivera em sua casa no dia anterior.

 

A fala de Marina continua na linha de ignorar que o marido poderia estar traindo-a, focada que está no hábito dele de salvar mocinhas pobres, o qual interpreta como uma forma de contrabalançar os sentimentos desencadeados pela figura forte e poderosa da mãe que sistematicamente o infantiliza. Ao mencionar sua própria mãe, a quem nada dissera do que está ocorrendo, Marina me faz lembrar novamente da difícil situação financeira de sua família de origem.

 

Digo-lhe que sei que ela está com um problema que gostaria de resolver com urgência e que o que vou dizer talvez lhe pareça distante de suas preocupações imediatas, mas é algo que acho importante examinar, pois talvez tenha uma ligação com o que ela está vivendo no momento. Digo-lhe que, quando ela enfatiza tanto que Luís gosta de "salvar moças pobres", isso me faz pensar que, em relação ao Luís, poderíamos pensar que ela era uma "moça pobre". Será então que a descoberta da infidelidade do Luís acorda nela lembranças de quando era a "moça pobre" a ser salva pelo namorado "rico", memória que ela mesma oculta atrás de uma postura de excessiva autonomia e independência com a qual gosta de se apresentar para si mesma, para o Luís e para os demais? Se assim for, como isso estaria interferindo na situação atual? Pode condenar o Luís por querer salvar a "moça pobre"? Pode condenar a "moça pobre" por aceitar a ajuda financeira do Luís? Ela mesma não teria agido de forma semelhante a ela?

 

Marina inicialmente parece surpresa e não aceita o que digo. Não se reconhece nesta construção, mas logo volta atrás e termina por dizer que, de fato, havia um desnível nas famílias e que Luís realmente a ajudara muito e a incentivara em toda a sua carreira profissional.

 

Retomo minha construção, propondo-lhe que talvez se sinta ainda mais confusa sobre o que fazer com a infidelidade de Luís por se sentir como a "moça pobre" ajudada por ele; talvez se veja no lugar dela, em dívida com o Luís. Como pode exigir explicações dele? Marina concorda, diz sentir-se devedora dele e que ele às vezes cobra, lembrando o quanto a ajudou, o tanto que ela conseguiu por causa dele.

 

A esta altura, a construção que eu estava fazendo se amplia em minha mente, pois lembro que Marina mostra habitualmente uma atitude de grande autonomia e independência em relação a Luís, apoiando-se na habitual postura "feminista" de negar qualquer situação que possa remeter a dependência, sempre confundida com submissão ou inferiorização. Mais ainda, nas sessões sempre se refere a Luís como uma criança mimada, desorganizada e bagunceira, sendo ela a figura forte e dominante que organiza e planeja tudo em casa. Penso que seu comportamento fálico e competitivo pode ser uma formação reativa contra a dependência e voracidade oral em relação a Luís. Tento transmitir-lhe esta ideia, dizendo-lhe que estes aspectos da diferença social entre eles pouco haviam aparecido diretamente na análise. Talvez seja difícil reconhecer a dívida, o quanto recebeu de Luís; talvez veja isso como uma submissão humilhante; talvez por isso negue o reconhecimento e mostre uma atitude desafiadora, "feminista". Talvez ela se sinta dependente de Luís, ainda se sinta a "jovem pobre" protegida pelo homem "rico". Como lhe é penosa esta percepção de fraqueza e pobreza, de desamparo e dependência, a esconde atrás de uma aparência de autonomia e independência. Mais ainda, o saber que Luís está tendo um caso talvez deixe esse seu lado muito assustado, como uma criança que pode ser abandonada pela mãe. Esse lado fica não só assustado, mas também com muita raiva por essa ameaça de abandono.

 

Ela diz que é possível que seja assim. Digo que é importante ela se dar conta disso, bem como da forma como se comporta com o marido, pois sempre o trata aqui como uma criança mimada, sendo ela a mãe forte e poderosa, que resolve tudo. É a imagem contrária de uma "jovem pobre" dependente e necessitada de proteção, da criança que precisa ser cuidada e alimentada.

 

Marina diz que precisa falar com Luís sobre o que aconteceu e ele não quer discutir, alegando estar com dores no pé por causa da luxação. Digo-lhe que possivelmente Luís deve estar tão confuso e atrapalhado como ela frente aos últimos acontecimentos; falar do pé doente é uma desculpa até ele se recompor e poder conversar. É possível que ambos estejam com dificuldades para abordar o assunto.

 

Volto a pensar que a atitude dissociada de Marina, utilizando nesta sessão uma argumentação pertinente, mas fria, intelectualizada, negando a gravidade da situação, possivelmente refletiria o medo dos afetos despertados pela descoberta da infidelidade em seus aspectos infantis dependentes, em seu lado "moça pobre", que poderia desencadear um intenso ódio vingativo contra Luís.

