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Resumo
Resenha de Renato Mezan, Intervenções. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2011. 323 p.


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 LEITURA

Uma lente implicada e outras lentes [Intervenções]

An implied lens and other lenses

A coletânea publicada recentemente por Renato Mezan - Intervenções - revela, sempre na prosa cristalina e generosa com que o autor se dirige a seus leitores, o leque extremamente amplo de suas preocupações. O que torna a função do resenhista bastante complicada, bem como, ademais, a própria Apresentação com que o autor abre o volume. Na verdade, embora organizado em três partes (Cenas brasileiras, Novo, velho: a imaginação instituinte na cultura e no social e Pensando a atualidade), a variedade dos temas e das formas de abordá-los pareceu-nos ir bem além do que estes grandes títulos sugerem, embora cada um já se anuncie como bastante compreensivo. Mas mesmo assim... talvez seja um pouco demais.

 

Na Apresentação, Renato Mezan, já no primeiro parágrafo, justifica o título da coletânea, este sim, sem sombra de dúvida, apropriado: qualquer que seja seu assunto e qualquer a abordagem privilegiada, o autor coloca-se no meio de seu tema, de seu tempo e de seu panorama psíquico, social, cultural e político, e aí intervém, participando com seu próprio sopro dos ventos que nos varrem.

 

No segundo parágrafo, Mezan posiciona-se claramente acerca de certa modalidade de intervenção psicanalítica na cena da cultura, a chamada, desde os tempos de Freud, "Psicanálise Aplicada", mas opta pelo que, seguindo Fédida, pode-se denominar de "Psicanálise Implicada". Nossa posição coincide plenamente com o que nos diz o autor em defesa de uma intervenção do psicanalista que exerce sua "escuta" de processos e fenômenos fora do consultório com o recurso a uma lente - a "lente psicanalítica" - mais do que com o recurso aos saberes e conceitos da psicanálise. Em diversos textos, principalmente nos incluídos na primeira parte da coletânea, pudemos com facilidade reconhecer a lente psicanalítica em ação, no exercício da psicanálise implicada. Aliás, diga-se de passagem, a implicação e a intervenção derivam do mesmo étimo in(m): toda intervenção é, a rigor, uma posição implicada, e vice-versa, embora nem toda intervenção de um psicanalista, como Mezan, seja automaticamente psicanálise implicada. Outras lentes vão se fazendo notar e, em alguns casos, chamando a atenção para si mais que para os seus objetos.

 

Mas, certamente, é sempre de dentro que se pode escutar e ver, embora seja no movimento de transcender um excesso de instalação na coisa (vejam só o mesmo radical in(m) funcionando) que se abrem os espaços da escuta e da visão: é o "ir além do primeiro sentimento" de que nos fala Mezan. Poderíamos acrescentar: trata-se de ir além dos primeiros sentimentos e das primeiras ideias, mas sempre movidos por elas e pelos aspectos do "objeto" que as suscitaram, e que nos servirão de "pontos de partida para o que se poderá dizer". Em outras palavras, a lente psicanalítica é tanto um modo de recortar, realçar, dar relevo ao material, quanto um modo de deixar-se tocar pelo que Wilfred Bion chamava de "fato selecionado": um elemento do material em exame que, de repente, no decorrer da sessão, não apenas nos chama a atenção e nos afeta especialmente, como nos propicia uma reconfiguração de todos os elementos, até aí bastante caóticos, dispersos e turbulentos.

 

No campo da teoria da literatura e da crítica cultural, Auerbach chamava de Ansatzpunkt a este elemento que, destacado do conjunto de que faz parte, permite que este mesmo conjunto se reconfigure, revelando muito mais do que parecia dizer de início. Vemos uma nítida coincidência entre o "fato selecionado" de Bion e o "Ansatzpunkt" de Auerbach: ambos permitem que se dê a voz ao próprio objeto (nas palavras de Auerbach), em vez de falar por ele ou simplesmente traduzi-lo em nossa língua de estimação, em nosso caso, em psicanalês. A lente de Auerbach não era, stricto sensu, a psicanalítica, mas seu método de trabalho não devia em nada ao nosso.

