EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Este artigo é um relato vivencial teórico-metodológico. Por meio dos personagens machadianos Simão Bacamarte e Brás Cubas, constrói-se uma narrativa que conta como um analista, ao cogitar abrir mão das teorizações psicanalíticas, em prol da utilização mais genuína do método interpretativo, descobre o uso e o lugar destas dentro da epistemologia freudiana e do fazer analítico.


Palavras-chave
Psicanálise; Literatura; Teorias Psicanalíticas; Epistemologia freudiana; Teoria dos Campos.


Autor(es)
Rafael de Melo Costa
 é psicólogo, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pelo Instituto de Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
.

Maria Lúcia Castilho  Romera
é professora doutora na Universidade Federal de Uberlândia

João Luiz Leitão  Paravidini
 é psicólogo, psicanalista, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro da Associação Psicanalítica Clínica Freudiana (Uberlândia- MG)


Notas

[1] A Organização Mundial de Saúde (oms) em 1948 define a saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades" (Ministério da Educação, 2012, p. 65).

[1] C. M. B. Orsini, "O Alienista: O Ensino de Freud em sua Extensão Clínica", p. 107-122.

[1] C. M. B. Orsini, op. cit., p. 109.

[1] F. Herrmann, A psique e o Eu.

[1] "O Homem Psicanalítico é o ser do método da Psicanálise, transferencial e descentrado internamente, dividido e múltiplo no íntimo de suas operações, este que aparece na sessão por efeito da ruptura de campo: o Homem Psicanalítico é um ser da estranheza" (F. Herrmann, "Psicanálise, Ciência e Ficção", p.62).

[1] F. Herrmann, "Clínica Extensa", p.21.

[1] C. D. de Andrade, "Verdade". In: Corpo, p. 47.

[1] V. D. Matteo, "Do Inconsciente ao id: gênese de uma ideia", p. 118-136.

[1] V. D. Matteo, op. cit., p. 122.

[1] F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 51.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 51.

[1] F. Herrmann, Introdução....

[1] F. Herrmann, "Psicanálise..., p. 65.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 54.

[1] Onde campos são definidos como: "[...] domínios teóricos que se podem fundir e separar como as imagens cinematográficas, ou melhor, como imagens virtuais; a composição de campos distintos cria novo campo, mas não funda necessariamente uma nova entidade substancial, mesmo que se trate apenas de substância psíquica" (F. Herrmann, Introdução..., p. 54).

[1] F. Hermann, "Psicanálise,..., p. 66.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 55.

[1] F. Herrmann, Introdução...

[1] F. Herrmann, Andaimes do Real: O método da Psicanálise, p. 324-325.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 57.

[1] I. C. Barbelli, "O estatuto epistemológico da psicanálise freudiana: energética e hermenêutica", p. 1937-230.

[1] A. L. Palombini, "Decifra-me ou te devoro: notas sobre o desassossego nas relações entre psicanálise e epistemologia", p. 79-90.

[1] A. L. Palombini, "Decifra-me...., p. 88.

[1] P. L. Assoun, Introdução à Epistemologia Freudiana, p. 10.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 19.

[1] La Méthode psychanalytique et la doctrine freudienne.

[1] Apud P. L. Assoun, op. cit., p. 25.

[1] P. L. Assoun, op. cit.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 27.

[1] F. Herrmann, Introdução..., p. 58.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 28.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 28-30.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 30-31.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 31.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 35.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 33.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 35.

[1] P. L. Assoun, op. cit.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 36.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 83-84.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 84.

[1] A. L. Palombini, "Decifra-me...

[1] S. Freud, "O instinto e suas vicissitudes", p. 137.

[1] S. Freud, op. cit., p. 137.

[1] A. L. Palombini, Fundamentos para uma crítica da epistemologia da psicanálise.

[1] A. L. Palombini, Fundamentos..., p. 65.

[1] A. L. Palombini, "Decifra-me...

[1] A. L. Palombini, Fundamentos..., p. 77.

[1] A. L. Palombini, "Decifra-me..., p. 87.

[1] F. Herrmann, "Psicanálise,..., p. 65-66.

[1] F. Hermann, F. "Psicanálise,..., p. 61.

[1] P. L. Assoun, op. cit.

[1] P. L. Assoun, op. cit., p. 28.



Referências bibliográficas

Andrade C. D. de (2002). Verdade. In: Corpo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, p. 47.

Assoun P. L. (1983). Introdução à Epistemologia Freudiana. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago.

Barbelli I. C. (2008). O estatuto epistemológico da psicanálise freudiana: energética e hermenêutica. Dessertatio, ufpel [27-28], p. 197-230.

Freud S. (1915/1974). O instinto e suas vicissitudes. In: Obras completas. Trad Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiv, p. 123-164.

Herrmann F. (1999). A psique e o Eu. São Paulo: Hepyché.

Herrmann F. (2001). Andaimes do Real: O método da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

Herrmann F. (2004). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann F. (2005). Clínica Extensa. In: Barone L. M. C. (Org.) A psicanálise e a clínica extensa. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann F. (2006). Psicanálise, Ciência e Ficção. Jornal de Psicanálise, 39 (70), São Paulo, p. 55-79.