 

Marina então me conta um pesadelo que tivera nos poucos momentos em que conseguira dormir naquela noite.

 

Parecia um filme de terror. Estava ela num lugar desconhecido, acompanhada de muita gente, quando ouve dizer que havia aparecido ali um boneco que se transformara num monstro e ele iria matar a todos. Em pânico, as pessoas procuram fugir, mas sabia-se que não havia escapatória, ele mataria e devoraria a todos. Marina se tranca num lugar cujo acesso só é possível atravessando-se vários aposentos fechados com portas grossas de madeira, "como as de seu consultório", acrescenta. Marina não se sente a salvo, pois percebe que o boneco-monstro vem atrás dela, destruindo as portas com grandes dentadas e mordidas, até chegar aonde ela se encontra. Quando se veem frente a frente, ambos se acalmam e se sentam no chão, passando a brincar com bolhas de sabão como duas crianças. Apesar de mais tranquila, Marina continuava temerosa, pensando que o boneco poderia, a qualquer momento, voltar a ficar com raiva e matá-la.

 

Para mim, o sonho é uma confirmação de minhas hipóteses de que tomar conhecimento de que Luís estava tendo um envolvimento com uma "moça pobre" mobiliza em Marina fantasias até então reprimidas na análise, possibilitando o surgimento de desejos orais dependentes em relação a Luís, bem como o correspondente ódio ao ver ameaçada a satisfação de tais desejos habitualmente ocultados atrás de uma fachada fálica.

 

Digo-lhe que, frente à descoberta da infidelidade do Luís, ela se sente muito ameaçada, como a "moça pobre" que pode perder o protetor, ou como uma criancinha abandonada pela mamãe. Cheia de ódio, quer matá-lo, comê-lo, quer matar a todos. O boneco assassino bem representa esse seu lado agressivo infantil. Digo-lhe ainda que é interessante que o boneco se acalme depois de comer as portas de madeira "como as do consultório". Talvez ela se sinta mais calma agora, depois de conversarmos, sem tanto medo do que lhe vai ocorrer se perder o Luís para a "moça pobre" gaúcha, sente-se menos subjugada à fantasia de correr o risco de morrer de fome caso isso ocorra ou de que, tomada pelo ódio, venha a matar Luís. Penso, e registro para dizer-lhe noutra ocasião futura, que a menção às portas do consultório destruídas pelo boneco-assassino apontariam para sua voracidade em relação a mim mesmo, à análise, e para o ódio que sente por não estar a porta do consultório sempre aberta para satisfazê-la imediatamente quando quisesse, e que tenha de esperar os momentos regrados em que ela se abre para recebê-la.

 

Marina fica calada. Nosso tempo se esgota e pergunto-lhe se ela gostaria de ter outra sessão extra ainda naquela semana, o que ela aceita.

 

Sessão seguinte - Marina chega agradecendo minha "sabedoria" e disponibilidade para lhe dar sessões extras, o que - diz - a teria feito "segurar a onda". Diz ter conversado bastante com Luís e que ele a tranquilizara, dizendo que nada de errado acontecera, que a intenção dele era simplesmente ajudar a pobre menina gaúcha e sua família.

 

Tudo havia ficado resolvido entre eles. Marina diz que inicialmente se sentiu muito aliviada, mas depois se surpreendeu com o forte sentimento de decepção que a acometeu. Havia imaginado o rompimento do casamento e ficara excitada antevendo uma vida completamente diferente, sem as obrigações atuais. Seria uma mulher livre, "de volta ao mercado". Via-se fazendo parte de um grupo de amigas divorciadas e solteiras que se reúnem com regularidade e que parecem se divertir muito. Como tudo ficara resolvido, tudo voltava à vidinha de sempre. Está simultaneamente aliviada e deprimida com o desfecho de tudo.

 

Vemos que frente à ameaça de rompimento com o marido, o que a faria defrontar-se com seus aspectos mais regressivos orais devoradores agressivos, com seu ódio assassino infantil representado pelo boneco-assassino, Marina recua. Aceita as desculpas esfarrapadas e negações do marido, finge acreditar nelas. Isso lhe provoca simultaneamente alívio e decepção, pois esta decorre da percepção de não ter enfrentado a verdade de seus sentimentos. O que Marina teme não é apenas o abandono do marido visto com olhos infantis, e sim a intensidade do ódio assassino desencadeado pelo abandono, como mostra no sonho o boneco-monstro incontrolável, que mata a todos.

