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Autor(es)
Andréa Carvalho

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

Deborah Joan de Cardoso

Silvio Hotimsky


Notas

1 Bauman sobre Bauman, p. 52.

2 A expressão “Entre Cilas e Caribdis” equivale, entre outras, a “Entre a cruz e a espada”, no sentido de evitar um perigo e cair em outro. Alu- de também à Odisseia de Homero, onde Ulisses transpôs vários peri- gos para retornar à cidade de Ítaca, como passar com seu navio por Caribdis (um turbilhão) e Cilas (um rochedo), considerados grandes monstros marinhos na mitologia greg.

3 Termos usados por Bauman em seu livro de ensaios Confiança e medo na cidade (Relógio d’Água, Lisboa, 2006) para se referir a pa- drões de interação social em que existe uma forte propensão a mistura, aceitação e valorização da alteridade e das diferenças (mi- xofilia); e seu contrário, o temor de estar em copresença física com desconhecidos, que representam um perigo, e são vistos como des- classificados, o que conduz à recusa de contato e à reclusão desses “estranhos” (mixofobia).

4  Orig. The Antichrist [1888], Prometheus Books, 2000, p. 4. Em por- tuguês, em F. Nietzsche, O Anticristo, in O Anticristo e ditirambos de Dionísio, São Paulo: Companhia das Letras, 2007

5  Orig. Ecce Homo [1888], Penguin Books, 1979, p. 97. Em portu- guês, disponível em

6  Orig. Thus spoke Zarathustra [1883/1885], Penguin Books, 2003, p. 204. Em português, disponível em .

7  Ver Günther Anders, Wir Eichmannsöhne [1964, 1988] (Nós, filhos de Eichmann), aqui citado da edição em francês, Nous, fils d'Eichmann, Paris, 2003, p. 47.

8 Eugène Enriquez, “L’idéal type de l’individu hypermoderne: l’individu pervers?” in Nicole Aubert (ed.), L’individu hypermoderne, Érès, 2004, p. 49.

 


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 ENTREVISTA

A certeza da incerteza

The certainty of uncertainty
Andréa Carvalho
Bela M. Sister
Danielle Melanie Breyton
Deborah Joan de Cardoso
Silvio Hotimsky

Realização: Andrea Carvalho, Bela M. Sister, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan de Cardoso, Silvio Hotimsky e Susan Markuszower

Tradução: Susan Markuszower

 

Um dos pensadores mais lidos na atualidade, Zygmunt Bauman tem contribuído para reflexões importantes nos mais diversos campos do conhecimento: da sociologia à política, da psicanálise à filosofia, da ética à estética... Sociólogo de formação, Bauman procura compreender a comunicação e as relações entre os homens acreditando ser possível a sua transformação.

 

O pensamento não muda o mundo, mas pensar o mundo é fundamental, pois a partir dele podem-se extrair princípios para uma possível intervenção social. E é preciso intervir. A sociedade sempre pode e deve ser melhor. "Existe a beleza e existem os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades dessa tarefa, jamais gostaria de ser infiel, seja a estes, seja àquela"[1]. Inspirado em Camus, esta é a ética que perpassa a obra de Bauman, também muito influenciada pelas questões morais da filosofia de Lévinas.

 

Nascido na Polônia em 1925, teve que se refugiar aos quatorze anos de idade, junto com sua família de origem judaica, devido à invasão nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Foram para a Rússia soviética, onde Bauman estudou e mais tarde se engajou numa unidade militar. Ao final da guerra, retornou à Polônia, completando seus estudos na Universidade de Varsóvia, onde passou a lecionar.

 

Em 1968, numa onda antissemita do governo polonês, bauman teve livros e artigos censurados e ainda foi afastado da Universidade. Suas ideias e sua ascendência judaica não agradavam às autoridades então dominantes, assim como a de muitos outros intelectuais. Novo exílio. Foi para Israel, onde por três anos lecionou na Universidade de Tel Aviv. Depois, convidado como professor titular pela Universidade de Leeds , mudou-se para a Inglaterra, onde reside até hoje.

 

Apesar das dificuldades e sofrimento devidos à condição de ser estrangeiro, Bauman é grato às contrariedades vividas em sua história, pois considera que foi essa condição que lhe proporcionou a oportunidade de um pensar mais livre, aprofundado e criativo.

 

Foi com extrema rapidez e simpatia que Bauman concordou em conceder uma entrevista para Percurso via e-mail. Quando enviamos nossas perguntas, em maio de 2011, estava em viagem pela Europa, dando palestras em diferentes países, com pouco tempo para se debruçar sobre elas, mas, mesmo assim, nos intervalos de que dispunha, foi respondendo uma a uma, enviando-as em blocos, até finalizá-las.

 

Voltado para as questões da sociedade contemporânea, Bauman revela-se um intelectual perspicaz e sem restrições, que transita com a mesma seriedade e o mesmo olhar crítico sobre os mais diferentes autores e temas.

 

Para ele não existe sociologia neutra, e não abre mão de seus valores humanitários no emaranhado da sociedade "líquida", como prefere chamar a sociedade pós-moderna em que vivemos. O termo "líquido" é um de seus conceitos mais conhecidos, adotado para nomear a sociedade pós-moderna, e diferenciá-la da modernidade, sólida. Metáfora da fluidez do mundo contemporâneo globalizado: um mundo movido pela força da mudança e liquidez, dominado pelos fenômenos de massa e de consumo, que de maneira incessante transformam os padrões políticos e econômicos. Mundo que volatiliza os valores tradicionais e os padrões culturais da sociedade, transformando a configuração das relações humanas.

 

O individualismo, o medo, a incerteza e a desconfiança dominam os tempos de hoje!

 

A aposta na maior liberdade individual em detrimento da segurança coletiva constitui, para Bauman, a principal fonte do mal-estar atual, e aqui podemos observar como ele acompanha as ideias de Freud em Mal-estar da civilização, invertendo sua direção, e reconhece sua "dívida" para com o fundador da Psicanálise.

 

Estudioso do Holocausto, aponta como este fenômeno só poderia ter acontecido, da forma como aconteceu, na modernidade. Racionalidade, controle, busca da ordem etc. são ideais que levam ao autoritarismo. E o Holocausto se deu em sua forma mais burocrática possível. Mas o fato de ele ter tido todas as condições para acontecer não quer dizer que fosse inevitável, assim como o fato de ter acontecido não implica que não possamos vivê-lo novamente. Está aí um alerta!