Matteo V. D. (1986). Do Inconsciente ao id: gênese de uma ideia, symposium, Revista da unicap, v.28, n.1, 1986, p.118-136.

Ministério da Educação. Secretaria de Educação. Disponível em: <http://potal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro092.pdf>. Acesso em dez. 2011.

Orsini C. M. B. (2005). O Alienista: o ensino de Freud em sua extensão clínica, Revista olhar n 12/13, Universidade de São Carlos, São Paulo, p. 107-122.

Palombini A. L. (1996) Fundamentos para uma crítica da epistemologia da psicanálise. 106 f. Dissertação (mestrado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Palombini A. L. (2000) Decifra-me ou te devoro: notas sobre o desassossego nas relações entre psicanálise e epistemologia. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, v. 18, p. 79-90.





Abstract
This article is an account experiential theoretical-methodology. Through the characters Simão Bacamarte and Brás Cubas builds a narrative that counts how an analyst, to contemplate giving up the psychoanalytic theories in favor of using more genuine interpretive method, discovers the use and their place within the epistemology of the freudian and to analysis.


Keywords
Psychoanalysis; Literature; Psychoanalytic Theories; Freudian epistemology; Multiple Fields Theory.

voltar à primeira página
 TEXTO

Memórias póstumas de uma investigação Bacamarte-freudiana

Posthumous memoirs of a Bacamartian-Freudian investigation
Rafael de Melo Costa
Maria Lúcia Castilho  Romera
João Luiz Leitão  Paravidini

Capítulo I

O ano certo ninguém sabe, mas a notícia que aqui trago é fato. Digo fato porque li o autor que escreveu, segundo os cronistas que relataram, os feitos e desfeitos do Dr. Simão Bacamarte na vila de Itaguaí. No boca a boca corre a história do nobre médico e ilustre homem da ciência positivista que, por razões acima de qualquer saber, mergulhou fundo a fim de descobrir a fronteira exata entre a razão e a loucura. Por meio do seu prestígio, funda a Casa Verde e inicia sua investigação primeiro internando os não normais, aquelas pessoas que não possuem um equilíbrio perfeito e absoluto de suas faculdades mentais, até que lá estava quatro quintos da população. Haveria de estar algo errado, já que a exceção estava maior que a norma. Portanto, a regra se inverteu e internados foram aqueles que gozavam do pleno equilíbrio mental, algo para nos preocuparmos, já que se assemelha muito ao nosso rigoroso conceito de saúde pregado pela oms[1]. Mas isso é outra história [...].

 

Voltando ao fato, para estes equilibrados o tratamento foi bastante eficaz, já que cada Aquiles tem o seu calcanhar. Porém, dois pés não foram flechados e justamente os pés do renomado Doutor, fazendo jus a sua fama e fiel ao método que utilizava, entregou-se ao próprio estudo, internando-se na Casa Verde.

 

Bacamarte não está tão distante de nós, nem mesmo sua maneira mobilizadora de investigação longe do fazer psicanalítico. Orsini[2], narrando o uso que faz do conto de Machado de Assis para construir um campo propício ao ingresso do pensamento freudiano para estudiosos iniciantes, diz: "Dr. Simão entra no asilo para seu autoestudo e de lá só sai morto. Já Freud, ‘entra' na sua autoanálise e de lá sai revigorado pela generosa escrita de A interpretação dos sonhos"[3].

 

Poder-se-ia arriscar mais na direção de uma proposta quase teórica e afirmar que, além de um interessante modelo da forma como somos objetos e investigadores da nossa própria pesquisa, Bacamarte é algo que haveria de existir no eu pesquisador. Sendo assim, não seria absurdo pensá-lo como parte de uma teoria de constituição deste específico sujeito, que é como todo eu instância ilusória ou fictícia. Sendo minha esta teoria, dela não posso fugir. Portanto, é neste lugar de bacamarte, agora com b minúsculo, por não mais se referir a uma pessoa, mas sim à predominância de uma estrutura ilusória, que parto para minha investigação.

 

Uma investigação bacamarte-freudiana, uma pesquisa de exatidão no reino da ficção, seria isso possível? Investigação ou aferição?

 

Capítulo II

Um instante! Antes de continuar percebo certa hesitação. E titubeio por não saber ao certo se narro esta investigação começando pelas inquietações que a moveram, ou se já de chofre conto do arranjo teórico que me fez momentaneamente apaziguar. Decido, então, procurar refúgio nas vivências de um outro senhor, o defunto autor Brás Cubas. Se com Dr. Bacamarte encontro o reflexo de uma postura investigativa, busco em Brás a possibilidade de transmissão de um pensamento.

 

Ao optar por memórias póstumas, ganho a tranquilidade de narrar algo que desde já sei como terminou, evitando assim que novamente o texto tome caminhos e discussões antes não pensadas. Só lhe conto isto, caro leitor, por esta escolha me proporcionar também a primeira virtude de um defunto: a franqueza.