 

O recuo de Marina não significa que o trabalho analítico feito até então tenha sido em vão, apenas mostra que ainda há muito a ser feito. Marina teve um vislumbre de aspectos arcaicos de seu psiquismo boneco-assassino que estão atualizados em sua relação com o marido. O caminho agora está aberto para desenvolvimentos posteriores, quando poderá ela se posicionar de forma mais adulta com o marido - sem tamanha dependência oral camuflada por abundantes falicismos.

 

A observação de que o falicismo de Marina ocultava fortes impulsos orais não revela novidades, apenas confirma um velho axioma teórico. Isso não deve ser menosprezado, pois tais confirmações reforçam o conhecimento estabelecido.

 

comentários de carlos guillermo bigliani

1) Deixando de lado as muitas coincidências com as interpretações do material feitas por Sergio Telles, vou propor algumas ideias que surgiram a partir de suas colocações, visando assim colaborar com a intenção clínico-teórica e pedagógica contida no convite da Percurso.

 

2) ...antecedentes da paciente, a quem chamarei Marina, restringi-me a dados essenciais para que o leitor possa entender de onde me autorizo a fazer minhas intervenções...

Que os "antecedentes" (e aqui os "antecedentes" se referem à história cronológica da paciente) pareceriam permitir-nos ver desde onde surgem as intervenções pode pressupor, ainda que eu saiba que o autor não pensa assim, que a partir da história as intervenções adquirem valor científico ou se autorizam. Se, às vezes, as intervenções, notadamente as construções, dão sentido a um segmento da história do paciente, outras vezes o recurso à história pode servir para obscurecer o impacto da interpretação em toda sua vigência ou intensidade transferencial, sendo a interpretação desta última o que autoriza e o território a partir do qual surgem as intervenções do analista[2].

 

3) ...atitude "feminista"...

Aqui valeria a pena se perguntar se a atitude feminista corresponderia a uma posição machista do marido, desde que os dois têm uma profissão liberal e então poderia corresponder a ambos a realização de tarefas do lar, sem que isso necessariamente seja uma reivindicação feminista. Também seria interessante ter outros exemplos desta característica de Marina, visando confirmar se esta atitude "feminista" teria algo a ver com o que Freud chama de "corrente mais profunda" da histeria: uma identificação masculina que entraria em rivalidade com Luís.

 

4) ...e lembrou que no mês anterior havia visto o débito de um motel na conta do cartão de crédito que usa junto com Luís...

Não deixa de ser curioso o fato de que tenha permanecido sob efeito da repressão uma percepção como essa. Se Marina deixou passar um dado tão gritante quanto uma conta de motel, isso pode nos oferecer diversas linhas para pensar, entre as quais a ideia de quantas outras marcas de infidelidade menos grosseiras ela teria deixado passar sem perceber não é a mais descartável. Por que teria agido assim? Por narcisismo, que faz que só enxergue a si mesma, por "belle indiferènce" histérica? Para não sofrer uma vivência de humilhação que teme não poder suportar? Por tudo isso junto? Veremos...

 

5) ...(ele falou que a) conta do motel era da última vez que ali haviam estado juntos. Como havia muito tempo, senão anos, que os dois não iam a um motel, a resposta de Luís era um contrassenso...

Esse tipo de resposta que envolve uma mentira flagrante ou uma incongruência tamanho elefante nos lembra da anedota freudiana da panela que o sujeito devolve quebrada e responde à cobrança dizendo que já estava quebrada quando a recebeu emprestado, e que aliás a devolveu em perfeito estado e que, no final das contas, não sabia de que panela estavam falando, já que nunca tinha recebido nada emprestado. Não é infrequente que invasões de processos de pensamento inconsciente como este, em que impera o princípio de não contradição, ocupem a consciência (em geral e em especial) nas discussões entre casais, mas é mais frequente que o façam neste tipo de situação extrema, visando apagar um fato inadmissível ou constrangedor. E às vezes com "ótimos" resultados, desde a perspectiva de um pacto de denegação conjunta que envolve tudo o que os casais têm que negar para permanecer juntos. Para Marina essa negação permitiria continuar a gozar de uma vida de alto poder econômico que não alcançaria só com seus ingressos ("hippies" ou adolescentes?), o que pode ser parte de uma dimensão em que se manifesta uma relação "filial" com Luís. O que se complementaria muito bem com o fato de Luís ter "outra" mulher, mãe imaginária para Marina, montando assim uma configuração que lhe permitiria continuar realizando seu ciclo adolescente que pode ter ficado inconcluso ao sair de sua casa para trabalhar com seus 20 anos.

 

6) ...Vendo sua angústia, ofereço-lhe uma sessão extra no dia seguinte, o que ela aceita...