 

Foi com seu livro Modernidade e Holocausto que recebeu, em 1989, o prêmio Amalfi; e, em 1998, o prêmio Adorno, pelo conjunto de sua obra.

 

É admirável sua contínua produção intelectual, e entre os inúmeros livros publicados em português, todos pela Jorge Zahar Editor, podemos mencionar, além de Modernidade e Holocausto (1998), O mal-estar da pós-modernidade (1998), A sociedade individualizada (2001), Amor líquido (2004), Medo líquido (2006), Vida para consumo (2008), Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos (2010), Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester (2011).

 

Ao pensar o mundo em que vivemos, procurando entender o discurso social contemporâneo, Bauman fornece a nós, psicanalistas, instrumentos importantes que nos permitem refletir sobre as novas formas de subjetivação e patologias psíquicas na atualidade. Que o leitor possa fazer bom proveito desta entrevista!

 

BELA M. SISTER

PERCURSO Em 1957, o senhor publicou seu primeiro livro. Desde então sua produção tem sido grande e já há algum tempo o Sr. tem publicado um ou mais livros por ano. Qual é a importância da escrita em seu pensamento, em sua obra e em sua vida? Para quem o Sr. escreve?

BAUMAN José Saramago, do meu ponto de vista um dos maiores escritores do nosso tempo, escreveu nos seus diários quando pressionado, como eu agora por vocês, o significado do trabalho de toda sua vida. Resumiu o seguinte: "o pequeno número de coisas apreciáveis que falei na minha vida não teve absolutamente nenhuma consequência, afinal das contas. E por que teria que ter alguma consequência?"

Conheço essa dor: apesar de não estar à altura da grandiosa obra de Saramago, meus sentimentos eram surpreendentemente semelhantes: quando eu, incomodado por entrevistadores, expressava meus insignificantes pensamentos que algum dia já foram iconoclastas, muito frequentemente via e pensava apenas em ícones destinados a ser esmigalhados pela vergonha e pelo remorso mas, em vez disso, retornavam menos pomposos e mais autoconfiantes que outrora. Saramago pergunta: "Falamos pelo mesmo motivo que transpiramos? Apenas por isso?" Suor, como sabemos, rapidamente evapora ou é lavado e "mais cedo ou mais tarde termina nas nuvens". Talvez as palavras, a seu próprio modo, tenham o mesmo destino. E, nessa ocasião, Saramago lembrava o seu avô, que, nas últimas horas de sua vida, se despediu das árvores que tinha plantado. Ele as abraçava e chorava porque sabia que não iria mais vê-las. É uma lição que vale a pena ser aprendida. Assim, eu abraço as palavras que escrevi, desejo-lhes uma vida longa e retomo minha escrita onde a tinha deixado. Ele acrescenta: "Não pode haver outra resposta". Sinceramente, eu concordo.

Ao receber o prêmio Príncipe de Astúrias, tentei explicar, mais para mim mesmo do que para os outros, para quem e com qual propósito escrevo. Há muitos motivos que me deixaram profundamente agradecido pela honra que me foi concedida, mas, entre esses motivos, o mais importante talvez tenha sido o fato de que minha obra tem sido classificada como parte da área de Humanas e como um esforço relevante para a comunicação humana. Durante toda a minha vida tentei praticar a sociologia conforme meus dois professores de Varsóvia, Stanislaw Ossowski e Julian Hochfeld, tinham me ensinado sessenta anos atrás. Eles me ensinaram a tratar a sociologia como uma disciplina do campo das Humanas cujo único, nobre e magnífico objetivo é capacitar e facilitar a compreensão humana e o contínuo diálogo inter-humano.

Isso me leva a pensar em outro motivo crucial da minha alegria e gratidão, naquela ocasião: a honra que me foi concedida pela minha obra ter vindo da Espanha, a terra de Miguel de Cervantes Saavedra, o autor do maior romance jamais escrito e, graças a esse romance, também o pai fundador das humanidades. Cervantes foi o primeiro a realizar aquilo que todos nós que trabalhamos na área de humanas tentamos, apenas com sucesso parcial e dentro de nossas capacidades limitadas. Como disse outro romancista, Milan Kundera, Cervantes mandou Don Quixote arrancar as cortinas remendadas junto com mitos, máscaras, estereótipos e preconceitos. Cortinas que cobrem firmemente o mundo que habitamos e que lutamos para compreender - mas essa luta está destinada a ser em vão enquanto não levantarmos ou arrancarmos a cortina. Don Quixote não foi um conquistador, foi conquistado. Na sua derrota, como Cervantes nos mostrou, ele elucidou que "tudo que podemos fazer frente a essa inescapável derrota chamada vida é tentar compreendê-la". Essa foi a grande e memorável descoberta de Miguel de Cervantes; uma vez feita, jamais poderá ser esquecida. Todos nós do campo das humanidades seguimos a trilha que essa descoberta nos apresentou. Graças a Cervantes estamos aqui.

Arrancar a cortina, compreender a vida. O que isso significa? Nós, humanos, preferiríamos habitar um mundo ordenado, limpo e transparente, em que o bem e o mal, a beleza e a feiura, a verdade e a mentira se encontrassem nitidamente separados um do outro e jamais se misturassem, para podermos ter certeza de como são as coisas, aonde ir e como proceder. Sonhamos com um mundo onde julgamentos e decisões possam ser feitos sem o árduo trabalho da compreensão. É desse nosso sonho que as ideologias nascem - estas cortinas cerradas que impedem o olhar pela falta de visão. Étienne de la Boétie chamou nossa inclinação para a impotência de "servidão voluntária". Cervantes indicou uma trilha distante dessa servidão para seguirmos, ao apresentar o mundo em toda sua realidade nua e crua, ao mesmo tempo desconfortável, mas libertadora: realidade da multiplicidade de significados e da carência irremediável de verdades absolutas. É nesse mundo, num mundo onde a única certeza é a certeza da incerteza que somos obrigados, repetidas vezes sem conclusão, a tentar entender a nós mesmos e aos outros para poder comunicarmos e assim viver com o outro e para o outro.

Esta é a tarefa que as Humanidades se propõem se desejamos nos manter fiéis à herança de Miguel de Cervantes Saavedra.

 

PERCURSONo livro O mal-estar da pós-modernidade, o Sr. relata que o fato de ter escrito alguns capítulos originalmente em polonês teve uma significação especial. Qual foi mais exatamente esta significação? 

