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Resumo
Resenha de Heitor O’Dwyer de Macedo, Cartas a uma jovem psicanalista. São Paulo, Perspectiva, 2011. 321 p.


Autor(es)
Tales A. M. Ab´Saber
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professor do curso de Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (USP). É autor de O sonhar restaurado – formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Prêmio Jabuti 2006).

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 LEITURA

Forma literária e forma de um psicanalista

[Cartas a uma jovem psicanalista]


Literary form and the form of a psychoanalyst
Tales A. M. Ab´Saber

Uma das questões fascinantes a respeito da transmissão da psicanálise é a da natureza plural, sempre indefinida, de qual é o seu gênero literário, qual o fundamento da sua forma de escrita, de sua notação. Afinal, a psicanálise, que só se expressa através da plena utilização da linguagem, possui alguma forma, algum gênero, algum modo especial e talvez essencial de apresentação? E, se não, então o que esta pluralidade linguageira e literária da disciplina revela a respeito do seu objeto, sobre a relação mútua e mutativa de um paciente e seu analista diante da experiência do inconsciente?

 

A questão nos remete aos analistas que pensam a psicanálise como uma ciência literária, que aprecio particularmente, como, por exemplo, e entre outros, M. Masud Khan, Radmila Zygouris, Jean-Bertrand Pontalis, Adam Phillips e o último Bion. Na formulação e na comunicação psicanalítica, conceituação e arte literária - linguagem escrita em um grau alto de consciência e reflexividade - não se separam de modo nítido, e, acredito, um analista pode ser tão mais interessante quanto melhor escritor ele de fato chegar a ser. Embora o lugar central da psicanálise seja sobretudo oral, e ela seja de fato uma arte da fala, o lugar da escrita em sua fatura é igualmente decisivo para o seu desenvolvimento, bem como para o seu impacto na vida mais ampla da cultura. E, deste ponto de vista, a psicanálise se confunde, em sua teorização fundamental e primeira, abertamente com os poderes e as características da linguagem próprias da literatura.

 

Freud, o psicanalista, mas também o escritor ganhador do prêmio Goethe de literatura alemã, tinha clara noção deste paradoxo central de sua disciplina, uma ciência literária, e desde o primeiro momento de seu imenso trabalho, ainda em 1895, nos Estudos sobre a histeria, ele já levantava, de maneira entre espantada e naquele momento ainda incômoda, a questão da aproximação excessiva da notação psicanalítica e da linguagem de seus casos da literatura, e seu pendor à ficção. Também ele próprio, como sabemos, ao longo de sua vida, experimentou uma infinitude de gêneros de transmissão psicanalítica.

 

Porque a psicanálise pode ser transmitida pelo artigo teórico, mas também pelo grande tratado; ou pelo pequeno tratado. Pelas comunicações orais, sejam conferências, como as de Freud, ou seminários, como os de Lacan. Por um ensaísmo mais livre ou pela crítica, crítica literária ou de artes; pelos vários tipos de ficções psicanalíticas existentes, pelos diários clínicos e pelas verdadeiramente inúmeras possibilidades de aproximação e concepção de um relato de caso, esta ficção psicanaliticamente privilegiada. Pelo paper formatado institucionalmente, ou pelo fragmento inspirado. Freud, em níveis e escalas diferentes de sua própria obra, exercitou todos esses registros de linguagem, esses gêneros psicanalíticos, para explicitar e sustentar a sua psicanálise em seu mundo. E manteve a forte conceituação psicanalítica no plano da linguagem comum, elevada pela escrita, embora vários seguidores seus tenham tentado o canto do cisne de algum modo de matematização da psicanálise, na tentativa discutível de torná-la mais científica. Além disso, o cuidado, a intensidade e a riqueza de questões que perpassam a sua imensa correspondência, a começar por aquela que foi fundamentalmente fundadora da psicanálise, com Fliess, simplesmente criaram uma segunda obra freudiana, a standard epistolar de Freud, em diálogo com seus interlocutores, um verdadeiro duplo, mais pessoal e revelador, de sua própria monumental obra teórica pura.