Aqui se abre toda uma série de problemáticas que incluem aspectos técnicos e transferências que, como sempre, estão imbricados. Em primeiro lugar é importante lembrar que as análises de 5 ou 6 vezes por semana, tal como eram praticadas por Freud, ou as análises "didáticas" de 4 vezes como exigem as associações oficiais (ritmo porém desrespeitado em muitas delas!) e até as clássicas análises "terapêuticas" de 3 vezes por semana estão a caminho do desaparecimento. Cada vez são mais frequentes as análises que, pelas mais diversas razões (econômicas, urbanísticas, resistências até do próprio analista, etc.), transcorrem com uma ou duas sessões semanais. Mas essa mudança técnica exige alerta por parte dos terapeutas, especialmente frente às situações de crise. A sensibilidade e experiência do terapeuta que conduz este tratamento lhe permitem detectar imediatamente a necessidade de dar contenção à paciente numa situação como a presente, independentemente de depois ter que revisar as emergências transferenciais e contratransferenciais que podem incluir desde fantasias de maternagem até fantasias de encontro erótico-retaliativo com o terapeuta, que poderá até ser transformado no "menino de 20" de Marina.

 

7) ..."Usam do dinheiro e do poder para se aproveitar das mulheres pobres e indefesas, e ainda acham que são protetores" - diz Marina... Marina continuava defendendo-se, fazendo uso dos mecanismos de negação e dissociação, confirmando a impressão que eu tivera no dia anterior. Não privilegia o que - a meu ver - era o mais grave e angustiante, a possibilidade de que o marido estivesse tendo um caso com uma menina de 20 anos e os efeitos que essa descoberta poderia ter em seu casamento...

Aparentemente aqui e até esta altura parece existir um parcial mal-entendido entre terapeuta e paciente (ou entre o comentarista e o material apresentado!!) desde que Marina não parece negar completamente a situação, pois pensa que a atitude de benfeitor assumida por Luís encobre um programa de abuso da jovem Lolita. Tenho a impressão de que o terapeuta não consegue aceitar o fato de que Marina esteja tão aparentemente reestruturada a ponto de parecer, nesta altura da sessão, não estar precisando dele, como se o papel de "benfeitor" que o terapeuta talvez imaginasse assumir ficasse estragado por esta aparente independência, autossuficiência e espírito combativo de Marina. Ou talvez porque o terapeuta estava sentindo dolorosamente o que Marina não queria sentir: que ela era prescindível e que o marido se virava perfeitamente sem ela!

 

8) ...A fala de Marina continua na linha de ignorar que o marido poderia estar traindo-a, focada que está no que considera como um hábito dele de salvar mocinhas pobres, que interpreta como uma forma de contrabalançar a figura forte e poderosa da mãe, que sistematicamente o infantiliza...

Continua a ignorar ou o fato de que Luís se está "aproveitando" va sans dire? Ela mesma não fala que ele se aproveita? Mas os processos de se aproximar ao traumático são assim: percebe-se e nega-se alternativamente. Nessa negação ela se transforma em analista de Luís e do vínculo com sua mãe, ou em Lolita do terapeuta, ou transforma o terapeuta em seu "Lolito" ou nega também na ocultação que faz do fato perante a sua própria mãe. Claro que a negação permite a modulação de sentimentos de humilhação, depressão, ódio. Estes sentimentos de ódio também se expressariam como formação reativa na aparente proteção que Marina faz de Luís frente aos supostos "desejos ocultos" que acredita ver nas "cruéis" preocupações da mãe de Luís de que o médico dele o deixe aleijado em uma de suas extremidades. E pode bem ser que seja Marina quem está habitada por esses desejos de aleijar as extremidades de Luís, ainda que talvez não precisamente a extremidade usada para caminhar!

 

9) ...Penso que isso poderia justificar o deslocamento, pois, por esta via, Marina estaria então falando de um importante e reprimido aspecto de sua relação com Luís...

O terapeuta parece aqui estar mostrando que o objetivo do deslocamento seria falar do que ainda não pode manifestar-se no curso do tratamento. Pode ser, mas acredito que sua preocupação visa transformar-se em analista do Luís e não ser a paciente que sofre por uma infidelidade dele. Ainda que nesse seu método para reprimir a dor se manifeste algo do reprimido...

 

10) ...Pede-me que a oriente, pois ainda não sabe o que fazer. Sente-se uma idiota, tola, cândida, ingênua...

Aqui Marina pede orientação: deposita no terapeuta a decisão do que fazer, já que ela seria incapaz de fazê-lo por se tratar de alguém idiota, cândido ou ingênuo. Será que ela quer colocar as coisas em termos de um terapeuta protetor e ela uma coitada interiorana chegando ao desconhecido mundo da infidelidade e à procura de um protetor?

 

11) ...(a paciente)Não se reconhece nesta construção (de que, no passado, Luís pode também ter sido seu salvador, dada a diferença econômico-social inicial entre eles), mas logo volta atrás e termina por dizer que, de fato, havia um desnível nas famílias e que Luís realmente a ajudara muito e incentivara em toda sua carreira profissional...