 

De certa forma, se psicanálise implicada é o exercício de uma lente, mais do que a explicação psicanalítica dos fenômenos, ou a sua "tradução em psicanalês", poderíamos dizer que toda boa psicanálise é psicanálise implicada: nada mais desastroso que a psicanálise aplicada à clínica. Pobre do paciente submetido à psicanálise aplicada!

 

Contudo, resta uma diferença: nos casos bem-sucedidos de psicanálise implicada de processos e fenômenos socioculturais, os pontos de partida irradiam-se em dois ou mais planos. O próprio objeto em exame - um acontecimento noticiado pela imprensa, por exemplo - já é um fato selecionado que nos proporciona uma nova visão do conjunto de que foi extraído (uma dada conjuntura política ou cultural), e, ele mesmo, é interpretado com base em um de seus aspectos que chama a atenção e funciona como ponto de partida. Isto é evidente nos textos de Auerbach: cada obra e cada trecho de obra escolhidos na composição do livro Mimesis são em si um Ansatzpunkt e proporcionam outros que se irradiam para dentro da obra e para fora dela, na direção de um gênero, uma época e, ao fim e ao cabo, para toda a cultura literária ocidental realista.

 

Alguns dos textos de Renato Mezan , principalmente na primeira parte, em que se concentram suas interpretações dos faits divers da semana, ilustram ambos os processos, para dentro (uma interpretação do fenômeno), e para fora (um esclarecimento de seu contexto cultural, político e psicológico). Eventualmente, fazem em poucas páginas o percurso do mais singular ao mais universal, passando pelos particulares de uma dada conjuntura. São assim, suas análises da comoção causada pela morte de Mario Covas e da derrota de Marta Suplicy, texto no qual a nota de humor fica por conta da entrevista da conspícua senadora à revista Veja São Paulo; não é preciso muito mais que transcrever e assinalar suas respostas para produzir um efeito interpretativo impagável. O mesmo vale para a análise dos efeitos dos ataques disseminados do pcc em São Paulo sobre toda a população da cidade. É particularmente interessante o texto sobre a reação popular e da imprensa à reação de Luciano Hulk ao roubo de seu rolex, fenômeno a que se associa um segundo ponto de partida no mesmo texto de Mezan, a exposição na revista Playboy de Mônica Veloso, a ex-amante do senador Renan Calheiros, Sua Excrescência, no dizer de Mezan; sua aparição nua como veio ao mundo e disponível a todos os olhos, incluindo os de deputados, vereadores, e mesmo os de cidadãos comuns, sem cargo ou função pública, dá o que pensar, mais ainda se inesperadamente aproximado ao infortúnio do marido de Angélica! O mais curioso neste pequeno trabalho é que da junção de dois pontos de partida, que a imprensa havia "produzido" numa mesma semana, cria-se uma nova figura - "grifes vistosas e prazeres secretos" - o que o autor, com uma presença discretíssima da psicanálise, captura com sua lente implicada. Da mesma forma, a interpretação do sequestro seguido de morte em Santo André, transformado em espetáculo televisivo, nos pareceu psicanálise implicada. Igualmente esclarecedora do método é sua leitura minuciosa da carta do assassino psicótico de Realengo.

 

Já em outros textos desta seção não encontramos a mesma presença da psicanálise implicada: muitas vezes são bons textos de psicanálise aplicada - sempre com elegância e correção - em que a psicanálise comparece no contexto de alguma explicação: ora como psicanálise explicante, ora como ela mesma parcialmente "explicada", a partir da ocasião que o tema oferece. E outros, ainda, nos pareceram diatribes indignadas contra mazelas da vida nacional. Enfim, são outras, nestes casos, as lentes em ação.