BAUMANLínguas não apenas diferem em vocabulário e gramática: cada língua cria um universo particular, com pontes e limites semânticos desenhados e mapeados de formas diferentes que pré-determinam e prescrevem uma única Lebenswelt - o mundo como é percebido e vivido. Nenhuma tradução interlínguas pode aniquilar ou compensar completamente essas diferenças. Toda e qualquer tradução oscila aflita entre a Cilas da distorção e a Caribdis[2] da incompreensão.

Temos o interessante caso de Frank Cushing, que lutou para descrever a vida e a visão de mundo da tribo indígena Zuni. Este admirável antropólogo tentou manter-se leal à construção linguística desse povo, ao mesmo tempo permitindo que seus colegas antropólogos de língua inglesa pudessem compartilhar seus escritos. Cushing foi um perfeccionista e, quanto mais fundo mergulhava no mundo Zuni, mais errôneas considerava as suas próprias interpretações. Ele não descansou enquanto não foi completamente aceito como um integrante pelos Zunis, conforme documentado através de sua nomeação para o sacerdócio do Arco-íris, o cargo mais alto da hierarquia religiosa do povo Zuni. Entretanto, desde aquele momento, Cushing não acrescentou mais uma palavra à extensa lista de seus relatos antropológicos.

Na passagem de um universo linguístico para outro, na meia idade, uma perplexidade como a de Cushing não é improvável. Viver em dois universos linguísticos não é suficiente para permitir um transplante, ileso e domesticado, de um pensamento que foi concebido e criado num desses universos para o outro. Inevitavelmente algo será arranhado, deformado ou perdido na tradução, um mau presságio para a intenção de compartilhar as riquezas de conteúdo e limites de cada língua. Ironicamente, quanto mais fundo o sujeito mergulha em cada uma das línguas confrontantes, mais intensamente perceberá a impossibilidade de uma tradução completamente fiel. Isto, pelo menos, é a minha experiência adquirida na mudança, na meia idade, do polonês para o inglês na escrita e no pensamento.

Sem a possibilidade de absorver e mesclar os dois universos, tentei (e continuo tentando) ganhar, no caso do inglês, e conservar, no caso do polonês, acesso à impossível pureza de cada uma. Provavelmente, pensava nisso ao observar que a articulação dos meus "rascunhos" escritos em polonês, acumulados durante meu exílio de mais de vinte anos da língua polonesa, tinham um significado especial para mim. 

 

PERCURSOAtravés de sua história pessoal, mas também de tudo o que o Sr. desenvolve sobre a experiência humana, como o senhor pensa a condição do estrangeiro?

BAUMANSou grato aos meandros da História por ter me colocado na condição e no modo de "estrangeiro". Este é o tipo de condição que força o sujeito a fazer questões sobre a realidade que jamais ocorreriam aos "nativos". Para estes a realidade é familiar demais para ser notada, sem necessidade de averiguação. O papel de estrangeiro exige a aprendizagem de habilidades de convivência, muito mais baseada em um novo desenho do que no hábito automático, trivial e inquestionável; ao mesmo tempo um handicap e uma vantagem para os "nativos". Ambos - a condição e o papel do estrangeiro - são fonte de desconforto e agonia consideráveis, mas ao mesmo tempo uma oportunidade verdadeiramente única para o descobrimento e a criação. Tomando emprestado uma distinção memorável de Heidegger, estes forçam enormes partes da realidade (incluindo a realidade subjetiva de si mesmo) do status zuhanden ("dado na mão", sem causar problemas e por isso não chamando atenção) para o modo vorhanden (distante e saliente, chamando atenção, tornando-se um problema a ser resolvido). E assim, repito: sou grato ao destino por me permitir fazer uma autópsia da condição e do papel de "estrangeiro" a partir de todas as suas facetas: um exilado, um refugiado, um "emigrante interno", um alien - enfim, um estranho.

Duvido que as minhas investigações a respeito da infinita multiplicidade e variabilidade de interpretações a respeito da estranheza, que constituem a coluna vertebral e tema recorrente da minha obra ao longo dos últimos trinta anos, pudessem ser empreendidas se não fosse esse capricho do destino.

 

PERCURSOO Sr. cita Freud em diversos de seus textos. Como surgiu seu interesse pela Psicanálise? Que papel a Psicanálise ocupa em suas reflexões?

BAUMANVocês podem discordar de mim e provavelmente estarão certos, mas, do meu ponto de vista e de acordo com a lógica biográfica, a minha maneira de pesquisar e pensar é uma variedade sociológica da psicanálise ou o resultado dos desdobramentos da estratégia freudiana de investigação no estudo do social. Eu chamo minha maneira de fazer sociologia de "hermenêutica sociológica" - ou seja, desconstruindo e explicando os pensamentos e os atos humanos como sendo em grande parte reflexos inconscientes do ambiente social e da série de opções estratégicas definidas por esse ambiente e, vice-versa, considero a psicanálise de Freud "hermenêutica psicológica".

Essa é minha principal e crucial dívida com Freud. Mas há também outras dívidas, por exemplo, a inspiração que obtive do seu inventário Das Unbehagen in der Kultur ("O mal-estar na civilização"), quando desenvolvi meu próprio modelo de modernidade e sua transformação posterior. Ou a ajuda que encontrei na ideia de Freud a respeito da incongruência do mandamento "amar o próximo", para desenredar a dialética da mixofilia versus mixofobia[3]. Por último, a consideração, na obra de Freud e de outros analistas, a respeito do tratamento visto muito mais como um diálogo contínuo e principalmente inconcludente, do que como um atalho para uma verdade final, definida e autorizada.

 

PERCURSOO Sr. considera que a maioria das fantasias de um "mundo bom" foram verdadeiramente antimodernas. O Sr. diz que, segundo Freud, a modernidade foi dirigida por Tânatos. A seu ver, qual é a importância do conceito de pulsão de morte para o pensamento contemporâneo?