 

O livro de Heitor O'Dwyer de Macedo, Cartas a uma jovem psicanalista, uma engenhosa imbricação de ficção e ensaísmo psicanalítico, é uma bela e muito prazerosa solução - melhor seria dizer resposta - para este problema da escrita psicanalítica e sua linguagem, mais um mistério do que um dilema, que o autor considera, em grande respeito ao leitor, em um nível alto: "Faz alguns anos, passei uma tarde no campo em Aix-en-Provence, decidindo sobre o ritmo de uma frase de um ensaio que estava escrevendo. Posteriormente, constatei que se tratava de escolher entre um ponto e uma vírgula. Durante quatro horas, passeando com amigos, brinquei com essa alternativa". E, ainda, do ponto de vista da fonte de toda escrita psicanalítica: "Penso que sempre se deve escrever sobre psicanálise a partir do que constitui você mais singularmente como psicanalista. O paradoxo é que você precisará de muito tempo para reconhecer sua maneira pessoal e única de exercer este trabalho" (p. 220).

 

E, apesar de, ou talvez por desejar mesmo, atingir um leitor que esteja em iniciação na psicanálise, posso garantir que o livro é, em minha opinião, extremamente interessante, inteligente e revelador, relevante em muitos aspectos significativos, e até surpreendentes, também para psicanalistas mais experientes. Isso se deve à radicalidade e ao rigor das experiências de psicanálise, uma espécie de psicanálise íntima, do consultório e do analista em trabalho, trabalho de ser analista e de ser gente sendo analista, que o livro verdadeiramente traz à luz.

 

O livro é, de fato, totalmente afinado com a ideia de escrever a partir do que constitui singularmente o analista, e, talvez exatamente por isso, alcance um grande interesse geral. Nas palavras simples e precisas do autor sobre a sua estratégia de forma e de comunicação: "Pensando no livro de Rilke, Cartas a um jovem poeta, decidi que esta forma não universitária convinha perfeitamente para apresentar o que a psicanálise é para mim. A ambição inicial era que, ao ler essas cartas, um jovem leigo pudesse construir uma ideia precisa do que são a clínica e a teoria psicanalíticas e, eventualmente, ver despertado seu interesse pela obra de Freud" (p. xix). Assim teve início um projeto, inventivo, e apoiado mesmo sobre o modo anterior de um grande escritor, de tornar precisas e acessíveis teoria e clínica psicanalíticas - o que poderia parecer generosidade excessiva que se aproximasse da ingenuidade teórica - mas que o golpe de espírito da forma e da liberdade do analista com sua matéria mais pessoal, das muitas imbricações do trabalho de análise, sua comunicação e a experiência encarnada do inconsciente, dos pacientes e de seu analista, e seu profundo e também encarnado repertório teórico, tornaram realizado, para nossa alegria.

 

A liberdade de escrita e pensamento da forma em psicanálise, a possibilidade de inventarmos nosso relato clínico ou teórico na linguagem humana em suas potências mais livres evidentemente, não é um dado apenas estético e superficial do trabalho de um psicanalista. Ela diz respeito, muito provavelmente, à própria liberdade e rigor do pensamento e do ser mais íntimo do psicanalista, em seu estado de clínica, como dizia Deleuze a respeito dessas coisas. Winnicott, também um escritor especial de psicanálise, dizia provocativamente que um analista que não sabe brincar não sabe analisar, e eu acredito, de meu lado, que um analista que tem plena liberdade de escrever deve ter uma boa margem de liberdade para pensar e analisar. O livro de Heitor é de fato uma clara demonstração dessa hipótese.

 

Todavia, se o leitor pressuposto do texto deveria ser um jovem inteligente, porém leigo, logo as coisas se complicam, na direção da verdade das várias dimensões próprias da psicanálise contemporânea, e sua vida teórica já avançada: os amigos pessoais de Heitor não compreendiam passagens e raciocínios psicanalíticos do livro, como deveriam entender pelo projeto de transparência que o fundou. Os leitores mais próximos não compreendiam passagens que para o autor eram autoevidentes. Assim ele redescobre, como muitos de nós já vivenciamos em vários momentos, certa irredutibilidade ao mundo da vida cotidiana da lógica e da cadeia axiológica da psicanálise: "Em outras palavras, se o que me parece banal e simples levanta dificuldades, é porque se trata de uma banalidade que se desloca num campo em que a evidência dista de ser evidente: a aceitação da sexualidade infantil, do desejo de assassinato, do ódio, da imbricação entre loucura e amor, entre loucura e criação - e a aceitação destes dados como sendo o tecido constitutivo da sensibilidade e do psiquismo humanos" (p. xx). Aí esta a natureza radical, como necessariamente costuma ser o melhor pensamento em psicanálise, do livro.

