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Resumo
Resenha de Lucila de Jesus Mello Gonçalves, Na fronteira – das relações de cuidado em saúde indígena. São Paulo, Annablume/FAPESP, 2011. 123 p.


Autor(es)
Maurício Castejón Hermann Hermann
é psicanalista, acompanhante terapêutico, doutor em Psicologia Clínica pela usp e diretor do Attenda – Transmissão e clínica em at e psicanálise, autor do livro Acompanhamento terapêutico e psicose: articulador do real, simbólico e imaginário e organizador do livro O inconsciente e a clínica psicanalítica, ambos pela Ed. Metodista.

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 LEITURA

Uma psicanalista entre os índios

[Na fronteira – das relações de cuidado em saúde indígena]


A psychoanalyst among the Indians
Maurício Castejón Hermann Hermann

Lucila Gonçalves nos brinda com um livro inaugural acerca das relações entre saúde indígena e suas intersecções, tais como a antropologia, a política pública de atenção ao índio, a filosofia, a psicologia e a psicanálise, entre outros, tendo como ponto nodal o mapeamento de um território ainda pouco explorado pela pesquisa acadêmica em psicologia, a saber: o cuidado e a saúde às populações indígenas do Brasil. O livro de Lucila Gonçalves é resultado da pesquisa de mestrado defendida na Faculdade de Saúde Pública da usp, em 2007, e faz uma marca importante neste campo ainda carente de teorização, o que nos revela a força desta pesquisadora, preocupada em escrever um texto acadêmico, mas que extrapola os limites da universidade, pois mesmo sendo um livro sobre a saúde dos índios, realizado a partir de uma pesquisa de campo com os índios, foi escrito de modo a ser lido também pelos índios.

 

Não é à toa que a metodologia adotada é a pesquisa participante, cujo trato metodológico inclui uma preocupação legítima da pesquisadora em ir ao encontro do seu objeto de estudo: o mapeamento do território onde se dão as relações de cuidado à população indígena. Para além de uma tradição etnográfica, cuja preocupação maior é dar sustentação ao encontro com a diferença, Lucila Gonçalves opta por uma pesquisa que tenha como efeitos intervir na mesma realidade/campo onde o trabalho se realizou, sem deixar de se indagar continuamente de que espécie de participação se trata: "Uma vez em campo, em determinada qualidade, não há controle sobre como este se afeta e ‘exige' certa posição sua, muitas vezes representando um deslocamento da postura originalmente concebida. Que repercussões a presença do pesquisador engendra nos membros do grupo que se pretende conhecer, que tipos de comunicação podem se dar, qual o ‘apelo' dos sujeitos envolvidos?" (p. 48). E a autora continua: "O lugar de uma espécie de ‘intermediadora' foi se desenhando aos poucos, como se este campo, lembrando a expressão de Merleau-Ponty (1965), ‘exigisse' este lugar" (p. 53). É o que verificamos ao longo da pesquisa, pois sua presença, como intermediadora das relações ali presentes, permitiu mudanças importantes na rotina desta instituição.

 

O território escolhido foi a casai de São Paulo ou Casa de Saúde do Índio, instituição que cumpre uma função de acolhimento e abrigo para os índios/usuários e respectivos acompanhantes quando eles necessitam se submeter a tratamentos médicos disponíveis somente na cidade grande. Uma instituição que comporta consigo uma enorme complexidade... Como considerar a mudança de ambiente do índio, da aldeia à cidade? E como lidar com as diferenças culturais entre o índio e o homem da cidade, este último responsável pela organização da casai? E o encontro de etnias distintas em um mesmo espaço: seria possível estabelecer uma única categoria - O índio - e assim aniquilar as diferenças culturais entre etnias indígenas tão distintas?

 

À medida que a pesquisa avança, mesmo a despeito das diferenças culturais entre as etnias indígenas, a autora destaca quatro temas importantes oriundos das falas dos índios: alimentação, privacidade/convivência, atividades e o tempo, o que implica considerar certos aspectos do funcionamento e organização desta casai. Vejamos certas passagens colhidas do prazeroso caderno de campo da pesquisadora, de como se davam os arranjos, por parte dos índios, entre as regras impostas pela instituição e o desejo/necessidade dos indígenas.

 

A alimentação - tema que envolve restrições devido às indicações médicas e variações culturais - exigiu um encaminhamento institucional envolvendo uma índia Terena, do Mato Grosso do Sul, que foi eleita como representante dos índios para mediar junto à cozinha e, assim, estabelecer um cardápio semanal passível de sugestões e/ou críticas. Ainda dentro da alimentação, apareceu o ressentimento de alguns em ter que compartilhar do mesmo espaço físico para se alimentar - aspecto difícil, por exemplo, para os Kamaiurá - já que eles têm como hábito comer em lugares mais discretos, o que implica considerar variações culturais ligadas ao momento de comer.