 

Aliás, desculpe minha falta de cortesia, caí de determinada forma nesta narrativa que ainda não me apresentei. - Sou instância verdadeira do meu próprio ser, uma pessoa nem física nem jurídica, apenas personagem intrigada com a própria trama. Fruto da ficção freudiana, sou eu analista. Muito prazer!

 

Retomando... parto de onde cheguei, da constatação do genuíno lugar de instrumento ocupado pelas teorias psicanalíticas quer na produção de um tipo específico de conhecimento, possibilitando a apreensão do objeto para além do empírico, quer no seu uso clínico como interpretante, dando movimentação e flutuante suporte para nossas particulares produções teóricas.

 

Ao longo deste percurso deparei com o risco existente de assimilação das teorias como dogmas, tendo como consequência e evidência seu uso canônico, visto que o limiar entre a sustentação para uma nova apreensão e a sua utilização de modo aplicativo é bastante tênue. O risco que corremos é de utilizarmos um método aplicativo deixando de lado o método psicanalítico. O maior esclarecimento do caráter ficcional da própria Psicanálise, bem como sua perspectiva criacional, permite compreender o constante re-inventar a que estamos submetidos, quando nos dispomos à Psicanálise.

 

Capítulo III

Acredito que para alguns de vocês o produto desta investigação pareceu por demais lógico, já estabelecido. Entretanto, para mim esta ideia não estava de forma alguma bem assentada. Não me recordo do exato instante em que o desassossego se alojou. Porém, posso contextualizar que em meio a estudos sobre a relação análoga entre a literatura e a Psicanálise, a forma como Freud desenvolveu sua metapsicologia, o ofício clínico diário e a recém-incursão pelo campo das artes, fixei-me na seguinte questão: tendo o método psicanalítico como suporte básico e fundante desta arte da ciência e pensando a Psicanálise como uma ficção que nega seu caráter ficcional, entendendo como argumentação a esta hipótese a proliferação de ficções psicanalíticas[4], do que me valeriam as teorias já estabelecidas? Ao buscar algo que fosse genuinamente puro, oriundo apenas da relação estabelecida, não seria mais eficaz o abandono destas em prol de uma produção singular que o método me daria no contato com o Homem Psicanalítico[5]?

 

Tal questão alicerçou-se como uma ideia de fixão revolucionária em meus estudos. Fixa como as ideias de Dr. Bacamarte de localizar a exata fronteira entre a razão e a loucura e revolucionária por almejar, da mesma forma que o Emplasto Brás Cubas, livrar a humanidade dos seus males, isto é, a Psicanálise de um uso padrão. Cabendo aqui entender como padrão "uma lei reduzida a uma forma morta. Para que todos a cumpram, é preciso ordenar o mundo como se fosse um arquivo morto"[6].

 

Afirmando e ao mesmo tempo duvidando ser possível abrir mão da teoria, passo a bacamartear, assumo uma postura investigativa que leva no limite do possível os próprios ancoradouros. Assim, promovendo rupturas, descobertas e criações que, novamente levadas ao extremo, evidenciavam o que já disse o poeta: "a porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam [...] E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia"[7].

 

O talento do poeta disfarça o desassossego que é experienciar tal constatação a cada movimento. Todavia não seria isso que me aplacaria, afinal essa inquietude mais me movia do que paralisava. E assim iniciei levantando possibilidades para os primeiros passos: a princípio cogitei estudos sobre o momento nodal em que Freud duvidava de suas histéricas, indo do factual para a fantasia. Porém, com isso eu mais reafirmaria o ficcional do que pensaria as teorizações. Não seria esse o caminho desta investigação. Outra opção seria vasculhar no texto freudiano como ele criou suas teorizações. Seria essa uma boa proposta, se eu a tivesse seguido. No entanto, bacamarteei passando a questionar meus ancoradouros e, de ponto a contraponto, fui percorrendo caminhos para um fim.

 

Capítulo IV

Iniciei, então, pelo pensamento que me era mais próximo: a Teoria dos Campos. Em seu livro intitulado Introdução à Teoria dos Campos, Herrmann faz uma exposição dos fundamentos da Psicanálise, a partir do sistema de pensamento desenvolvido por ele e seus colaboradores. Nesta obra encontramos o capítulo "O sentido da teoria psicanalítica", aqui utilizado como base por possuir uma apurada dissertação sobre a posição das teorizações em relação ao método da Psicanálise.

 

Inicialmente é designada a Freud a posição de inventor da Psicanálise, consequentemente, o criador do inconsciente. Criador, pois o conceito de inconsciente freudiano difere profundamente dos que os precederam. Por mais que caiba ponderar, numa análise do contexto cultural precedente a Freud, a descoberta do inconsciente não deve ser compreendida como uma "descoberta científica"[8], mas como uma reação à primazia exagerada da consciência.