Às vezes, nestas situações é difícil dirimir se a construção formulada provoca: a) um insight; b) um efeito melancolizante, tipo "você só quer seu pai para você e não se importa com suas irmãs (Lolita!!)" ou c) se a construção, em vez de permitir que se abram novos caminhos associativos, produz um efeito obliterante para a emergência de outro material, por exemplo de novos conteúdos agressivos. Who knows?

 

12) ...desculpa esfarrapada... a inacreditável desculpa, acreditando que ele caridosamente.... O importante é que Luís esteja desinteressadamente pagando os estudos de uma jovem desamparada ou que esteja tendo um caso com ela?...

O terapeuta aqui aparece para o espectador externo como tomado por uma irritação grande com Luís. Há situações em que podemos ser induzidos a atuar indignações que corresponderiam ao paciente experimentar[3]. Outras em que analista e paciente podem se envolver em um processo compartilhado de negação, complementação transferencial-contratransferencial, dinâmica kafkiana (Kancyper, 2011), "enactment" (Cassorla, 2012) ou outras aporias. Para provar uma hipótese relacionada com estas ideias em nosso material, deveríamos poder conferir as sessões anteriores ocorridas durante o último mês, período no qual Marina não falou sobre a nota do motel. Durante este mês teria se desenvolvido uma fantasia vincular inconsciente circunstancial[4] na qual Marina ocupa o lugar de uma Lolita para seu terapeuta? Teria acontecido um conluio entre terapeuta e paciente destinado a manter a negação? Teria neste momento Marina saído da negação por causa de um incremento da culpa de Luís[5], que o levou a deixar "manchas de sangue" em todas as paredes? Numa nova oscilação, estaria Marina empurrando o terapeuta de volta a seu lugar de benfeitor por via de alertá-la e acordá-la para a "realidade" que eventualmente havia sido negada temporariamente por esta hipotética coalizão denegativa[6]?

 

13) ...Digo-lhe que sei que ela está com um problema que gostaria de resolver com urgência...

Não sei se ela está com urgência de resolver seu problema. Tenderia a pensar que Marina tem conseguido identificar projetivamente dentro do analista essa urgência e que ela gostaria de continuar não vendo, como conseguiu não enxergar durante um mês, ou pelo menos vendo aos poucos.

 

14) ...Como lhe é penosa esta percepção de fraqueza e pobreza, de desamparo e dependência, a esconde atrás de uma aparência de autonomia e independência. Mais ainda, o saber que Luís está tendo um caso talvez deixe esse seu lado muito assustado, como uma criança que pode ser abandonada pela mãe. Esse lado fica não só assustado, mas também com muita raiva por essa ameaça de abandono...

Aqui gostei, agregaria que possivelmente por tudo isto ficou este último mês sem ver o que tinha visto[7].

 

15) ...É possível que ambos estejam com dificuldades para abordar o assunto...

Gostei de novo. Aqui o terapeuta parece ter modulado sua contraidentificação com os aspectos vingativos e de necessidade de ação de Marina e entra numa fase mais reflexiva, o que deve retirar o medo de pensar sentido por Marina, antes bloqueado por uma necessidade de agir que, seguramente vindo dela, foi transferida ao terapeuta, em parte devido a considerar Luís superforte e em controle absoluto na prática de suas traições. Marina se aproxima da ideia de que eles têm uma crise familiar que tem que ser pensada, seguramente pelos dois.[8]

 

16) ...Pesadelo, lugar desconhecido, boneco-assassino, fechar-se atrás das portas como de seu consultório, bolhas de sabão...

Transformar no contrário (conhecido-desconhecido) através do prefixo de negação "de" é habitual no processo de deformação onírica. Seguramente o lugar do sonho era um conhecido. De toda forma, os impulsos orais agressivos que tão bem descreve Telles seguramente originam ainda muita culpa. Talvez essa culpa tenha colaborado para determinar a negação que se instalou durante o último mês frente às ameaças das percepções externas e a emergência da agressão interna. Seria importante mostrar a culpa que sua agressão gera, já que acredito que isso dá parcialmente conta não só dessa denegação passada, senão da denegação por acontecer no sonho. Num clima de incerteza frente à emergência de novas manifestações de agressividade, ela se infantiliza em sua relação com o boneco-assassino e passa a jogar com coisas muito frágeis e inofensivas como as bolhas de sabão e na realidade futura de sua relação com Luís, tal como irá manifestar-se em seus relatos de "reconciliação" com Luís via explicações, que este comentador também acha mirabolantes, na nova sessão extra apresentada no fim deste material.