 

A privacidade/convivência também colocou questões, tais como: como lidar com situações em que a convivência entre eles é forçada? E a necessidade de privacidade? É o caso, por exemplo, dos Suruí e os Zoró, tribos que carregam consigo uma história de inimizade e lutas... ou seja, dormindo com o inimigo em uma mesma casa! Ou o que pensar sobre a circunstância de compartilhar o mesmo espaço físico com algum desconhecido? Conforme as palavras da antropóloga Carmem Junqueira, "[...] desconhecido, antes que se prove o contrário, é sinônimo de inimigo" (p. 68). O tema da privacidade também aparece, o que convoca a equipe da casai a programar a distribuição dos quartos, bem como compor divisórias neles, conforme sugestão posterior da pesquisadora. Também é verdade que alguns índios de etnias distintas constituíram amizades importantes, tal como uma índia Macuxi, de Roraima, que ficou muito próxima de um casal Pankararu, de Pernambuco.

 

O tema das atividades também se fez presente, seja pela sua ausência no cotidiano da Casa, seja pela necessidade de fazer e/ou criar algo. Constatou-se que muitos acompanhantes também adoeciam e uma hipótese colocada pela autora é a completa ausência de atividades na rotina da casa. É comum usuários e acompanhantes passarem horas a fio deitados em suas respectivas camas, esperando o tempo passar. A ausência de atividades da casa contribuiria para um estado de desânimo e tédio, ligado à ruptura com a vida comunitária?

 

Por fim, o tempo foi considerado um tema importante. A pressa da cidade, onde time is money, implica considerar uma relação muito diversa do homem branco e do índio com o tempo. O tempo do índio não é o da produtividade capitalista, mas sim o tempo marcado por um ritmo que permite contemplar a natureza e observar pausadamente o seu redor, condizente ao tempo necessário à vontade de conhecer. Deste modo, como entender uma doença que acomete um corpo, na cidade grande, e interpretada por médicos que muitas vezes respondem às cobranças de produtividade capitalista? Um índio prioriza o encontro com o outro, o tempo disponível para o outro é diretamente proporcional ao compromisso estabelecido com este: "[...] a gente não é como eles pensam, eles trabalham aqui, só vendo o lado deles. Dinheiro, talvez o trabalho deles, né?" (p. 73).

 

Outras questões foram levantadas pela pesquisadora, pois problematizar a saúde indígena, obrigatoriamente, comporta uma discussão acerca daqueles que cuidam - a equipe de profissionais da casai. Como pensar o encontro com o índio, em um contexto institucional onde a questão da saúde se faz presente? Como pensar essas relações de cuidado e de comunicação, entre os profissionais de saúde e os índios? E a revelação de um diagnóstico, bem como a aceitação do protocolo de atendimento (e o que isto implica), procedimentos médicos que são distantes da cultura indígena?

 

Assim, a autora destaca a importância de que os trabalhadores da área da saúde indígena tenham conhecimentos sobre as culturas indígenas, pois isso facilita a aproximação com os índios, uma vez que o fenômeno chamado de adoecimento do corpo assume acepções absolutamente distintas umas das outras quando se consideram as variações culturais. A vivência de dor traz consigo valores psíquicos e culturais. Assim, conforme pergunta a antropóloga Cynthia Sarti, como estar sensível àquilo que não é perceptível de imediato, mas que tem implicações subjetivas importantes quando ocorre uma vivência de dor?

 

Lucila Gonçalves também nos alerta para o fato de que existe uma grande rotatividade entre os profissionais que compõem as equipes de saúde indígena, o que levanta uma série de desafios para o poder público. Participar de uma equipe de saúde implica lidar com desafios diários, tais como manejar situações de conflito, dar conta da burocracia, se submeter à capacitação profissional, enfim, aspectos do trabalho que se fazem presentes em qualquer serviço de saúde. Além disso, há especificidades importantes no trabalho com a população indígena, o que dificulta ainda mais a rotina. Por diversos motivos, explicitados pela autora, há um clima tenso permanente na instituição. Lucila Gonçalves formula a questão: "como ter condições de abertura para atender pessoas tão diferentes em clima de ameaça constante?" (p. 83).