 

Na segunda parte, a diversidade de temas e método nos pareceu bem maior (o título desta parte, igualmente, é o mais inespecífico), embora, claramente, a eles caiba o conceito de "intervenções". Encontramos algumas intervenções excelentes, mas que não são nem psicanálise implicada, nem aplicada, nem explicada, como os que versam sobre fenômenos judaicos, sobre os métodos das ciências e a pesquisa institucionalizada, bem como sobre os índices de avaliação das agências de fomento (Sobre pesquisadores e andorinhas e O fetiche da quantidade). Outro trabalho de relevo (Da poltrona à mesa de trabalho: a construção do caso clínico) focaliza o processo de escrita na clínica psicanalítica, uma questão multifacetada, epistemológica, teórica e ética da maior importância. Ao último capítulo da segunda parte - intitulada Novo, velho: a imaginação instituinte na cultura e no social, título que, apesar de sua amplitude, a nosso ver corresponde bem pouco à diversidade do material - voltaremos adiante, pois nos é de particular interesse.

 

Antes, porém, vamos à terceira parte - Pensando a atualidade. Novamente, uma diversidade grande e poucos textos - mesmo quando bons e instrutivos - que exercem a psicanálise implicada, embora a psicanálise aqui esteja bem presente, às vezes como tema (como o esclarecedor Quem tem medo do divã, uma boa introdução à psicanálise contemporânea para leigos de hoje em dia), às vezes como princípio explicativo (o capítulo sobre O nazismo e a erotização da morte, Perigos da obediência e o texto sobre King Kong, etc., bons textos de psicanálise aplicada a processos sociais e a filmes). Um lugar de destaque daria ao pequeno capítulo O poder no cotidiano, um exercício muito bem realizado de psicanálise explicante e explicada, dirigida, novamente, ao leigo.

 

No conjunto, foi a parte que mais apreciei. Por exemplo, na meticulosa resenha que elabora de um livro sobre a violência (Homens ocos, funesto desespero: a Psicanálise diante da violência), encontramos Renato Mezan em grande forma, falando com grande propriedade sobre temas relevantes e pondo sua notável erudição e capacidade de leitura a nosso dispor. Não podemos, também, deixar de mencionar o tocante trabalho, até aqui inédito e dedicado ao filho Francisco, Inimigos internos, sobre a constituição psíquica no que diz respeito a valores e ideais.

 

Mas não gostaríamos de encerrar esta breve apreciação sem focalizar um texto da segunda parte, Por que existem escolas de psicanálise? Ele toca em um dos nossos grandes interesses.

 

Uma das qualidades da escrita de Renato Mezan e de seu pensamento em psicanálise é a liberdade em relação a escolas e dogmatismos: Freud, sem dúvida e bastante, mas certamente outros autores sempre que oportunos e necessários (Fédida, Laplanche, Joyce McDougall, etc.). Na análise de casos e situações em que o primitivismo da mente está em clara evidência, há um recurso seguro, embora muitas vezes implícito, a Melanie Klein e aos kleinianos, com frequentes referências aos impulsos destrutivos, às ansiedades precoces e aos mecanismos de defesa mais estudados por eles. Coloca-se, assim, a questão das escolas, ou melhor, da diversidade em psicanálise.

 

Para Renato Mezan é necessário aprender com todos os grandes pensadores da clínica e da teoria psicanalítica, sem obediências dogmáticas e escolásticas. Sua forma, porém, de colocar a questão desta multiplicidade não nos convence totalmente. Sua principal compreensão das origens da diversidade parece-nos bem convincente: basicamente a "ampliação do escopo da clínica", muito além do que Freud fizera e imaginara. Crianças, psicóticos, narcisistas, até estruturas perversas, bem como a extensa e variada gama de casos limítrofes, toda esta clínica põe em questão os modelos metapsicológicos, psicopatológicos e "técnicos" inventados por Freud, ainda que as bases mais profundas da psicanálise se mantenham. A rigor, tudo isso, todas as variações, cabem no campo freudiano.

