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Resumo
Resenha de Denise Costa Hausen, Cinema e Psicanálise: o conceito de castração em transversal. Porto Alegre, Movimento, 2011. 246 p.


Autor(es)
Renata Udler Cromberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo.

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 LEITURA

A imagem e o corte

[Cinema e Psicanálise: o conceito de castração em transversal]


The image and the cutting
Renata Udler Cromberg

É como roteiro de um filme que o livro de Denise Costa Hausen se apresenta ao leitor. E é à maneira de uma sinopse que o apresento acrescentando minhas próprias reflexões. Qual o tema do roteiro? Paradoxalmente, aquilo que é o mais concreto e o mais abstrato no universo conceitual trazido pela psicanálise: o conceito de castração. O mais concreto porque se apoia em uma percepção visual da criança no final da primeira infância acompanhada da concretude da masturbação infantil acoplada à fantasia edipiana e à ameaça proibitiva atribuída ao pai: a constatação de que sua crença de que todos os seres do mundo possuíam a mesma sexualidade não é mais válida, pois seus olhos percebem seres que têm pênis e seres que não o têm. Mais particularmente percebe que a mãe não tem pênis, esta criação imaginária que a fazia solo de toda perfeição e completude. E esta percepção, que faz reconhecer uma falta, angustia e traz efeitos, uma vez que a existência da vagina e da penetração só poderá aparecer como percepção corporal com a mudança psico-corporal trazida pela adolescência. O destino dessa percepção infantil trará a organização psico-emocional-cognitiva com a qual a criança terá acesso ao mundo simbólico. Mas é também o mais abstrato porque este acontecimento transforma o pênis em falo, a imagem do pênis ereto, agora então não mais percepção, mas conceito abstrato e simbólico, que determinará a maneira de acesso, a pertinência ao mundo simbólico constituinte e constituído pelas leis que regem a convivência dos homens em sociedade, fundamentais à sua sobrevivência como espécie. Mas a centralidade desse conceito veio sendo construída na obra freudiana, especialmente a partir da escrita de Totem e tabu, em 1913. Primeiramente pela formulação do conceito de narcisismo e depois pela reviravolta da última teoria pulsional, a formulação do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte. A formulação genial da centralidade do conceito de castração dá a resposta de como é possível a ação específica de um corpo no mundo, levar em conta a realidade do mundo e postergar o prazer. O complexo de castração é uma questão de percepção do mundo, estabelecimento de um fora e de um dentro, do acesso à ação intencional de um corpo no mundo, por meio do pensamento e da organização das relações abstratas e simbólicas e da percepção do tempo e da finitude singular, bem como acesso à alteridade fora de si enquanto se constrói a outra cena inconsciente dentro de si. Sem ele ficamos presos na fantasia narcísica e labiríntica da imortalidade ilimitada, de nossos desejos oniscientes e onipotentes, que, no entanto, têm seu importante papel na constituição da vida psíquica e da cultura humana.

 

Portanto é como um conceito que a autora toma o complexo de castração como tema de seu filme, naquilo que ele fala do sofrimento singular no acesso ao que é da ordem do limite finito singular, a diferença de gerações e ao lugar que cada um ocupa nela, mas ao mesmo tempo como organizador psíquico do acesso à cultura como origem e destino do sofrimento psíquico. Dispositivo de passagem, reviravolta e transformação, o complexo de castração constitui e é constituído pela cultura que é forma de vida e prática social. Vemos aqui o primeiro sentido da transversal do título. A cultura atravessa a constituição do sujeito humano desde seus inícios, desde as primeiras marcas pictográficas, os primeiros traços lektônicos, que são processos primários, pré-verbais semióticos, que perdurarão no funcionamento simbólico completo de um sujeito que fala, condensações, tons, ritmos, cores, figuras, deslocamentos e condensações, sempre em excesso em relação ao significado, que vem das marcas originárias, impressas na nascente memória, da constituição da experiência corporal de si mesmo e do outro materno, uma vez que a mãe é marcada pela cultura e é através dela que cuida e erogeneiza seu filho inscrevendo e inaugurando um corpo erógeno único e singular.