 

15) ... registro (certas comprensões sobre a transferência) para dizer-lhe noutra ocasião futura...

Acho importante também nessas situações estar alerta para os perigos da "transferencite", inflamação da interpretação transferencial que pode atacar o terapeuta em determinadas situações em que este pode julgar necessário dar uma Verônica (movimento pelo qual o toureiro convida o touro a se espatifar contra o "ruedo" depois de o cegar com o pano vermelho da capa) à realidade externa "radioativa", refugiando-se na realidade da transferência.

Acho sim, que, se for verdadeira minha hipótese sobre o pacto de denegação (entre terapeuta e Marina) que teria se instalado durante o mês que precedeu a "descoberta" da traição, uma interpretação sistemática, "kleiniana", da transferência teria encurtado o tempo necessário para chegar ao levantamento dessa negação. Todas estas são hipóteses nas quais se discute uma das situações mais complexas que compõem a "arte" da técnica psicanalítica.

 

16) ...forte sentimento de decepção que a acometeu. Havia imaginado o rompimento do casamento e ficara excitada ao se ver tendo uma vida completamente diferente, sem as obrigações atuais...

A decepção é também com ela por ter engolido todas suas percepções anteriores e instalar novamente a negação. Coisa que vai ter que ser analisada, para evitar que Marina saia da negação através de um acting vingativo.

  

comentário de elias mallet da rocha barros e elizabeth lima da rocha barros

O presente exercício tem sua inspiração numa nova seção do International Journal of Psychoanalysi, criada há 7 anos, intitulada "O analista trabalhando", inaugurada durante o período durante o qual fui (erb) Editor para a América Latina dessa publicação.

 

A razão que orientou a decisão de criar esta nova seção relacionava-se a diversas questões que pairavam no ar. A diversidade das abordagens clínicas era, e é, enorme. A pergunta sobre a existência ou não de uma base comum à psicanálise motivou vários congressos. O próprio Journal publicou um debate, hoje considerado clássico, entre André Green e Wallerstein sobre este tema.

 

Os analistas se viam e se veem face às limitações das teorias de que dispomos, que não são conceitualmente suficientes para explicar nossa clínica. Expressivo desta ansiedade é o título do livro publicado por Stefania Manfredi (1968): As certezas perdidas da psicanálise clínica.

 

Talvez, se nos sentíssemos menos ameaçados, poderíamos dizer que estamos simplesmente diante de mais uma manifestação do que Morin e Le Moigne (1999) chamam de "pressão para inteligência da complexidade". O fenômeno clínico observado sempre é uma teia de relações que necessita ser inserido num sistema complexo de pensamentos e experiências. Somos muito mais sensíveis hoje à multideterminação dos fenômenos psíquicos e, em consequência, damos mais atenção aos detalhes das manifestações que hoje vemos como transferenciais e aos seus significados.

 

Novos paradigmas são fruto de uma transformação da psicanálise, que deixou de se propor a "curar" sintomas e passou a se preocupar com a estrutura da personalidade e com os fatores que facilitam e dificultam seu desenvolvimento. Ainda nessa área, podemos dizer que nos vemos perdidos diante de uma multiplicidade de teorias que ameaçam nosso campo de fragmentação.

 

Neste contexto, nós, editores, pensamos que nos deveríamos voltar para a clínica tal qual era praticada pelos analistas contemporâneos e, nesse sentido, escolhemos um grupo representativo de analistas, selecionado em função de suas publicações e prestígio na cena internacional, aos quais pedíamos que nos enviassem o material de uma ou duas sessões detalhadamente descrito e de preferência sem quaisquer referências teóricas. Concomitantemente, pedíamos a dois outros analistas, de orientações teóricas conhecidamente diferentes daquele que nos forneceu o material clínico, para comentarem.

 

Implicitamente nos perguntávamos se nós analistas não estávamos perdendo nosso rumo inspirado nas teorias sobre o inconsciente inauguradas por Freud. Em cada sessão paira uma questão: O que cria/gera as associações do paciente sob a forma discursiva (fala) e não discursiva (imagem, sentimentos, sonhos)? E dessa interrogação decorrem outras tais como: o que guia nossas intervenções? O que as justifica? Como avaliamos seus efeitos?

 

A situação analítica da forma como ela é concebida nos seus aspectos formais (número e duração de sessões, a postura do analista) constitui nossa materialidade teorética, que de acordo com Fédida (1992), que introduziu esta expressão, é metapsicologicamente coerente com a "ficção" de um aparelho psíquico. É desse ângulo que podemos fazer uma reflexão sobre a teoria implícita na concepção de setting na clínica contemporânea.