 

Já a segunda das razões aduzidas, a dispersão geográfica do movimento psicanalítico mundial, já não me parece tão relevante: basta dizer que na pequenina Inglaterra - em uma única Sociedade - consolidaram-se Anna Freud com suas fortes ligações com o grupo de Viena, em grande parte emigrado para os eua (os promotores da Ego Psychology), Melanie Klein, com seus aguerridos adeptos, muitos dos quais em atividade na América do Sul, e os "independentes", uma profusa variedade que inclui pensadores originais como Winnicott, Balint e Fairbairn. A Sociedade Britânica é a grande pedra no sapato de uma explicação "geográfica", mas todos os outros grandes centros - França, Argentina, diversas cidades decisivas nos eua em que reinavam Kohut (Chicago), Bion (San Francisco), a partir de certa data, Searles (Washington) - atestam a fragilidade desta linha de raciocínio. Da mesma forma, acreditamos que, além da morte dos chefes de escola, como Klein, Lacan, Hartmann e Kohut, outros fatores da própria clínica, bem como a maior maturidade da disciplina, vêm criando e exigindo espaços para autores como Green, Roussillon, Ogden, Ferro e muitos outros que não se confinam aos limites dogmáticos de nenhuma "escola".

 

Mas talvez nossa maior discordância em relação à proposta de Renato Mezan diga respeito ao "uso" por ele sugerido desses diversos pensamentos. Sem dúvida, na clínica encontramos pacientes "kleinianos", "freudianos", "bionianos", "winnicottianos", "balintianos", "kohutianos", e assim por diante. Não há como negar: "É impossível não perceber que tal paciente pode ser mais bem compreendido utilizando tal modelo teórico". Sim, mas vemos nisso, mais que uma evidência, um risco, o risco de saturação de nossa escuta por uma teoria "boa demais", "justa demais".

 

De fato, não acreditamos que nossa tarefa seja a de ajustar um paciente a uma teoria, qualquer que ela seja. Nossa "caixa de ferramentas", para usar as palavras do autor, não serve para encontrar a chave certa para tal ou qual parafuso. Isso seria... psicanálise aplicada: aplicada à clínica. Aliás, nossa relação com as teorias - tais como nos "ocorrem" na própria situação analisante - não nos parece tão pragmática e "utensilial" (se nos perdoam o neologismo) quanto a noção de "ferramenta" sugere. Há muito mais de nossa vida afetiva e intelectiva em jogo no campo transferencial e em nossa implicação nele. Muitas vezes, certamente, uma teoria nos "ocorre" na contratransferência (um paciente winnicottiano nos traz Winnicott à mente, por exemplo), mas uma das tarefas mais importantes da teoria na clínica é a de nos tirar de um campo transferencial-contratransferencial excessivamente fechado, um campo feito de implicações dominantes e de nenhuma reserva. Como pode ser interessante para nossa escuta levarmos um "paciente winnicottiano" para uma "supervisão kleiniana" ou "lacaniana"!

 

Ou seja, fundamentalmente, as teorias psicanalíticas podem nos servir - quando nos servem, o que nem sempre é o caso - para dar voz ao inconsciente do indivíduo que escutamos e, na medida do possível, tocamos com nossas interpretações e manejos. Jamais para enquadrá-lo em tal ou qual "tipo psicopatológico", montado na medida de nossa própria consciência, vale dizer, de nossa "ideologia psicanalítica". As teorias nos são indispensáveis, enfim, mas devemos renunciar em nossa "navegação pelos mares da clínica" ao excesso de "bússolas", e aceitar definitivamente que na psicanálise implicada nunca entraremos em um "porto seguro". A diversidade nos ajuda a viver na confusão e numa certa obscuridade, não a sair dela.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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