 

É por isso que a concepção de cultura de Hausen é imanente e não causa final ou transcendental. Ela é inerente à própria constituição psíquica, sendo, ao mesmo tempo, constituída por ela, por subjetividades. "Dessa forma, não é polo, nem tampouco qualidade, adjetivo qualitativo que modifica o sujeito. Ela está dentro, não se constitui como ponta de uma polarização e, portanto, dispensa o que seja um cuidado (com a cultura)" (p. 58). A autora atribui ao psiquismo um caráter de sistema em aberto.

 

Na primeira parte do livro, ela situa a cena fundadora de seu filme: o campo de emergência da concepção freudiana de sexualidade enquanto fundadora da teoria psicanalítica. "Sexualidade que transcende a ideia de genitalidade, que dá voz à pulsão, que marca, que é modelo de relação com o mundo, que reconhece o direito às crianças de serem sexualizadas e, às mulheres, de serem sexuadas." (p. 17).

 

Na segunda parte do livro, depois de ter apresentado a cultura como forma de vida e prática social, faz o recorte do campo artístico como aquele que faz o visível e não apenas o reproduz. Escolhe então o cinema enquanto linguagem, enquanto modo de constituir a vida, como o campo privilegiado para revelar e informar sobre o conceito freudiano de castração. "O cinema pode emergir como um evento de realidade, como uma prática social que forja sentido, institui modos de viver, de ver, de explicar a si mesmo e ao mundo." (p. 62).

 

Pode-se fazer cinema e fazer-se pelo cinema. Constituir um filme e constituir-se pelo filme. Ver cinema e ver-se pelo cinema. Qualquer filme se constitui entre sua fabricação criativa e técnica e a recepção pelo olho que vê. É assim que Hausen elabora suas ferramentas de pesquisa escolhendo três filmes para analisar que acabam por lhe dar acesso a três momentos de mutação do conceito freudiano de castração ao longo da segunda metade do século xx: O clamor do sexo, de Elia Kazan, de 1961, Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, de 1976, e Clube da luta, de David Fincher, de 1999. O filme de Denise Costa Hausen se filma com os três filmes escolhidos. Aqui temos o segundo sentido da transversal do título. Esta linha que percorre a elaboração psicanalítica do conceito de castração no começo do século xx e sua presença mutante ao longo deste mesmo século através dos três momentos. O método que constrói para usar suas ferramentas-filmes faz então todo sentido: primeiro, um verdadeiro panorama histórico e antropológico da época de feitura do filme, admirável por uma capacidade ao mesmo tempo sintética, clara e de uma densidade e profundidade certeiras nas escolhas dos acontecimentos marcantes. Feliz mistura da jornalista e da psicanalista. Depois, a apresentação do material: reportagens, cartazes de divulgação e críticas cinematográficas da época, a ficha técnica dos fazedores do filme, diretor, roteiro, atores e a música além da apresentação de cada filme em si. O que há de comum nos três filmes, para a autora, é que eles "tiveram força de ruptura no trato da questão da sexualidade, foram propulsores dessas mesmas mudanças e também puderam se realizar pela sensibilidade de seus diretores no sentido da antecipação, pela imagem, de algo que estava posto no imaginário social" (p. 66). No primeiro, a força do desejo sexual numa sociedade que o recalca. É a geração do "Mostre e Esconda"; no segundo, a força do gozo sexual na sua primeira exibição crua e nua da carne que faz o sexual nas telas de cinema de uma maneira não pornográfica. É a geração do "Faça tudo e mostre tudo, nada é proibido, é proibido proibir"; no terceiro, a força da descarga violenta sem mediação do pensamento. É a geração do "Consuma tudo e todos para os mais absurdos e inúteis fins".