 

Após apresentar as concepções de inconsciente de diversos sábios, artistas e filósofos, dentre os quais estão Goethe (1749-1832) e Schopenhauer (1788-1860), respectivamente poeta e filósofo mais citados por Freud, Matteo conclui que, "por um caminho ou por outro, a ideia do inconsciente começa a aparecer no fim de 1700, se torna atual ao redor de 1800, operante na segunda metade do século xix. Passa-se de uma descoberta geral da existência do espírito inconsciente dentro do contexto do pensamento pós-cartesiano, para uma tentativa de descobrir a estrutura dos processos mentais inconscientes, especialmente nos estados patológicos. É neste contexto que emerge como um gigante a figura de Freud"[9].

 

De volta às ideias de Herrmann[10], é dito por ele que "as teorias de Freud sempre apontam para o inconsciente"[11], e que esta descoberta no âmago do sujeito gera diferentes formas de resistência, "desde a sua pura e simples recusa até mesmo uma adesão incondicional à teoria freudiana"[12], fazendo, assim, que o inconsciente esteja limitado ao que já fora teoricamente determinado.

 

Ao considerar este apego excessivo às teorizações freudianas como uma resistência à própria ideia de inconsciente inaugurada por Freud, é possível vislumbrar o movimento de tentativas de prolongamento das teorizações para abarcar novas realidades. Isso culmina em uma distorção da própria teoria, visto que elas não suportam uma extensão excessiva.

 

De posse da apreensão crítica de uma predileção de pôr limite ao inconsciente, Herrmann[13] apresenta sua proposta de multiplicidade de inconsciente, a ideia dos inconscientes relativos. Concorda, desse modo, que as constatações psicanalíticas apontam, sim, para o inconsciente, porém, não necessariamente para o mesmo. Justifica sua prerrogativa nos próprios estudos e na postura de Freud frente a suas teorizações que, primeiramente, sempre manteve suas descobertas em risco, modificando-as ao longo de toda a sua obra.

 

"Se nosso conhecimento é essencialmente provido pela ruptura de campo, então devemos encarar de frente o fato de que cada bocado de saber alcançado por nosso método diz respeito a um campo psíquico [...] mas que não temos meio algum de reunir a totalidade dessas descobertas numa teoria monolítica. O inconsciente, a unidade total, é o nome que se dá a uma abstração, ao conjunto de todos os campos possíveis"[14]. Ao destacar e diferenciar várias investigações freudianas Herrmann[15] admite "que cada psicanálise freudiana descobriu um inconsciente, adstrito ao tema e ao modo de exploração interpretativa utilizado". E propõe pensarmos a Psicanálise, então, como uma teoria dos campos[16], ou seja, "tratar as teorias vigentes na Psicanálise também como relações internas aos campos em que foram produzidas"[17].

 

Assim, "é conceitualmente muito mais preciso e muito mais produtivo do ponto de vista heurístico teorizar da seguinte maneira. Cada psicanálise gera um conhecimento limitado, em princípio, a seu campo, podendo ser generalizado para outros campos, isto é, composto com outros conhecimentos teóricos, somando-se e corrigindo outros, sempre que se estabeleçam com precisão as propriedades do campo de conjunção: nesse caso, as regras compostas regerão com legitimidade o campo final"[18].

 

Portanto, por mais paradoxal que possa parecer para aqueles não familiarizados com a proposta da Teoria dos Campos, o fato de frente a resistência de um inconsciente trabalhar com vários, na prática interpretativa a teoria fica mais palpável, e torna-se possível colocá-la em movimento e não apenas nela crer ou descrer[19].

 

É preciso compreender a proposta do método psicanalítico, enquanto essencialmente interpretativo, para que o conhecimento por ele produzido não seja colocado no local de pura interpretação. "Procede deste selo distintivo que a Psicanálise tenda menos a provar que certo sentido é verdadeiro que a demonstrar que outra coisa sempre pode estar sendo veiculada pelo discurso"[20].

 

Nesta proposta, então, a teoria deve ser utilizada interpretativamente em prol de uma ruptura que acarretará, posteriormente, uma nova organização teórica. Sendo assim, "existem teorias na Psicanálise, conjuntos articulados de conceitos e relações entre conceitos que produzem conhecimento sobre a psique humana. De tais teorias pode-se exigir que provenham de um processo interpretativo, acorde ao método, e que sirvam como interpretantes no futuro do mesmo processo. As teorias operam primariamente no campo em que se deu sua descoberta e, quando são estendidas a outros campos, a outros inconscientes relativos, é indispensável que se reabra a questão de sua validade, para saber se ainda possuem valor interpretante. Essas são exigências do método"[21].

 

Capítulo V

Neste instante da investigação algo ainda me desassossegava. Mas o que seria? Já estava esclarecido o uso das teorizações, estando como interpretantes elas repelem seu uso aplicativo e potencializam o método psicanalítico. Porém, não seria este o final da investigação... continuei a questionar e assim a buscar. Não sei se sabia o que procurava, ou se na verdade procurava o que não sabia. Deparei, assim, com o artigo "O estatuto epistemológico da psicanálise freudiana: energética e hermenêutica"[22], no qual a autora parte da hipótese de que a interpretação é um dos elementos que caracterizam a Psicanálise para afirmar que Freud, intuindo em tratar a mente humana numa esfera além da empírica, como realizam as ciências naturais, sente a necessidade de criar condições experimentais e teóricas. Ou seja, é o próprio objeto psicanalítico, neste estudo tratado como sendo a mente humana, que requer um arcabouço teórico que sustente sua investigação. Seria esta uma oposição à proposta da Teoria dos Campos? Guarde consigo esta questão, leitor, no final teremos mais elementos para refletirmos sobre ela.