BAUMANVivemos nesses tempos numa cultura de carpe diem... Uma cultura que tem como foco e que pressiona para evitarmos o incontrolável e controlarmos o inevitável - e que promete que o controle é possível (enganando, como ela faz) e que as ferramentas para esse controle podem ser projetadas, adquiridas e arranjadas... Mas, no caso da morte, praticar essa estratégia é muito mais difícil do que em todos os outros casos imagináveis. E assim, as pegadas de Tânatos estão ainda mais evidentes e presentes em nossa vida do que na época de Freud - apesar de estarem mais habilmente disfarçadas e terem sido laboriosamente diluídas. Afinal, os trabalhos de Tânatos são ao mesmo tempo in-evitáveis e in-controláveis; no fim, a impossibilidade de controlar pode ser quase controlada pelo duplo estratagema da desconstrução e da banalização. Por meio da desconstrução, o destino, essencialmente incontrolável, é dividido numa enorme quantidade de tarefas aparentemente controláveis (como, por exemplo, exercitar-se, evitar comida não saudável, não fumar e uma grande quantidade de outras preocupações, que consomem tempo e atenção) e raramente revela sua face inevitável, se alguma vez a revela, por meio da banalização: o terrível lado inevitável da última separação e da morte de tudo é tão comum e frequentemente demonstrado e repetido, que o único e verdadeiro fim, "final e irreversível", a própria morte, encontra-se, por assim dizer, "escondido na luz" - fora de vista -, se não para sempre, pelo menos ao longo da vida... Separação, morte, desaparecimento, retirada, remoção, exclusão, eliminação de coisas animadas e inanimadas aparecem abundantemente em todo e qualquer Reality show e são praticadas diariamente, em cada experiência pessoal, num mundo de vínculos sociais eminentemente frágeis e passageiros; de mercados voláteis de trabalho, de objetos de desejo sempre novos e sempre cada vez mais rapidamente velhos; e o colapso de compromissos da lealdade de longo prazo (sem falar da lealdade incondicional) com tudo e todos... Podemos dizer que essas estratégias de resistência marcam o último, embora oblíquo, triunfo de Tânatos: já não mais restrito ao último momento para o qual a vida implacavelmente leva, ele agora conquista e coloniza toda a vida...

Novidade? Nem tanto... "Encha a barriga de coisas boas; dia e noite, noite e dia, dance e alegre-se, festeje e divirta-se. Use roupas limpas, tome banho, seja carinhoso com a criança que segura sua mão e faça sua mulher feliz com seu abraço" - assim falou Siduri, preparadora de vinho, para Gilgamesh, mais de quatro mil anos atrás, depois de tê-lo prevenido de que a sua expedição à terra da imortalidade estava condenada, porque "quando os deuses criaram o homem, deram-lhe o atributo da morte".

"Irei para o país onde se derruba o cedro. Escreverei meu nome onde foram escritos os nomes de homens famosos, e, onde nenhum nome de homem foi escrito, erguerei um monumento aos deuses. Por causa do mal que há na terra, iremos para a floresta e destruiremos o mal" - essa foi a resposta de Gilgamesh a Enkidu, seu amigo querido e companheiro, que se queixava de que "o choro da dor gruda na minha garganta, estou oprimido pela indolência".

Essas são as primeiras duas respostas humanas, registradas, à descoberta pelo homem de sua inevitável mortalidade (ainda em escrita cuneiforme - mil e quinhentos anos antes de Homero compor a Ilíada). Desde então, não se encontrou uma terceira resposta.

 

PERCURSOSegundo o Sr., uma das grandes lições do Holocausto para a humanidade estaria no fato de que não existe necessariamente uma relação direta entre a razão e a moralidade. A partir de que perspectiva o Sr. pensa a moralidade? O que determinaria que os atos humanos pertençam ao campo da moralidade ou possam ser considerados imorais?

BAUMANComo vocês certamente devem saber, minha fenomenologia da moralidade é proveniente de Emmanuel Lévinas. Aprendi de Lévinas que a incerteza existencial, longe de ser um inimigo ou um obstáculo para o comportamento moral, é, ao contrário, a terra natal da moralidade.

Para começar: a moralidade (aquela consequência de "comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal", um dos documentos mais antigos da conturbada história da humanidade) é, inicialmente, atenção e respeito pelo Outro, assumindo responsabilidade pelo bem-estar e dignidade humana do Outro. A natureza necessária ou obrigatória desse respeito por um-Outro, como os demais mandamentos morais, não pode ser "provada" em discurso. O respeito pelo Outro é um valor e, como outros valores, só se pode construir um "caso" e argumentar a favor do valor e tentar convencer aqueles que escutam, apelando à sensibilidade e à consciência moral que já existe neles, dos méritos dos valores, para persuadi-los a adotar e aplicar os valores, quando escolherem sua própria atitude em relação a outros seres humanos.

Nesse trabalho de persuasão, não se pode nem contar com e nem recorrer a argumentos empíricos ou credenciais que autorizam. Se, por exemplo, para persuadir alguém a respeitar outras pessoas, diz-se que a maioria das pessoas tende a aprovar esse tipo de atitude, não se está apelando à consciência moral, mas ao instinto de manada. Se, tentando convencer a respeitar, se diz que quem respeitar será recompensado com o respeito dos outros, apela-se a um interesse egoísta de ganhos pessoais: um tipo de interesse que raramente coincidirá ou se conciliará com impulsos morais. Se, por outro lado, quem exige respeito e atenção a um-Outro diz tratar-se de um mandamento de um ser superior com indomável força, e que, dada a diferença de poder entre quem ordena e quem recebe a ordem, confere um custo inaceitável àquele que desobedece. Neste caso, se estará apelando ao instinto egoísta de sobrevivência e não ao interesse pelo bem-estar de outros, que é atributo de qualquer atitude moral. Como bem observou Albert Camus, nada há de mais detestável que o respeito suscitado pelo medo.

Repetindo: só posso aprovar, elogiar e recomendar que se respeite e que se dê atenção a outros seres humanos e não posso provar que respeito e atenção sejam algum tipo de "dever" ou de "obrigação", ou algum tipo de conclusão necessária, ou decisão inevitável e inescapável. Necessidade e inevitabilidade pertencem ao vocabulário da razão e estão fora de lugar no discurso da moralidade.

Para falar em atitude moral, cuja espinha dorsal, de acordo com Immanuel Kant, é exatamente o respeito pelo Outro enquanto sujeito dotado de autonomia, razão e vontade - eu tenho de renunciar aos instrumentos costumeiramente usados em seminários acadêmicos, como causa e efeito, inevitabilidade ou determinação, correto ou incorreto, norma e exceção.

Quando Emmanuel Lévinas insiste que a ética antecede a ontologia, ele nega à ética o direito de recorrer à forma de autopromoção que a ciência facilmente adota. A ética não é superior à ontologia porque carregaria alguma verdade incontestável (sua conformidade com a realidade), mas porque a ética é melhor que a realidade ("melhor" é um termo corriqueiro no campo da ética, mas é noção estranha à ontologia). Mas Lévinas acrescenta imediatamente: não se depreende do fato de que seja responsável por você e você por mim, que eu ou você assumamos sempre e sem faltas, as nossas responsabilidades. Chamados à responsabilidade e ao respeito podem cair em ouvidos surdos ou tapados e ficarem no ar. Nesse ponto, Lévinas e Kant têm opiniões radicalmente diferentes.