 

Ela introduz então o cinema como tendo a habilidade de "descortinar desdobramentos com relação à sexualidade e, portanto, à castração. Desdobramentos oriundos de eventos com energia para romper os paradigmas existentes e que podem, não só pelo corte, mas também por uma força cumulativa, viabilizar a tomada - e retomada - do significado e do lugar que essa mesma castração assume como normatizadora, e o que a propõe enquanto norma, podendo gerar um sofrimento psíquico que se constitui a partir de um tempo e de um lugar" (p. 66-7). No que se refere ao conceito de castração, os filmes são analisados à luz dos indicativos corpo e violência, expressivos de transformações ou permanência de valores que foram marcando um tempo cronológico. Corpo sexuado que se constitui numa difícil batalha. Violência enquanto ato gerado pela descarga pulsional não mediatizada pela palavra, não intermediada pelo processo secundário do pensamento, como "destino do que não se organizou frente ao limite do processo secundário" (p. 72).

 

Mas se o desejo de união do cinema com a psicanálise na realização de sua pesquisa nasceu de uma trajetória pessoal de Denise Costa Hausen, essa união entre os dois campos está dada desde os inícios, em 1895, ano de publicação de Estudos sobre a Histeria e da projeção do primeiro filme pela esquisita máquina dos irmãos Lumiére.

 

Invenções quase simultâneas têm inúmeros pontos em comum. A revelação de que os nossos sonhos pensam, essencialmente, através de imagens, transforma o livro inaugural da psicanálise, A interpretação de sonhos, de Freud, no primeiro grande ensaio sobre a mecânica psíquica do cinema. Podemos arriscar que a invenção do aparelho psíquico tal como foi concebido pela psicanálise vem possibilitando inúmeros desdobramentos de invenções maquínicas, como é o caso do cinema e do computador. Não há máquina que não tente ser um prolongamento da potencialidade da máquina corporal humana e por isso elas são tão importantes para ajudar o homem a se reconceber na sua condição humana sempre misteriosa e mutante. De fato, o sonho é o paradigma do inconsciente e os mecanismos psíquicos do seu trabalho, a condensação, o deslocamento e a condição de figurabilidade, ou seja, a transformação dos pensamentos do sonho em imagens e a elaboração secundária invocam uma escuta pelas imagens que, se bem não é a única possível em uma análise, é a que mais coloca o ouvido na posição de um olho capaz de acompanhar o curso de uma fala, de se aproximar da disposição inconsciente, criando um pensamento por imagens, um cinema singular que possibilita ao analista atingir as figurações do fantasma. O sonho é também um dos paradigmas que permite pensar uma "linguagem do cinema", feita de signos imagísticos diferentemente da linguagem literária, composta de signos linguísticos. É isso que permite uma leitura do filme através das imagens criadoras de sentido. Trata-se, no ato de ver o filme, de não permitir que o império do entendimento aprisione o real-imagem com suas categorias abstratas, já que não se trata de conhecer e analisar a história fílmica numa busca inútil de significações já dadas. Um novo pensamento pode nascer do deslocamento das funções de seus órgãos habituais. Se o cinema já mostrou isso, as novas mídias computadorizadas parecem aprofundar essa cinestesia entre olho, mão, ouvido. Esse é o ponto que mais aproxima o cinema da psicanálise[1].

 

O mundo ordenado só pelas palavras se torna um perigo quando a palavra aparece como expressão de um pensamento descorticado (sem conexão com o córtex cerebral), numa hierarquia exclusivista onde ela subsumiria outras linguagens. Como refletiu Sabina Spielrein[2], nosso pensamento consciente é sempre acompanhado de um pensamento paralelo, orgânico, alucinatório, traduzindo o pensamento consciente em imagens. Essas imagens paralelas cinestésico-visuais dão a seiva de nosso pensamento consciente. Sem elas, nosso pensamento será desenraizado, "descorticado". Elas estão na origem de nosso pensamento e acompanhando constantemente nosso pensamento verbal, consciente, e são elas o nosso pensamento principal. Só temos consciência do começo e do fim de nosso pensamento. O resto se desenvolve no fora da consciência. Isso não quer dizer que esta forma imagética de pensar seja superior ao pensamento consciente. Abandonado a si mesmo, ela é suficiente para alguma adaptação no mundo, mas perderá seu caráter de pensamento criador, pois o elan de criar qualquer coisa, de fazer qualquer coisa no mundo, a direção absoluta e a concentração em direção às funções do real faltam a este pensamento, já que ele não é necessariamente um pensamento dirigido, pois se destina a trabalhar mais para si mesmo do que para os outros. Apenas de sua colaboração com o pensamento consciente pode-se engendrar uma obra criadora no mundo, pois ele deve se apoderar do pensamento não consciente e utilizá-lo.