 

Um novo campo se abria para meu pensar. Se em relação ao uso estava eu acalentado, a origem das teorizações se impunha como um enigma para mim. "Decifra-me ou te devoro! Notas sobre o desassossego nas relações entre psicanálise e epistemologia" é um artigo da psicanalista Analice de Lima Palombini que deixa claro em seu título o desassossego que passou a me habitar. Em seu texto, Palombini[23] elucida as especificidades do sujeito da Psicanálise, os pontos de divergência com a ciência moderna e os efeitos desta concepção no desenvolver do saber produzido; a posição que Freud toma em relação às ciências humanas, designando à Psicanálise o lugar de Naturwissenschaft, cabendo aqui a ressalva de destacar que a investigação metapsicológica rompe até mesmo com esse discurso epistemológico de Freud, por mais que a busca de determinação de causa e reconstrução do processo tenha vigorado até o final de sua obra; o não lugar da metapsicologia no olhar dos epistemólogos, visto que para os da vertente cientificista ela é por demais especulativa e para os hermenêuticos ela peca por sua cientificidade. Para afirmar que "o paradigma epistemológico da modernidade, fundado num pressuposto lógico-analítico, não encontra lugar para o sujeito que a psicanálise vem pôr em evidência. A epistemologia procura, mas não encontra soluções para o seu enigma"[24].

 

Capítulo VI

Parto com esse desassossego para algumas leituras epistemológicas. E assim cheguei ao livro Introdução à Epistemologia Freudiana, de Paul-Laurent Assoun, que tem como interesse e meta "a epistemologia rigorosamente nativa e imanente à démarche de conhecimento pertencente a Freud"[25].

 

Assoun afirma que "a psicanálise não tem necessidade de epistemologia; ela a possui; e é a isso que se chama propriamente de freudismo: basta objetivá-lo novamente"[26]. Diante dessa prerrogativa ele desenvolve um percurso de decifração da epistemologia freudiana, uma análise minuciosa e histórica de como o saber produzido se construía e quais eram seus ancoradouros.

 

Citando estudos sobre a epistemologia freudiana na França, Assoun apresenta um olhar que enuncia um parentesco com as ideias de Herrmann, com a fenomenologia e a corrente epistemológica francesa do meio do século xx. Inicialmente conta do estudo dualista de Dalbiez[27] que afirma ser importantíssimo para o futuro da Psicanálise a distinção do método e da doutrina psicanalítica. Expressando sua decepção ao ler Freud, Dalbiez conclui que "não é aos escritos freudianos que se deve confiar para ‘formar-se uma opinião (exata) da psicanálise'". O erro fundamental de Freud consiste, segundo Dalbiez, no fato de "tomar seu sistema por um bloco intangível" e de "não separar claramente seu método de sua doutrina"[28].

 

Estando a doutrina freudiana repleta de construções metafísicas, sua comprovação seria impossível, levando todos nós para eternas controvérsias sem saídas. A solução deste mal está, nas ideias de Dalbiez, em separar o método da doutrina, visto que o método pertence ao campo puramente científico[29].

 

Assoun apresenta as ideias de Dalbiez e já as contextualiza enquanto pertencente a uma França que aderia ao método psicanalítico, sem necessariamente entrar no freudismo. Os franceses assumiam a postura de legitimar o método, porém com a necessidade de eles próprios corrigirem-no. Dessa maneira, "metapsicologia passa logo a ser considerada como uma analogia desconfiada de seu duplo: a metafísica. A teoria freudiana será relegada à arbitrariedade de um sistema pessoal, ligada à idiossincrasia de Sigmund Freud. De repente, o rico método e suas aquisições surgirão como que suspensos no ar. Torna-se necessário construir-lhes um apoio para que não caiam no não sentido teórico[30]".

 

Esta afirmação é utilizada por Assoun como uma razão para não se estudar a epistemologia da Psicanálise conforme Freud a dotou. E por mim, para evidenciar o grau de proximidade desta com a proposta da Teoria dos Campos quando esta propõe que "a metapsicologia de nosso Grande Mestre da Psicanálise é precisamente uma teoria tendencial. Quase nunca vamos encontrá-la exemplificada em estado puro numa análise, como operador direto de interpretações. Tampouco é a metapsicologia uma espécie de fundamento positivo para as teorias da psique, a ser seguido em todos os campos - nem a metafísica o é, na área filosófica. Metapsicologia, para a Teoria dos Campos, significa a dimensão especulativa e a análise conceitual de segunda ordem que pode - e deve - acompanhar o trabalho de teorização sob medida que empreendemos em campos particulares[31]".