Para Kant, com seu imperativo categórico, respeitar um outro ser humano é, para nós, sujeitos dotados de razão, uma necessidade inevitável - ponto final. Ao mandamento bíblico "ama teu próximo como a ti mesmo" Kant acrescenta o imprimatur da Razão: faça sua própria regra com o que você deseja que fosse norma obrigatória universal; em outras palavras - não faça com os outros o que não deseja que façam com você. Se você prefere ser tratado como sujeito e não como objeto (como você certamente deseja), trate os outros como sujeitos. Se você não quer ser instrumento servindo a objetivos de outros (como você certamente não quer), não trate os outros como se fossem suas ferramentas; se você quiser ser amado (como você certamente quer), ame aqueles cujo amor você deseja - e respeite aqueles por cujo respeito você anseia.

O imperativo categórico extrai o seu poder de persuasão explícita ou tacitamente do princípio da reciprocidade, a antecipação de que os outros tratarão você como você os trata e farão a você o que você fizer a eles.

Resumindo: na filosofia de Kant, o respeito e, em termos mais gerais, o comportamento moral são considerados transações de troca. Quando se oferece respeito, como em qualquer intercâmbio antecipado, espera-se equivalência da mercadoria trocada. O intercâmbio ideal é simétrico; o mais notável símbolo de um intercâmbio justo é uma balança perfeitamente equilibrada.

Para Lévinas, pelo contrário, a moralidade é uma relação definitivamente assimétrica. A minha responsabilidade está sempre um passo à frente da sua. Eu sempre-já sou responsável por você, eu sou responsável antes que me torne (e independente de tornar-me) consciente disso e certamente antes de começar a ruminar sobre qual conduta devo/preciso escolher para seguir. Questões como "O que há aí para mim?", "Quanto esforço e sacrifício isso vale que eu faça?", "Posso esperar que eles correspondam às minhas iniciativas, com resposta similar?", justificadas conforme as sugestões do imperativo categórico do Kant, não têm lugar no pensamento inspirado na "responsabilidade incondicional" de Lévinas. Minha responsabilidade por você não é da categoria de amitia ou filia, que pressupõe a simetria na relação - mas da categoria de ágape: é uma responsabilidade do forte pelo fraco, do agente com mais recursos por alguém com menos recursos, de alguém irrestrito em suas escolhas por alguém desprovido de escolhas. Responsabilidade por um-Outro não é a responsabilidade em face a um superior, chefe, comandante, distribuidor de tarefas ou opressor. Aquele "outro" por quem me sinto responsável não possui poder sobre mim, não pode mandar em mim ou me forçar a fazer algo; nem pode me punir por desistir ou negligenciar minhas responsabilidades. Ele(a) manda em mim, de certa forma, por sua fragilidade e pelo silêncio não obstrutivo de sua presença...

Como esse tipo de responsabilidade é incondicional e não tolera exceções - Lévinas insiste - ele não dá detalhes, não menciona suas demandas com clareza.

Uma vez descoberta e reconhecida como tal (Lévinas chama esse momento de descoberta de "despertar", "desembriagar-se", "recuperar a visão" - todos os termos sugerindo a espontaneidade do evento e uma ruptura na continuidade), essa responsabilidade confronta o descobridor com a necessidade de preenchê-la com conteúdo. A descoberta da responsabilidade incondicional e sua aceitação são estímulos para, não determinantes da, exploração que se segue; leva à busca, apesar de não garantir o achado - e, sobretudo, não define o momento no qual se considera que a busca possa ter encontrado seu objetivo e, por esse motivo, ter chegado ao fim. Uma vez que a responsabilidade por um-Outro é reconhecida e aceita, ela descarrega sobre o self moral a carga da responsabilidade por interpretar os requerimentos práticos. Nada define esses requerimentos práticos a priori; e o significado que lhes seja atribuído a posteriori não tem as bases pelas quais possa ser considerado um preceito universalmente válido.

A descoberta de responsabilidade (como um acordar para o fato de já a estar carregando) não é um ato único que desencadeia uma corrente de eventos/empreendimentos dos quais é possível, de uma vez por todas, apoderar-se incondicionalmente. A responsabilidade necessita e tende a ser redescoberta repetidas vezes, em cada encontro com um-Outro, ou mesmo em etapas sucessivas desse encontro. Por isso lança o sujeito descobridor num estado crônico e talvez incurável de incerteza; que tende a crescer mais do que diminuir, na medida em que cresce a sequência das ações.

No universo da Lei, a ausência de um parágrafo equivale à ausência de um crime; no mundo da Moralidade, no entanto, a ausência de parágrafos significa, pelo contrário, a ausência de inocência - ou pelo menos a impossibilidade de provar sua presença. Na falta de prescrições confiáveis e livres de ambiguidades para absolver alguém, nada que um sujeito moral faça oferece a certeza de que todos os aspectos da responsabilidade tenham sido, satisfatória e plenamente, cumpridos. O habitat natural da moralidade é o estado de subdefinição e subdeterminação crônica. A moralidade ganha voz quando e onde os imperativos da razão silenciam - ou quando e onde lhes é negada a voz: quando e onde a decisão de assumir responsabilidade pelo bem-estar, autonomia, integridade e subjetividade de um-Outro suspende a legitimidade e autoridade dos juízos da razão, e priva a Razão de suas credenciais e prerrogativas de Tribunal de Apelação - de uma autoridade que poderia ser consultada para indagar sobre as ações induzidas por um impulso moral.

 

PERCURSOO Sr. pensa o Holocausto como um genocídio propriamente moderno, no sentido de ter sido fiel ao espírito da modernidade, com seus sonhos de planejamento, racionalização e controle. Como esse espírito se faz presente hoje? 

BAUMANNa exploração da semelhança entre o projeto do Holocausto e o "espírito da modernidade" ou os preceitos do pensamento moderno, insisto em que, longe de ter sido um blackout momentâneo ou uma inversão do "processo civilizatório" e retorno à selvageria pré-moderna, o Holocausto foi produto totalmente legítimo do impulso moderno de domínio. De fato, o Holocausto só poderia ser concebível sob as condições modernas. Isso não quer dizer que, dadas as condições modernas, o Holocausto foi predeterminado e inescapável; mas quer dizer que a modernidade disponibilizou todos os recursos que o tornaram possível. O que encontrei no meu estudo é que o mal manifestado no Holocaust Enterprise Inc. foi muito mais racional do que banal. É a resposta para uma das receitas mais modernas de Max Weber: combinar os meios mais eficientes para um determinado fim... Indubitavelmente, Eichmann passaria em qualquer prova de racionalidade sem qualquer problema. Se Hitler tivesse ganhado a guerra, Eichmann talvez lecionasse no curso de Administração Científica em Cambridge ou Harvard. O Holocausto foi a Razão moderna em ação.