 

O fato é que o livro avança pela história da psicanálise, as referências de pensamento e de humanidade profundas de seu autor, e os problemas mais surpreendentes da vida clínica psicanalítica de hoje, através de suas cartas, verdadeiros ensaios de psicanálise contemporânea, enviadas a uma jovem psicanalista em pleno desenvolvimento. A duplicidade interessante do analista em desenvolvimento projetado, espelhado em uma jovem analista virtual, que também é o próprio narrador, um psicanalista muito experiente, é uma das riquezas do livro, um de seus achados interessantes, dado a partir de sua forma. Com esta construção, ficcional, o livro permite ao seu narrador refletir sobre a noção de experiência e de ingenuidade no trabalho do psicanalista, no recebimento analítico de um paciente, e a necessária imbricação destas duas dimensões do sentido de si, a sua mútua necessidade. Em algum momento o analista mais velho comenta mesmo com a jovem interlocutora: "Você pede desculpa por sua ingenuidade. É verdade que você é ingênua. Mas isso é uma qualidade. Os que são indiferentes a tudo não são, ou não são mais, feitos para este trabalho. Mas como o trabalho do psicanalista é uma prática do poder, é fundamental que você se exercite em prever, em antecipar os movimentos transferenciais, as armadilhas que, inconscientemente, seus pacientes armarão em vários níveis da relação deles com você para que nada mude, para que a velha história se repita" (p. 110).

 

Multiplicadas nesta estrutura ficcional, da relação epistolar entre dois analistas de gerações diferentes, surgem as linhas de força principais que organizam a tessitura em muitas profundidades da obra. Estes campos de força da apresentação do analista Heitor de Macedo, de cinco naturezas diferentes, são unificados e se tornam um só no mundo da psicanálise em trabalho no corpo e na vida de um analista: 1) problemas complexos e íntimos da clínica, o ponto de partida e a matéria central do livro, envolvendo transferência, contratransferência, o inconsciente e o corpo sensível do analista, e a comunidade de analistas convocada, de um modo ou de outro, para cuidar de um paciente; 2) a principal linha de força do modo de um analista compreender e incorporar a história da psicanálise, suas grandes referências e influências; no caso de Heitor, os problemas e horizontes colocados por Winnicott e Ferenczi, Françoise Dolto, Piera Aulagnier, Joyce MacDougall, em conjunto com uma leitura particular de Lacan e tendo como grande enquadre, e ainda outro problema de teoria, o constante e fundamental diálogo com Freud; 3) a reflexão sobre a montagem do enquadre e da técnica psicanalítica e a sua relação íntima com os efeitos vitais que uma psicanálise produz no paciente e no analista, campos de sentido que não são técnicos, mas são necessários e teoricamente relevantes, como o humor, a amizade, a confiabilidade, a mutualidade... esta região, para mim uma das mais interessantes do mundo da psicanálise, implica uma ética do erotismo e da vida, do ponto de vista de Heitor, fundamental mesmo à possibilidade de sustentação do trabalho da psicanálise por um psicanalista; 4) problemas muito ricos de teoria psicanalítica contemporânea, com a enunciação do trabalho intelectual de uma série de analistas e pensadores, parceiros de hoje, e do modo como dão trabalho - no sentido mais generoso do termo - ao analista vivo Heitor de Macedo e o afetam; nesta dimensão de pensamentos do livro aparecem ensaios, resenhas e reflexões sobre obras poderosas, verdadeiramente interessantíssimas, de analistas e colegas de Heitor na França desconhecidos em nosso meio cotidiano de teorização psicanalítica, pessoas como Philippe Réfabert, Michel Neyraut, Loup Verlet, Françoise Davoine e Jean Max Godillière e o Claude Lanzmann do Shoá; e 5) ensaios de rememoração, entre o retrato e a elegia, dos analistas fundamentais da formação pessoal e humana de Heitor, talvez de longe os textos que mais digam respeito a verdadeiramente quem ele é, na leitura de sua própria história com Hélio Pelegrino, Gisela Pankow, Françoise Dolto e Victor Smirnoff.