 

Seria a Teoria dos Campos o apoio que sustenta o método suspenso no ar e evita seu não sentido teórico? Guardemos esta questão provisoriamente, em breve conto como foi pensar o lugar da Teoria dos Campos em relação à Psicanálise.

 

Assoun, em relação a esse dualismo de método e doutrina, afirma que logo o próprio freudismo se frustrava, pois, "afinal de contas, não era Freud apenas uma das versões doutrinais da psicanálise?"[32]. E arremata com a ideia que muito me salvou na conclusão desta investigação que é a distinção do ato de fundação e a própria fundação da Psicanálise.

 

Outros estudos que se debruçaram sobre a identidade epistemológica freudiana foram realizados pela corrente fenomenológica francesa, dentre os quais se encontra o texto "Psicanálise e filosofia", de Jean Hyppolite. Devido a sua significação dentro deste movimento foi este texto que Assoun utilizou para apresentar a proposta fenomenológica sobre a epistemologia freudiana.

 

Hyppolite estabelece uma relação de ambiguidade para com a obra de Freud, dividido entre a exaltação de uma pesquisa tipicamente fecunda, que questiona e amplia perspectivas, e uma doutrina rotulada pela linguagem positivista. Isto é, para ele o problema da Psicanálise seria sua parte teórica. A salvação para este grave problema viria das mãos de Heidegger e Sartre, os quais seriam capazes de corrigir a linguagem incorreta de Freud. Fazendo isto, os fenomenólogos não se veem como traidores de Freud, mas como aqueles que o completariam[33].

 

Assoun constrói algumas pontuações a respeito desta proposta. Primeiro questiona se essa pretensão de salvar a Psicanálise não tamponaria a possibilidade de conhecer a epistemologia freudiana, ou, ainda, se já não seria uma contestação desta. Depois faz coro com a ideia de que o claudicante na obra freudiana, de fato, seria a energia, seu ponto de vista energético. Porém, de forma alguma aceita a proposta de salvação dos fenomenólogos, pois entende que o criador da Psicanálise "jamais separou o destino de sua problemática energética e de sua teoria do sentido. Freud não é alguém que passeia de uma à outra, tentando mantê-las juntas e obtendo maior ou menor êxito: ele nunca dissociou uma da outra! É isto que importa pensarmos até o fim, para assumirmos a identidade freudiana e dela tirar as consequências[34]".

 

E completa afirmando que em Freud "naturalismo e hermenêutica estão vinculados como uma única e mesma verdade"[35], para, por fim, dizer que a proposta fenomenológica de ter a dialética como salvação da epistemologia freudiana evidencia um movimento de produzir uma fissura já tendo a dialética como solução, além de negar a própria racionalidade contraditória da obra freudiana.

 

Na sequência, o texto de Assoun me apresenta Ricoeur, o qual, mesmo continuando na perspectiva de Dalbiez e Hyppolite, traz novas contribuições para o estudo de uma epistemologia freudiana, por mais que o próprio Ricoeur diga que sua intenção e estudo caminhem no sentido de elaborar uma epistemologia do freudismo, da teoria universal dos sentidos[36]. A questão norteadora de Ricoeur é: "como é possível que a explicação econômica passe por uma interpretação que versa sobre significações e, em sentido oposto, que a interpretação seja um momento da explicação econômica?"[37]. Realizando uma aporia da energética (ponto de vista tópico-econômico) e a hermenêutica, Ricoeur verá ambas como condenadas a viverem juntas. No entanto, o autor as vê unindo-se numa exterioridade, por meio de uma trave.

 

O freudismo nada mais é que essa trave ligando duas tradições estranhas. E o remédio para essa mescla deve começar por desatá-la, a fim de remeter a energética à sua origem histórica de facto, mas contraditória, e de extrair do freudismo seu fruto precioso: esta teoria do sentido que uma hermenêutica renovada, apoiada na fenomenologia [...] virá colher[38].

 

De forma explícita, por mais que Ricoeur se sobressaia mesmo seguindo a dicotomização de enérgica e hermenêutica, ele concebe o saber freudiano como filho de pai nobre (hermenêutica) e mãe indigente (energética)[39].

 

Inseridos dentro de minha investigação bacamarte-freudiana, estas ideias ressoaram no sentido de primeiro, como já disse, ter encontrado um pensamento que de imediato me remeteu à Teoria dos Campos. De forma mais elaborada, questiono se explicitamente as ideias de Herrmann têm este ancoradouro, ou se, via outro caminho, chegaram à mesma exaltação da hermenêutica, ou seja, o método interpretativo. Uma questão ampla que aqui anuncio apenas como faísca de pensamento; para se levar a sério, faz-se mister um estudo minucioso tanto dos textos herrmanianos como das fontes originais dos autores citados por Assoun, bem como uma contextualização histórica dos momentos em que esse enaltecer fizeram-se necessários.