A Razão, a racionalidade instrumental e o cálculo racional foram promovidos pela modernidade ao nível mais alto de autoridade (talvez a única e última). Mas a razão é um posto de abastecimento de combustível para o poder. A razão é, em primeiríssimo lugar, uma fábrica de força (Macht, pouvoir). O poder é definido como a capacidade do sujeito para alcançar objetivos apesar da resistência, seja a resistência da matéria inerte ou dos diversos objetivos almejados pelo sujeito. "Ser forte" significa, em outras palavras, ter capacidade para superar a inércia do objeto de ação, ou para ignorar as ambições de outros dramatis personae (para desfrutar, para gozar a subjetividade e a efetiva intencionalidade únicas, no drama de muitos atores, e dessa forma reduzir os demais sujeitos ao status de objetos de ação ou de pano de fundo neutro). Justamente devido à natureza de ambos, força e poder são assimétricos (fica-se tentado a dizer: assim como a natureza odeia o vácuo, o poder odeia a simetria). O poder não une e não nivela (nem por cima, nem por baixo) as diferenças; o poder divide e se opõe. O poder é inimigo jurado da simetria, da reciprocidade e da mutualidade. A força do poder consiste em sua potência para manipular probabilidades, diferenciar possibilidades, assim como potencialidades e oportunidades: as divisões resultantes são seladas e as desigualdades de distribuição imunizadas contra o desacordo e as apelações daqueles que se encontram na ponta receptora da operação.

Em resumo, o poder e a força para agir, a produção e a manutenção do que estão chamando de razão equivalem a uma rejeição explícita ou à ignorância, na prática, do que torna categórico o imperativo kantiano, como Nietzsche manifesta em tom pungente:

 

O que é bom? - Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder... O que é mau? Tudo que vem da fraqueza... Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E deve-se ajudá-los nisso. [...] O que é mais nocivo que qualquer vício? - A ativa compaixão por todos os malogrados e os fracos [...][4].

 

"Conheço a alegria na destruição". Nietzsche, para muitos o mais importante porta-voz do espírito moderno, admitiu orgulhosamente: "Além do mais, sou um destruidor par excellence"[5]. Várias gerações de outros "destruidores par excellence", armados para transformar as palavras em carne (mais exatamente, para fazer as palavras matarem a carne), que trabalharam duro para tornar a visão de Nietzsche realidade, puderam inspirar-se nele - e muitos o fizeram. Encontrariam a absolvição para suas intenções no conselho de Nietzsche para ajudar os fracos e incapazes a perecer. Como diz Zaratustra, porta-voz autorizado e plenipotenciário de Nietzsche: "Meu maior perigo está sempre na condescendência e indulgência; e toda a humanidade quer ser indulgida e sofrida"[6]. Veredictos da Natureza só podem ser remendados, a destruição por conta e risco de quem os remenda. Para evitar a destruição, os seres humanos têm de ser libertados: os nobres e fortes da piedade, da compaixão, da consciência de culpa (injusta) e de escrúpulos desnecessários; e os humildes e modestos, da esperança.

O horror do Holocausto tornou nosso mundo moderno mais seguro? Para responder a essa questão, vale a pena voltar nossos olhos novamente para o estudo seminal - e por algumas décadas esquecido e negligenciado - de Günther Anders sobre a "síndrome de Nagasaki"[7] - que para o autor teria potencial pleno e apocalíptico de causar o "globocídio". A síndrome de Nagasaki, como Anders sugeriu, significa que "o que foi feito uma vez pode ser feito novamente com cada vez menos restrições"; em cada caso sucessivo, "cada vez mais casualmente, com cada vez menos deliberação, reflexão ou motivo". A repetição da brutalidade não é apenas possível: ela é provável - "já que a chance de vencer a batalha para impedir a brutalidade vai-se tornando cada vez menor, e a chance de perdê-la aumenta".

 

PERCURSOO Sr. estabelece uma diferença entre os mal-estares da Modernidade e da Pós-modernidade, ou Modernidade Líquida, como tem preferido dizer atualmente. No primeiro caso, o mal-estar seria fruto da troca que o homem faz de uma parcela da sua liberdade por mais segurança. No segundo caso, existiria cada vez menos segurança e mais liberdade individual e, portanto, os mal-estares nasceriam da liberdade e não da opressão. Como pensarmos então a questão da liberdade e da tolerância em nossos tempos?

BAUMANEmbora o insight de Freud a respeito da natureza da civilização, com suas "trocas cambiais" (ceder um valor para salvar outro) e as consequências psicopatológicas concomitantes, seja tão válido hoje quanto na época da publicação de Mal-Estar na Civilização, a direção do valor da troca inverteu-se daquele momento para hoje: nós renunciamos a uma parcela importante da nossa segurança (Sicherheit, em Freud: quer dizer, uma combinação de segurança e proteção) em prol de liberdades mais amplas do que jamais houve. Assim, como só se pode obter um acréscimo em segurança se se reduzir a variedade das escolhas; também no campo da liberdade individual, com a expansão do império da liberdade, aumenta o grau de incerteza e de uma ansiedade difusa (não ligada a nada) e os sentimentos de humilhação, de autodegradação, de ignorância e impotência que minam o ego. A origem dos maiores medos passou do horror da in-conformidade (não estar ‘em dia' com as normas) para o horror da in-adequação (não estar ‘em dia' com as oportunidades).

Mas, a meu ver, as trocas cambiais da civilização se movimentam mais como pêndulo do que em linha reta. Atualmente há inúmeros sintomas que se multiplicam e que indicam que o movimento do pêndulo mais uma vez se inverteu. Cada vez mais e mais pessoas parecem estar prontas a renunciar a algumas de suas liberdades, tão duramente disputadas, em troca de mais segurança, de mais certeza e estabilidade (genuínas ou supostas). A ampla popularidade de uma grande variedade de fundamentalismos é um dos principais sintomas desse processo.

 

PERCURSOQual a sua opinião a respeito desse espaço relativamente novo de sociabilidade, a internet, que proporcionaria  acesso mais democrático à informação e uma maior interação de culturas?