 

Daí que é preciso passar pela castração para fazer um filme, mas é preciso acolher o feminino pós-fálico para criar o filme, recebê-lo e deixar-se fazer pelo filme. Cinema e psicanálise permitem a dupla expressão de um tempo cronológico, linear e unificador e de um tempo psíquico, crônico, múltiplo e aberto ao inesperado.

 

Quando a autora situa o último filme-ferramenta, Clube da luta, nos anos 1990, ela data esta época da queda do muro de Berlim ao 11 de setembro. Justamente o visionarismo de Fincher termina o filme de 1999, com a explosão de prédios em Nova York. A proposta de Hausen sugere que outros filmes possam representar outros tempos do devir histórico. A pergunta que faz na introdução é inspiradora: "O modelo proposto por Freud colide com a cultura do atual milênio? Cultura recheada do rápido e do eficaz, embora fugaz, self-service realizado pela ingestão da pílula do prazer imediato; cultura que proíbe a tristeza e obriga a alegria, e ao mesmo tempo, retira das pessoas muito do que, no genuíno do seu ser, poderia gerar-lhes essa mesma alegria: a justiça, a dignidade, o orgulho de ser um trabalhador e a honra de poder cuidar dos filhos e de si próprio. Será a psicanálise e os conceitos freudianos objetos de museu a serem expostos com honra, mas como representantes de um passado histórico?" (p. 17).

 

O tempo das redes sociais é o tempo do máximo de conexão social e o máximo de desconexão com o próximo, com o outro. Esta desconexão traduz um narcisismo de morte, sem afeto e autocentrado, uma não ética, onde sequer o dinheiro é almejado, ele é apenas uma consequência, mas sim o poder gerado pelo gozo de ser o número um. Parece que vai ficando para trás a ética do capitalismo do século xx que associava dinheiro e prestígio a trabalho e invenção ou uma ética mais antiga do esforço como no esporte, na valorização da competição pela capacidade, onde se perde ou se ganha com honra. Este é o lado negro sinistro do nosso admirável mundo novo da internet.

 

Uma visão mais otimista das redes reimaginariza a potência do social como não negadora da potência da natureza, geradora de uma rede de sustentação móvel e energética. O homem, por sua própria ação civilizatória, vem destruindo pela poluição ambiental o seu habitat preferido até agora, o planeta Terra, de uma forma quase irreversível. A subjetividade contemporânea tem que fazer uma rápida mutação para que o planeta continue a ser a casa das gerações futuras. Por isso assistimos ao fim da transcendência e dos saberes transcendentes na contemporaneidade e a valorização da experiência, do ritmo da vida como fundadores de uma nova imaginarização dos processos de simbolização que subjazem na potência do social, que leve em conta a multiplicidade e a complexidade da vida viva cotidiana das comunidades sociais e desacelere a hipervelocidade dos processos civilizatórios calcados na tecnologia de dominação guerreira e informacional. É necessário pensar como cada homem em seu cotidiano pode internalizar e realizar as ações necessárias à preservação de seu habitat e que ela não seja transformada em mero ato de consumo e consumação. A potência das redes virtuais e reais é o novo paradigma do social neste século xxi. Só assim o modelo proposto por Freud não colidirá com a cultura do atual milênio. Esta é uma resposta possível à indagação de Hausen. Mas, parafraseando Freud, em Mal-estar na cultura, quem poderá prever o que predominará?


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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