 

Esta é a polifonia especial dos mundos que compõem e sustentam uma humanidade na forma de um psicanalista. São tantos os detalhes e questões de toda ordem que a experiência intelectual ampla de um analista chega a tocar, na forma multiplicadora própria do livro, as suas mil e uma cartas que nos são endereçadas, que tenho brincado, nos últimos tempos, de mantê-lo ao meu lado no consultório, e utilizá-lo por vezes como um pequeno livro oracular e adivinhatório, pequeno I Ching profano e teórico, que pode, pelo menos a mim, dar acesso a várias dimensões da humanidade e da técnica no mundo da psicanálise. Evidentemente um acesso que nada tem de normativo, ou prescritivo, mas que, ao contrário, convida à reflexão e à elaboração. De resto, as grandes obras em psicanálise, desde Freud, sempre possuíram este caráter.

 

Para encerrar este pequeno parecer, que de todo modo será sempre menor diante de uma obra de muita riqueza, evoco aqui o momento do primeiro espanto, de muitos que me ocorreram durante a leitura do livro e a convivência com ele nos últimos tempos. Logo no primeiro capítulo, a primeira carta, o narrador desenvolve suas reflexões sobre um caso que lhe foi enviado pela jovem analista. Em uma passagem de seus comentários, ele se pergunta por que, após ela ter feito um trabalho grande e difícil de contato com a vida psíquica da paciente na primeira sessão, ela marcou o encontro seguinte para apenas depois das férias escolares. Heitor considera esse encaminhamento "um ato sintomático da analista", que, com ele, se inseriu na série daqueles que falharam com a paciente, que a abandonaram ao longo da vida: "[...] Vou lhe falar então dos atos sintomáticos do analista durante o tratamento. A maioria das vezes, eles são induzidos pelo material trazido pelo paciente. Isso quer dizer que, inconscientemente, o paciente ‘deseja' a repetição do trauma e que o caráter muito arcaico do material - que geralmente coloca em primeiro plano os sofrimentos da criança ou mesmo do bebê que ela foi - mobiliza no analista o que ele recalcou de seus conflitos mais primordiais. Perguntamos então: mas o psicanalista não deveria, graças a sua análise, estar ao abrigo destes retornos do recalcado? Se evoco esta pergunta é porque ela circula como obviedade em qualquer comunidade analítica, claro que partindo dos seus membros mais medíocres, aqueles para quem, é óbvio, a passagem pelo divã não foi de grande ajuda. [...] Porque, embora erros possam vez por outra ser evitados em alguns tratamentos, certos erros são necessários, inevitáveis. Como tratar o real da devastação dos traumas sofridos se eles não se apresentarem no real da relação entre analista e paciente, essa relação que, no nosso jargão, chamamos o terreno da transferência? [...] Desse ponto de vista, pode-se dizer que, inconscientemente, o paciente convoca ativamente e de forma insistente esse reaparecimento, tentando implicar o terapeuta no seu mundo psíquico. Acho fundamental que o analista se deixe apanhar nesta teia significativa. [...] Este é o aspecto vivo da repetição inconsciente, o aspecto comandado por Eros" (p. 2).