BAUMANNão confundamos o mensageiro e a mensagem. Cada geração tem sua parcela de excluídos. Em cada geração, há pessoas que recebem o status de excluído, porque uma "troca de geração" deve significar mudanças significativas nas condições e exigências da vida, para forçar que as realidades partam das expectativas implantadas pelas condições de antes e desvalorizem as aptidões que antes foram treinadas e promovidas. Assim, sempre há alguns derrotados entre os recém-chegados. Geralmente são os menos flexíveis ou menos prontos a adaptar-se aos novos padrões e mal preparados para lidar com os novos desafios - desarmados para se defenderem das pressões. Entretanto, não é frequente que a condição de excluído atinja uma geração inteira. Mas talvez esteja ocorrendo agora...

Os jovens que estão entrando ou se preparando para entrar no chamado "mercado de trabalho" foram criados para acreditar que a tarefa de suas vidas seria superar e ultrapassar as histórias de sucesso de seus pais e que estariam completamente capacitados para tal (impedidos apenas em caso de eventual cruel golpe do destino ou de alguma insuficiência própria incurável). Por mais longe que os pais tivessem chegado, eles chegariam ainda mais longe. Seja como for, foram ensinados e doutrinados para acreditarem nisso.

Nada os preparou para a chegada a um mundo novo, difícil e inóspito, onde as conquistas acadêmicas e os méritos obtidos são desvalorizados, os empregos instáveis e todas as portas fechadas. Um mundo onde o emprego é volátil, o desemprego é persistente, as perspectivas são transitórias e a derrota é duradoura. Um mundo novo onde projetos são abortados e esperanças, frustradas, e onde as oportunidades só chamam a atenção pela ausência.

As últimas décadas foram tempos de expansão ilimitada de todas as formas de educação superior e de crescimento interminável da quantidade de estudantes. Um título universitário prometia um bom emprego, prosperidade e glória, volume sempre crescente de recompensas que crescia para acolher a oferta em expansão de novos graduados.

Com oferta e demanda ostensivamente pré-coordenadas, garantidas e praticamente automáticas, o poder de sedução da promessa foi irresistível. No entanto, agora, muitos dos seduzidos estão sobrando, praticamente despejados, em liquidação, quase que do dia para a noite, em multidões de frustrados. Pela primeira vez na história, a categoria inteira de universitários enfrenta praticamente a certeza de empregos precários, inseguros, de meio período, estágios mal remunerados, pseudoempregos - todos aquém das habilidades adquiridas e muitíssimo diferentes das expectativas. Os períodos de desemprego duram mais que o ano letivo, quando a próxima leva de recém-formados aparecerá para acrescentar seus nomes às já desesperadamente longas listas de candidatos nas agências de emprego.  

Vivendo numa sociedade capitalista como a nossa, engrenada em primeiro lugar para defender e preservar os privilégios restantes e em segundo lugar, bem distante do primeiro (e muito menos respeitado e atendido), para eliminar a miséria dos demais, os novos graduados, ricos de expectativas e pobres de meios, não têm a quem se dirigir para pedir assistência. Os governantes, estejam eles situados à direta ou à esquerda do espectro político, protegem agressivamente seu eleitorado já maduro contra os ainda frágeis e imaturos recém-chegados, até passadas as próximas eleições. Como todos nós, independentemente das particularidades de cada geração, tendemos ansiosamente a defender o nosso conforto contra as demandas de sustento das gerações ainda não nascidas...

"Os jovens já não são incluídos no discurso sobre a promessa de um futuro melhor, porque são cada vez mais vistos como um peso social. Em vez disso, são considerados parte de uma população descartável, cuja presença ameaça suscitar  memórias coletivas reprimidas de responsabilidades adultas" - como disse Henry A. Giroux, num ensaio intitulado Youth in the Era of Disposability, de fevereiro de 2011.

Na realidade, os jovens não são completamente descartáveis... São salvos por um triz da total descartabilidade por parte dos adultos, pelo seu potencial para o consumo: esquadrões sucessivos de jovens significam um fornecimento perpétuo de "terras virgens", não contaminadas, intactas e prontas para o cultivo, sem os quais a reprodução da economia capitalista, isso sem falar do crescimento econômico, seria inimaginável.

Os jovens são considerados e vistos como mais um mercado a ser explorado. "Através da força educacional de uma cultura que comercializa cada aspecto da vida das crianças, as companhias visam absorver os jovens num mundo de consumo de massa com intensidade jamais vista antes. Usando a internet e várias redes sociais, além das tecnologias das novas mídias, como telefones celulares, as corporações visam mergulhar os jovens no mundo do consumo de massa por vias mais diretas e expansivas do que jamais se viu no passado". Um estudo recente feito pela Kaiser Family Foundation descobriu que jovens entre oito e dezoito anos gastam mais de sete horas e meia por dia com smart phones, computadores, televisões e outros aparelhos eletrônicos. Há cinco anos, eram apenas seis horas e meia.

Podem-se acrescentar muitos dados aos que Giroux reuniu; há muitas evidências que indicam que "o problema da juventude" está sendo tratado em termos de "prospectar consumidores", deixando todos os outros assuntos relacionados à juventude num patamar secundário ou completamente apagados da agenda política, social e cultural. De um lado, como já observei, hoje existem limitações severas aos subsídios governamentais para educação superior e aumento feroz nas mensalidades das faculdades. De fato, o estado lava as mãos de sua obrigação de "educar pessoas", ostensivamente no caso das áreas de ponta e também indiretamente - como se vê na ideia de substituir o ensino secundário público por "academias" privadas - através de planos destinados a determinar o volume total de saberes e competências à disposição da nação e sua distribuição entre a população. Isso também é observável no interesse cada vez menor da juventude em ser a futura elite política e cultural da nação.

Por outro lado, o Facebook e outros "websites sociais" abrem novas perspectivas para agências interessadas em focar nos jovens e tomá-los como terras virgens a serem conquistadas e exploradas pelas tropas especializadas em estimular o consumo.

Graças à despreocupada e entusiástica autoexposição a milhares de amigos de internet e milhões de flâneurs online, os administradores de marketing podem alimentar o monstro do consumo com os desejos mais íntimos, pessoais e únicos já ardentes (articulados ou semiconscientes) ou desejos e quereres apenas projetados. O que aparecer agora na tela do Facebook será uma oferta pessoal especialmente preparada para você - oferta irrecusável, porque você não consegue resistir à tentação. Afinal, é o que você verdadeira e profundamente sempre precisou ter. Combina com sua "personalidade única" e o afirma claramente. Declara algo que você sempre quis que fosse confirmado, mostrando-lhe ser a personalidade única que você é. Isto é verdadeira novidade, se é que alguma vez houve novidade, na área do marketing.