 

Vemos grande utilidade na expressão materialidade teorética, porque ela indica que nossa prática clínica (nossa materialidade) é a expressão de um modelo metapsicológico do aparelho psíquico. Essa expressão enfatiza também a relação dialética entre a prática e a teoria. Nada é mais perigoso para o desenvolvimento da psicanálise do que uma cisão entre o psicanalista clínico praticante da psicanálise e o teórico, pensador desta prática. Deste modo, qualquer inovação nos seus aspectos formais implica um re-exame da concepção de como opera o aparelho psíquico humano.

 

Ouvimos de Donald Meltzer, em diversas aulas e seminários clínicos, que o destrinchamento de um material clínico poderia ser comparado ao que ocorre na lapidação de um diamante. O lapidador inicialmente se vê diante de uma pedra relativamente informe coletada na natureza. Essa pedra traz em si um potencial de cortes, ou seja, de lapidação. O objetivo do lapidador é fazer cortes no cristal de tal forma que a luz a atravesse produzindo um máximo de luminosidade. É dessa forma que são produzidos os diamantes, alguns deles maravilhosos. A lapidação depende da habilidade do lapidador para encontrar os melhores ângulos de abordagem da pedra e do potencial da pedra bruta. Mas não há uma única maneira de lapidar uma pedra. Diante de cada pedra existem duas ou três possibilidades de uma lapidação excepcional, 4, 5 ou 6 de uma boa lapidação e um potencial de se estragar a pedra. O mesmo ocorre numa sessão de análise. O analista, o supervisor ou o comentador no nosso caso são instados a propor os seus recortes de forma a lançar mais ou menos luz ao modelo de funcionamento mental do paciente. A pedra bruta no caso é o material em si, incluindo a forma como este foi colhido e relatado.

 

É com esta perspectiva que abordaremos o material que nos é oferecido generosa e competentemente por Sergio Telles, nosso colega e querido amigo.

 

É preciso enfatizar que se trata de um exercício de imaginação, nunca uma supervisão.

 

Gostamos muito de mencionar a postura de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, quando somos convidados a especular sobre um tema clínico. Diz ele: "De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói n' asp'ro, não fantaseia. Mas agora feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto de especular ideia." (João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 3).

 

Riobaldo, na passagem acima citada, concentra em sua fala - a fala de alguém que se propõe a narrar sua própria vida em busca de um fio condutor que lhe dê unidade e sentido - a essência daquilo que corremos o risco de perder em nossa reflexão psicanalítica: o pensar reflexivo sobre si mesmo que permite que nos apropriemos de nossos conhecimentos e examinemos criticamente os atos e discursos constitutivos de nossas vidas de modo a encontrar nesta um sentido, uma estrutura organizadora que nos permita exercer uma função crítica em relação à própria cultura. Riobaldo sabe intuitivamente que o sentido de sua experiência não é apreensível enquanto esta transcorre, no imediatismo do dia a dia. É só no range rede depois de feita a folga e sem os pequenos dessossegos que a experiência pode ser pensada.

 

E assim passamos a refletir sobre a sessão e a propor nossa lapidação.

 

A primeira questão que se apresenta, de nosso ponto de vista, é a frequência (1 vez por semana), das sessões de Marina. Para nós, a frequência em si mesma não serve, ou não basta, para definir se uma abordagem é psicanalítica ou não. A diferenciação entre psicanálise e psicoterapia muitas vezes não faz sentido, sobretudo se feita com o objetivo de valorizar uma prática e desvalorizar a outra.

 

A questão para nós se coloca de outra maneira. Quanto menos frequente vemos um paciente, em princípio, menos dispostos estamos em perturbá-lo, desafiar seu estado presente de equilíbrio psíquico e a nos deixar perturbar por ele (paciente). Isto pode implicar uma dificuldade maior de observarmos e interpretarmos defesas mais primitivas que operam de maneira mais sutil.

 

Não querer perturbar o paciente carreia uma série de perigos para nossa prática clínica. Assim sendo quanto mais conscientes estivermos dessa possibilidade, mais capazes seremos de sustentar nossa identidade analítica e nos refrearmos de tentar "tranquilizar" o paciente.

 

De nosso ponto de vista, o elemento que mais nos chama a atenção é o dilema (poderíamos chamar isto de conflito?) enfrentado por Marina entre querer ou não saber o que está se passando na realidade, como aponta Telles. Mas, para nós, a questão central não é a problemática de querer ou não saber especificamente o que o marido está fazendo com ela, se a trai ou não, se a trata como idiota ou não. Acreditamos mesmo que a referência explícita a esta questão pode levá-la a se defender mais ainda ao concretizar a problemática em torno da questão se o marido a trai ou não. Como a definição dessa questão implicaria muito provavelmente uma ação/reação de separar-se ou não, nós evitaríamos mencionar a situação específica em nossa fala.