 

Neste contexto, conclui-se que médicos e enfermeiros não devam se tornar antropólogos ou psicólogos, mas que, de todo modo, eles possam ter uma postura aberta para a escuta, para possibilitar ao índio um espaço para falar de si e de sua experiência de adoecimento. Escutar e aprender com o outro, através daquilo que está sendo comunicado sobre a experiência de adoecimento e, dentro deste contexto, relativizar o próprio saber, de modo que ele não se sobrepuje àquilo que está sendo transmitido. Dito de outro modo, vale mais se ater à qualidade do encontro com o índio do que tomá-lo como objeto de confirmação de dogmas teóricos ou de saberes acadêmicos. Assim, foi possível a Lucila Gonçalves, como pesquisadora participante, abrir-se a uma nova questão. Como a psicologia e/ou a psicanálise pode contribuir para a capacitação dos profissionais de saúde, no que toca a "postura de ouvir" (p. 88)?

 

Sobre este ponto, a pesquisadora discorre sobre a intermediação, ao retomar a dimensão subjetiva da comunicação inconsciente. Lucila Gonçalves se despe para o encontro com a diferença ao se lançar, com o corpo, com os sentidos, com o próprio inconsciente, enfim, no campo para a escuta do outro. Amparada principalmente pelas reflexões dos psicanalistas D. W. Winnicott e Masud Khan sobre as comunicações silenciosas, que tomam o sonhar e o viver experiências da mesma ordem, Lucila Gonçalves lança mão de dois sonhos, como um emblema de uma realidade ali partilhada. Entende e produz insight sobre o que mediou e, deste modo, utiliza o próprio sonho como um representante do que há de subjetivo presente nas relações. Após uma intermediação entre os índios e a equipe, percebeu-se que havia ali reivindicações legítimas, advindas de situação de conflito. A mediação teve efeitos importantes para a equipe técnica e para os índios. Ela conclui que é capital para o trabalho com os índios uma disposição para a escuta, para além dos ouvidos, ou permitir-se ser afetado pela diferença, sem sentir-se ameaçado ou destituído de seu saber.

 

Lucila Gonçalves conclui seu trabalho com importantes observações, que vão para além da especificidade da saúde indígena. Além de ser necessário dar voz à população indígena, de modo que ela participe da construção e execução da política pública a ela dirigida, a autora destaca a importância da formação dos profissionais de saúde, dando mais espaço aos aspectos do que nomeou "recursos humanos" (p. 83), postura de abertura e escuta, que, de seu ponto de vista, é ontológica: "O que se destaca nesta pesquisa diz respeito à importância da abertura para o outro, como um elemento presente na condição humana, sem a qual talvez não haja comunicação. Nesse sentido, a pesquisa traz reflexões que dialogam com um campo mais amplo, para além do campo da saúde indígena, que é o do entendimento do outro como outro, sendo índio ou não" (p. 104).

 

Ora, a recomendação da participação dos usuários na construção e execução da política pública já foi contemplada, por exemplo, no trabalho de David Cooper em relação ao campo da saúde mental, denominado Psiquiatria e antipsiquiatria. Este autor, ao problematizar as relações de poder entre médico e paciente em uma instituição psiquiátrica, propõe a horizontalização das relações institucionais. Como o usuário gostaria de ser tratado? No campo da saúde mental, tal recomendação está consolidada, tal como se percebe no próprio movimento da luta antimanicomial. As recorrentes assembleias dos familiares e usuários atestam esta conquista.

 

Aqui, mesmo parecendo que a recomendação de Lucila Gonçalves fosse um tanto ingênua, porque são questões já amplamente discutidas pelo sus, no que tange aos povos indígenas, este apontamento parece um tanto urgente. Como exemplo disso, temos a notícia veiculada no jornal Folha de São Paulo: "Escola indígena tem dificuldade extra no Enem" (3 out. 2011, caderno Folhateen, p. 5). A reportagem aponta para os impasses que a Escola Estadual Txeru Ba e Kua-i sofreu no último Enem, visto que seus alunos não têm o português como primeira língua. Esta escola, localizada dentro de uma comunidade indígena do município de Bertioga, foi considerada a pior do Estado de São Paulo. Caberia uma escola indígena se submeter aos mesmos critérios de avaliação presentes nas escolas do homem branco? Parece que este fato valida ainda mais a recomendação de Lucila Gonçalves, bem como evidencia que tal recomendação não deveria ser restringida somente ao campo da saúde.

 

Este livro me emocionou. Sua leitura evocou uma série de questionamentos sobre temas fundamentais da saúde pública, mas, mais do que isso, abriu minha atenção para a possibilidade de o psicólogo e o psicanalista atuarem em um campo que tradicionalmente foi ocupado pelos antropólogos, enfermeiros e médicos. Um belo exemplo de como os instrumentos da psicanálise podem ser aproveitados para além da clínica strictu sensu, visto que Lucila Gonçalves vai ao encontro do outro, despojada de pré-conceitos, aberta para a escuta ao índio. De acordo com Timóteo Verá Popyguá: "Em vez de depender do Juruá (homem branco), eu queria parceria" (p. 59).


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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