 

Em primeiro lugar, espanta a capacidade sintética que a inteligência da forma epistolar permite de ir diretamente ao ponto, de abordar dimensões do trabalho da psicanálise e sua teoria extremamente complexas, difíceis de serem encarnadas, que implicam toda a vida de um analista com a psicanálise. Em segundo lugar espanta a eleição estratégica desta questão clínica, que articula trauma, contratransferência, teoria do arcaico, inconsciente do paciente e inconsciente do analista, e a figura banida, na má concepção do que é a psicanálise, do erro do analista, da função clínica do seu sintoma, e que, acredito, condensa em si toda a história do desenvolvimento psicanalítico no primeiro século da existência da disciplina, pelo menos na direção histórico-teórica que privilegio. O livro a partir daí será o relato biográfico, e teórico, do processo de inscrição do analista narrador nesse saber radical. Em terceiro lugar, a referência na passagem aos impasses da comunicação entre os colegas analistas - e o mal necessário de suas instituições - indica, de modo condensado, a presença de uma verdadeira vida de experiência com a psicanálise, que chegou a ganhar plena voz e o mais claro posicionamento.

 

Como já disse, o livro esta cheio de comunicações de plena densidade clínica, teórica e humana como esta.

 

Devo afirmar que, também, em algum ponto ou aspecto da constelação psicanalítica de grande amplitude apresentada por Heitor simplesmente discordo dele... Por exemplo, no sensível capítulo a respeito do dinheiro no trabalho psicanalítico, no qual Heitor expressa com clareza as contradições e a dupla valência que o dinheiro tem no trabalho analítico - do ponto de vista do analista remetido à realidade psíquica do paciente, do ponto de vista do paciente à estrutura do setting, no campo da lei simbólica -, embora suas proposições sejam muito sensatas e provavelmente verdadeiras a respeito de como proceder na construção do enquadre, eu, que sou um psicanalista marxista, acredito que a dimensão de estrutura simbólica do próprio dinheiro, a sua natureza específica de relação social e não de coisa neutra da natureza humana, mas de entidade histórica implicada e também sintomática, deva também ser considerada em uma psicanálise, de acordo com a posição de cada um de nós nos jogos próprios de uma dada sociedade de classes... A posição do sujeito sobre a posição traumática do seu lugar no mundo desigual - e por vezes muito violento - do dinheiro, uma relação social, simbólica, é de enorme interesse, não apenas para mim, mas, principalmente, para o próprio paciente, e lidar com ela certamente favorece a dimensão dialética latente na prática da psicanálise. Mas esta é sem dúvida uma longa discussão.

 

Também, em conjunto com a imensa vitalidade e sabedoria psicanalítica do livro, de modo inevitável por sua própria estrutura de forma, a do diálogo epistolar entre duas gerações de analistas, ele acaba por disseminar um estranho subtexto, contra as suas intenções manifestas mais claras, de um pequeno acento na posição de autoridade do homem que já viveu e pode então dar alguns conselhos... Na verdade esta valorização natural da posição de autoridade do analista mais experiente se verifica na relação emocional muito intensa e também de valor sutilmente hierarquizado entre o próprio Heitor e seus pais psicanalistas, evocada nos impressionantes e pungentes relatos do livro - apesar de o lindo trabalho com Victor Smirnoff e também com Françoise Dolto ser verdadeiramente o oposto disto e, sobre a última, por exemplo, Heitor escrever: "a discussão sempre era possível, animada, entusiasmada. Nunca uma posição de saber, nunca. No lugar disso o incentivo para aprofundar uma elaboração, ou a confirmação de nossa maneira muito pessoal de navegar clinicamente" (p. 17).

 

Pontos como estes devem acontecer quando se trata de obra de grande coragem e liberdade na exposição de si. Não são relevantes diante do que este complexo, inquieto e muito generoso livro nos proporciona pensar de fato. Por fim, quero apenas testemunhar que, também a mim, que tenho grande interesse na cultura brasileira dos anos de 1960, e no processo trágico da nossa vida social pós-ditadura militar, me pareceu absolutamente fundamental a rememoração do homem e psicanalista que foi Hélio Pellegrino, que para Heitor estava "na origem de tudo", da sua relação com a psicanálise e principalmente "consigo mesmo", com o seu trabalho de investimento social na experiência do inconsciente, seu convite a engajar "o sujeito no pensamento sobre o poder", e sua criação vital de um espaço político entre a psicanálise e a vida. E, como no dia em que Heitor recebeu a notícia de sua morte, a lembrança da história de Hélio também me lançou em uma profunda vontade de chorar.


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