Um outro ponto, como observou recentemente o diretor criativo da agência de propaganda Deutsch la, Josh Rose: "A internet não rouba nossa humanidade, ela a reflete. A internet não entra em nós, ela mostra o que há dentro de nós". E como isto está certo!

Jamais acuse o mensageiro daquilo que você considera ruim, triste e desagradável na mensagem que ele transmite. Mas tampouco o elogie pelo que considera bom e divertido... No fim, tudo depende daquele que recebe a mensagem, de seus gostos e desgostos, de seus sonhos e pesadelos, de suas esperanças e medos e se a mensagem lhe causa prazer ou desespero. O que se aplica às mensagens e mensageiros, embora as coisas sejam um pouco diferentes, também se aplica às ofertas pela internet e seus mensageiros - as pessoas que as mostram nas nossas telas e as trazem para nossa atenção. Nesse caso, são os serviços onde nós (os meio bilhão de usuários ativos de internet) colocamos essas ofertas que as tornam, junto com o impacto que têm em nossas vidas, boas ou más, sadias ou prejudiciais. Tudo depende do que estamos procurando: as engenhocas técnicas tornam nossos desejos mais ou menos reais e nossa procura mais rápida ou mais lenta e mais ou menos eficiente...

Examinemos mais de perto essas ofertas. A primeira tem a ver com meios para escapar da solidão... Permitam-me citar mais uma vez as reflexões de John Rose: "Recentemente perguntei aos meus amigos de internet: Twitter, Facebook, Foursquare... essas coisas estão aproximando ou distanciando você das pessoas? Recebi muitas respostas e parece que toquei num dos nervos expostos de nossa geração. Que efeito estão tendo a internet e as mídias sociais sobre nossa humanidade? De uma perspectiva externa, as interações digitais  parecem frias e desumanas. É inegável. E indubitavelmente, dada a escolha entre abraçar ou ‘teclar' alguém, eu penso que todos nós concordamos quanto a qual é a mais agradável. A essência das respostas à minha pergunta no Facebook  parece ter sido resumida por meu amigo Jason, que escreveu: ‘mais  perto das pessoas das quais estou longe'. Um minuto depois, Jason completou: ‘Mas, talvez mais longe das pessoas das quais estou perto'. E continuou: ‘Agora, fiquei confuso'. É confuso. Vivemos esse paradoxo agora, onde duas realidades que parecem conflitantes existem lado ao lado. As mídias sociais simultaneamente nos aproximam e nos distanciam."

Rose está preocupado em não fazer vereditos definitivos. É um cuidado necessário, nesse caso de transações arriscadas, tão seminais quanto casuais, de raros momentos de proximidade off-line por uma variedade massiva on-line. A proximidade uma vez alcançada talvez fosse mais gratificante, apesar de consumir mais tempo e energia e ser mais arriscada. A maneira atual de proximidade é indubitavelmente mais rápida, praticamente sem esforço e quase sem risco, mas muitos consideram que seus efeitos são muito menos capazes de satisfazer a sede de uma companhia verdadeira. Algo se ganha e algo se perde e é terrivelmente difícil decidir se os ganhos compensam as perdas. Além do mais, não se cogita e nem se buscam vereditos definitivos que seriam precipitados ou temerariamente precoces - frágeis como a "proximidade" que se conquistou.

O que você conquistou pela internet é uma rede, não uma "comunidade". Você descobrirá mais cedo ou mais tarde que essas duas coisas são tão diferentes entre elas quanto giz e queijo. Pertencer a uma comunidade é condição muito mais segura e confiável do que ter uma rede - embora as redes sejam mais limitadas e impliquem mais obrigações.

Uma comunidade observa de perto e deixa pouco espaço de manobra (a comunidade pode excluir você e impedir que você se autoexclua). A rede não se preocupa se você obedece ou não às suas normas (e há redes sem qualquer norma). Por isso a rede permite maior liberdade e não pune o abandono; mas você pode contar com os membros de uma comunidade para serem "amigos na necessidade e amigos de verdade" (friends in need, and so friends indeed). Usuários ligados em rede estão lá mais para se divertir e nem sempre manifestam muita prontidão para ajudar, no caso de um problema não relacionado com o "foco de interesse". A maioria das pessoas ligadas em rede jamais chega a esse tipo de teste e, se chegar, o mais provável é que não passe.  Afinal de contas, escolhe-se entre segurança e liberdade. Precisamos de ambas, mas não se pode ter uma sem, pelo menos parcialmente, sacrificar a outra. E quanto mais se tem de uma, menos se terá da outra.

No que diz respeito à segurança, as comunidades de antigamente levam vantagem sobre as da internet. Mas, em termos de liberdade é exatamente o contrário. Afinal, para se livrar de uma intromissão basta pressionar a tecla "delete" ou não responder às mensagens. Além do mais, há essa diferença abissal entre "abraçar" e "teclar", como disse Rose... Em outras palavras, entre a variedade on-line de proximidade e o protótipo off-line: entre profundidade e superficialidade, entre calor e frieza, entre proximidade emocional profunda e abraços superficiais.

Escolhe-se sempre e provavelmente continuaremos a escolher. Praticamente não se consegue parar de escolher. Mas é melhor escolher sabendo o que se está escolhendo e estar preparado para pagar o preço da escolha. Pelo menos isso parece ser o que diz Rose - e com o especialista não se discute.

Recentemente, Eugène Enriquez[8] sintetizou a mensagem colhida de grande número de provas e fontes, reunidas de todos os setores do mundo moderno-líquido de consumidores: "Se pelo menos não esquecêssemos que o que antes foi invisível - cada parte da intimidade e da vida íntima de cada um - é agora chamado para ser exposto no palco público (principalmente na tela da tv, mas também no palco literário), compreenderíamos que os que se preocupam com a própria invisibilidade são destinados a serem rejeitados, deixados de lado, suspeitos de crimes. A nudez física, social e psíquica está na ordem do dia."

Os adolescentes com seus cybers portáteis não são nada mais que aprendizes treinando e sendo treinados na arte de viver em sociedade confessional.  Uma sociedade conhecida por apagar os limites que separam o público do privado, por tornar a exposição pública do privado em virtude e obrigação públicas, e por erradicar da comunicação pública tudo aquilo que não se deixe reduzir a confidências privadas, junto com os que se recusem a se confessar.


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