 

Ao arrematar sua discussão sobre as ideias de Ricoeur, Assoun afirma que "o acesso à identidade freudiana supõe, não que a confrontemos diferencialmente com outro saber, como a fenomenologia, mas que o reenraizemos em seu húmus próprio, sem preconcepção de recessividade, descobrindo sua historicidade, não como uma reserva, nem tampouco como um dado bruto, mas como um esquema de constituição que lhe pertence de pleno direito"[40].

 

Realizando então esta historicidade, Assoun contextualiza Freud enquanto aluno de um movimento efervescente liderado por Emil Du Bois-Reymond - o agnosticismo. Ao identificar o inconsciente com a ideia, ou conceito, de coisa em si, Freud reconhece a natureza do incognoscível. Porém, "não pode contentar-se com essa garantia agnosticista: precisa integrar, em procedimento de conhecimento específico e codificado, o estudo destes processos inconscientes, que enquanto transparecem nos fenômenos, constituem uma transobjetividade. [...]. Portanto, o que se torna exigido é aquilo que ele chama, desde sua correspondência com Fliess, de uma ‘metapsicologia', ‘psicologia que vá ao fundo do consciente'"[41].

 

Clarificando: a construção de uma metapsicologia emerge com a intenção de superar a contradição entre a exigência fenomenal inerente à Psicanálise e a transobjetividade que ela trata. Ela é em suma a própria epistemologia freudiana. Conhecer sua construção é elucidar a questão da identidade epistemológica de Freud[42].

 

Capítulo VII

Sendo assim, fui a Freud! Pois é no exame dos textos freudianos de cunho epistemológico, confrontando estes ao modo peculiar de elaboração teórica por ele desenvolvida, que se vê a tensão presente no saber produzido entre um modelo fenomenológico de cientificidade e a invenção. Esta última é fruto da exigência da própria especificidade do objeto psicanalítico, como um dispositivo metodológico a subverter seu próprio modelo[43]. No texto Os instintos e suas vicissitudes, de 1915, Freud nos fornece uma rápida anunciação do trabalho epistemológico a ser desenvolvido. Escreve ele: "Ouvimos com frequência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e correlação. Mesmo na fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas ideias abstratas ao material manipulado, ideias provenientes daqui e dali, mas por certo não apenas das novas observações. Tais ideias - que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência - são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna mais elaborado. Devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição; não pode haver dúvida quanto a qualquer delimitação nítida de seu conteúdo. Enquanto permanecerem nesta condição, chegamos a uma compreensão acerca de seu significado por meio de repetidas referências ao material de observação do qual parecem ter provindo, mas ao qual, de fato, foram impostas. Assim, rigorosamente falando, elas são da natureza das convenções - embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente"[44].

 

Assoun remete a esta parte do texto freudiano para evidenciar a presença nele da linguagem de Ernest Mach no que tange à posição metodológica de Freud. O debruçar sobre esta breve elucidação me fez pensar em alguns pontos. Inicialmente, percebo um diálogo com a proposta da Teoria dos Campos, em uma ideia já nesta investigação explorada, que é a de, frente a um novo campo, ou, se preferirem, no contato com um novo objeto psicanalítico, as teorizações devem ser assumidas como sujeitas a validações ou até mesmo extinção, caso contrário estaríamos optando por um método aplicativo em detrimento do interpretativo.

 

Uma outra questão que me levava de volta às ideias de Palombini era pensar no que Freud neste trecho nomeia de relações significativas e na função que estas assumem. Afirma ele: "[...] embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas mas, determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente"[45]. Esta potencialidade de dar condições de criação de um específico saber do inconsciente é por Palombini[46] apresentado como ligado à própria transferência. No trecho a seguir a autora situa a posição da transferência como um dos três vértices de sustentação que proporcionaram a Freud a instauração de uma nova disciplina.

 

A necessidade de explicação do sentido dos fenômenos lacunares da consciência leva à formulação da hipótese do inconsciente e, com este, à invenção de um método (metapsicológico) de elaboração conceitual capaz de descrever seus atributos e modo de funcionamento; tal método vai requerer o uso de um dispositivo ficcional no engendramento dos seus conceitos; é apenas no contato com uma alteridade, porém, que esses conceitos vão ganhar espessura, objetivando-se numa experiência que, atravessada pelo fenômeno da transferência (relação intersubjetiva entre dois sujeitos), permite verificar a validade da hipótese. Chegamos, assim, aos termos que [...] indicam a especificidade epistêmica da psicanálise: a noção de transferência no estabelecimento da experiência analítica; o dispositivo da ficção, na elaboração dos conceitos; a ideia de Deutung enquanto explicação interpretativa[47].

 

São estes três termos (transferência, ficção e Deutung) que representam, na visão da autora, os conceitos fundamentais para se pensar uma epistemologia da Psicanálise que, por avançar rumo a uma discussão específica de sua episteme, não promove a degradação da noção freudiana de inconsciente[48].