 

A problemática da possível traição do marido, do ponto de vista de um ego mais maduro e adulto, seria de outra natureza, questionamento que ela nunca faz, qual seja, o porquê de o marido eventualmente ter se afastado ou perdido o interesse nela.

 

Ela não faz esta pergunta, sempre na singularidade de nossa perspectiva, porque Marina mantém um funcionamento mental infantilizado. Aqui não estamos nos referindo ao desenvolvimento cronológico da paciente, não estamos nos referindo a uma possível regressão ao seu funcionamento historicamente infantil, mas ao modo infantil de sua mente. Trata-se de uma regressão estrutural e não histórica.

 

Marina se mantém durante as sessões num estado de espírito que mistura raiva e desespero a serviço do modo infantil de funcionamento mental. Um desespero que se metaboliza diretamente em raiva. Ela se apresenta num estado de passividade diante do analista e da situação que está vivendo. Ela literalmente traz o problema para o analista lhe sugerir uma solução. Sua raiva está a serviço da manutenção de um estado de espírito infantil, ela se torna primeiro a menininha com raiva e depois se transforma numa espécie de menininha incapacitada que não vê o que está se passando, convida o analista ao desespero e a um desejo de denunciar sua ingenuidade.

 

Vejamos nossas hipóteses sobre o sonho/pesadelo que ela nos apresenta:

 

Sonho: Parecia um filme de terror. Estava ela num lugar desconhecido, acompanhada de muita gente, quando ouve dizer que havia aparecido ali um boneco que se transformara num monstro que iria matar a todos. Em pânico, as pessoas procuram fugir, mas sabia-se que não havia escapatória, ele mataria e devoraria a todos. Marina se tranca num lugar cujo acesso só é possível atravessando-se vários aposentos fechados com portas grossas de madeira, "como as de seu consultório", acrescenta. Marina não se sente a salvo, pois percebe que o boneco-monstro vem atrás dela, destruindo as portas com grandes dentadas e mordidas, até chegar onde ela se encontra. Quando se veem frente a frente, ambos se acalmam e se sentam no chão, passando a brincar com bolhas de sabão como duas crianças. Apesar de mais tranquila, Marina continuava temerosa, pensando que o boneco poderia, a qualquer momento, voltar a ficar com raiva e matá-la.

 

Neste seu estado de medo, pavor mesmo, o ser perseguida pelo boneco assassino transforma-se em uma brincadeira com bolhas de sabão!!!!!!????? O medo de pensar sobre o boneco presente em sua vida no momento - neste caso a problemática gerada pela quase inegável traição do marido - é transformada numa brincadeira infantil (seu modo infantil de funcionar nesta situação). E ainda traz o boneco assassino para o consultório de seu analista, mantendo-se passiva, transformando algo que seria muito amedrontador e sério em algo nada sério, uma brincadeira. De forma inconsciente, convida o analista a lhe dizer que o boneco é algo muito sério, perigoso e assustador pelas consequências potenciais de entrar em contato com esta realidade psíquica. Do ponto de vista de um lado adulto a questão seria: quem criou (e de que forma) o boneco monstro? No caso, Telles nos relata como Marina recua diante da possibilidade de ter que se examinar e confrontar-se com o significado de seu ódio (no caso infantil) e transforma tudo em bolhas de sabão.

 

Se quisermos especular ainda sobre o material, poderíamos considerar que Marina se identifica com a moça pobre, ajudada pelo marido, que não questiona a natureza desta ajuda. Ela, a nosso ver, empobrece seu funcionamento mental ao instalar-se primeiro na raiva e depois ao torná-la bolhas de sabão. A questão analítica então seria o que a leva a empobrecer-se e o que favorece a manutenção desse empobrecimento mental.

 

Concordo com Telles quando ele fala na identificação da paciente com a moça pobre e a partir disso especularia interpretativamente o porquê de ela permanecer mal remunerada como advogada apesar de competente. Nesse sentido também trataria a questão de ela só poder vir uma vez por semana como um outro sintoma de sua paralisação num estado de pobreza, inclusive mental.

 

Num nível teórico também poderíamos especular (lembrem-se de que nós comentadores estamos no range rede e Telles está moendo n' asp'ro,) que Marina evita um confronto com a situação edipiana. Marina tranca-se num aposento (estado mental ou organização patológica) passando através de várias portas trancadas (o lugar da cena parental primária?) e, diante da evidência da mesma, transforma o medo de ser abandonada (boneco monstro devorador assassino) em um estado infantil, quando passa a brincar com o boneco com bolinhas de sabão.

 

E aqui voltamos ao início do texto. Como comunicar tudo isto de caráter tão assustador à Marina numa sessão quando só a veríamos uma semana depois? Como resistir a tentar tranquilizá-la e a nos tranquilizar?


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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