 

Concluindo esta ideia, acho necessário compartilhar alguns esmiuçamentos em relação ao segundo termo, a ficção. Palombini[49] destaca que a ficção metapsicológica não é mera representação da ideia de construção de um determinado conceito, mas sim presentação do inconsciente mesmo. Cabe aqui terminar com a síntese que a própria autora faz das elaborações teóricas psicanalíticas.

 

A elaboração teórica da experiência psicanalítica, portanto, reproduz a situação própria à experiência psicanalítica originária, refundando-a. A teoria psicanalítica enquanto tal, porém, requer que, à ficção como abertura, presentação, sobreponha-se a ficção como explicação, fechamento. A ficção metapsicológica, então, que, enquanto mostração, origina-se da relação a uma alteridade, retorna a essa alteridade, sob uma forma objetivada, para submeter-se ao seu crivo crítico, uma vez que é preciso assegurar-se das condições de sua transmissibilidade intersubjetiva. O ficcionamento, que surge como acontecimento do inconsciente em um sujeito, toma forma de uma representação geral dos mecanismos do inconsciente, como condição de possibilidade da vida psíquica. Assim, por um lado, o inconsciente revela-se no ato mesmo de ficcionar: forma-se, "performa-se", mostra-se em ação; por outro lado, a natureza explicativa da elaboração constitui-se no après-coup dessa mostração. É desse modo que o paradoxo de ser saber do inconsciente encontra sua equação"[50].

 

Capítulo VIII

Agora chegamos ao ponto em que começamos esta investigação. De uma inquietação inicial, passando por um desassossego, cheguei às provisórias verdades de uma consideração final. Verdades organizadas conforme meu capricho, ilusão e miopia, como bem disse o poeta Drummond, mas que me serviram de campo para ficcionar e assim refundar e refutar saberes.

 

Bacamarteei levando as ideias de Herrmann tanto como ponto de apoio como de questionamentos, visto que se compreendidas suas afirmações, inseridas em um novo campo as teorizações, devem ser submetidas a validação ou refutação em detrimento do campo que se forma. Nesse sentido, os leitores mais atentos devem saber que duas questões foram levantadas: primeiramente, se a proposta de Herrmann e dos epistemólogos convergem ou divergem, e ainda, se a Teoria dos Campos supriria a necessidade levantada por Assoun de um apoio para o método suspenso no ar sem ter o risco de cair em um não sentido teórico.

 

Respondo tais questões inicialmente esclarecendo o local que a Teoria dos Campos se propõe a assumir em relação à Psicanálise. Afirma Herrmann que "a Teoria dos Campos não é um comentário sobre a obra de Freud, muito menos um comentário desabonador. Tampouco é uma teoria independente, ou uma escola psicanalítica, mas uma espécie de interpretação: uma forma de ver a Psicanálise e, consequentemente, uma forma de ver a psique. Por isso é adequado dizer que a Teoria dos Campos não é mais que uma interpretação da Psicanálise: induz rupturas dos campos teóricos"[51].

 

Afirmando-se interpretação e entendendo que esta "não prova coisa alguma, ela apenas cria condições para que surja o sentido"[52]. E o sentido que nesta investigação surgiu foi o de constatar que mesmo enaltecendo o resgate da potencialidade do método interpretativo a Teoria dos Campos também se apoia numa metapsicologia própria, que é a ideia de inconscientes relativos. Tendo como campo a própria Psicanálise e suas teorizações, Herrmann propõe uma outra lógica do inconsciente, agora não mais monolítico, mas sim quantos forem considerados. E esta lógica é sim de determinada maneira uma proposição teórica necessária para que lhe possa sustentar o próprio método, como muitas vezes afirmou Assoun[53] a respeito do embricamento necessário e inerente à própria Psicanálise entre a hermenêutica e a energética. A contribuição de Herrmann pode ser conduzida no sentido de anunciar que cada campo permite e deve ter sua própria energética criada, ao utilizar como interpretante todas as demais teorias já estabelecidas.

 

E eu, como fico nesta história? Bacamar­teando corria o constante risco de terminar morto na minha própria Casa Verde, além do mais há de se considerar o risco de as próprias memórias póstumas produzir seu defunto caso suas lembranças não tenham mais movimentos. Porém, me percebo salvo pela própria ficção que me sustenta, uma sustentação pautada no constante caráter criacional da própria Psicanálise. Assoun[54] faz uma salvadora elaboração ao diferenciar fundação de ato fundador: enquanto o primeiro é destinado a Freud, o segundo fica livre como condição necessária àqueles que se propõem à Psicanálise.

 

Questionar as teorizações propiciou mais do que conhecer seu uso como instrumento ou sua origem como tema de tensões epistemológicas. O processo de investigação e de escrita possibilitou a vivência da necessidade que o método em ação nos impõe de reafirmar a posição inventiva e o movimento de subversão do paradigma vigente. Encerro compartilhando da opinião de Herrmann, Palombini e inúmeros outros de que é na interlocução com a literatura, filosofia, artes, enfim, outros campos do conhecimento, que potencializamos nosso próprio saber e fazer. Salvando-nos assim da morte, mesmo que para contar a experiência seja necessário utilizar-nos de memórias póstumas.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados