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Resumo
O estudo de Freud sobre Leonardo completou cem anos. Tal estudo possui para os psicanalistas um interesse teórico endógeno, tal como possuía para Freud valor transferencial. À parte isso, indagaremos aqui pelas virtudes biográficas do texto. Procuraremos mostrar que a psicanálise contribuiu para a compreensão biográfica de Leonardo por dispor de um modo singular de conceber a constituição subjetiva.


Palavras-chave
Psicanálise e cultura; Sigmund Freud; Leonardo da Vinci; abutre


Autor(es)
Douglas Emiliano Batista Batista
é doutorando pela FEUSP - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, membro do LEPSI - IP-FE-USP (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância). A Fapesp instituição à qual o autor agradece - financiou a pesquisa que possibilitou a elaboração deste artigo.


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Abstract
Freud's study of Leonardo completed hundred years. This study has for psychoanalysts endogenous theoretical interest, as Freud had to value transference. Apart from that, indagaremos here by virtue of biographical text. We will seek to show that psychoanalysis has contributed to the understanding of biographical Leonardo for having a unique way of conceiving the subjective constitution.

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 TEXTO

Psicanálise, constituição subjetiva e biografia: a recordação infantil de Leonardo da Vinci

Psychoanalysis, constitution of the subject and biography: a childhood recollection of Leonardo da Vinci
Douglas Emiliano Batista Batista

Introdução

O tema da constituição subjetiva foi sempre basilar para a psicanálise. Sua importância, entretanto, talvez tenha hoje se tornado maior em face da hegemonia discursiva pela qual o cientificismo - genético ou neurocientífico - naturaliza o ser humano, forcluindo sua subjetividade. Em razão dessa hegemonia, pode-se dizer que reflexões filosóficas, antropológicas, históricas etc. que nos recordem que o processo de humanização nos constitui como seres tributários de formas históricas de socialização cumprem uma função vital. Certamente, também para a psicanálise a subjetivação se desdobra no interior de contextos históricos. Todavia, a particularidade da visada psicanalítica excede esse aspecto sem o desconsiderar, uma vez que a subjetivação implica ademais a constituição do recalque e o retorno do recalcado, inscrições psíquicas que marcam a fogo as produções históricas de um sujeito. A nosso ver, é isso, aliás, o que permite dizer que a psicanálise implica o sujeito[1].

 

Há uma miríade de textos psicanalíticos pelos quais se pode agitar o tema da subjetivação. Escolhemos o centenário estudo de Freud sobre Leonardo da Vinci[2], texto que confere relevo à dimensão histórica em razão do teor biográfico. Eis que tal estudo enseja interrogar se a psicanálise - em função do modo como articula inconsciente, subjetividade e história - contribuiu para a descoberta de traços biográficos de Leonardo. E uma vez que se verifique que isso ocorreu, poder-se-á então dizer, com renovada razão, que a psicanálise pode contribuir também com o premente debate acerca da subjetivação.

 

No que toca à interrogação sobre as virtudes biográficas do texto de Freud, ela impõe aqui um percurso, que se inicia com uma retomada de alguns de seus pontos capitais, passa pelo exame de críticas a estes e culmina numa ponderação acerca de estudos biográficos sobre Leonardo posteriores a Freud. Ao cabo disso, esperamos reunir evidências de que o texto em tela resguarda, também, qualidades biográficas[3].

 

Adentrando mais diretamente na análise da biografia em questão, vale dizer que não é nosso propósito aqui tentar abordar as motivações inconscientes que levaram Freud a discorrer sobre o gênio do quattrocento. O que por hora nos interessa é que, alegadamente, foi a insuficiência de informações sobre os primeiros anos de vida de Leonardo o que levou Freud a pronunciar-se sobre o tema. De fato, a infância do renascentista não cessa de se inscrever como um enigma para os que se debruçam sobre sua biografia ou sobre as motivações inapreensíveis que parecem tê-lo guiado.

 

Como é notório, não escapou à psicanálise o fato de o único registro deixado por Leonardo sobre sua infância narrar um evento ininteligível. Tal suposta recordação infantil dava conta de que, estando Leonardo ao berço, um milhafre - um falcão - ali pousou, abriu a boca da criança com a cauda e, então, fustigou lábio adentro com a última[4]. Ademais, foi por conta disso que o próprio Leonardo compreendeu-se como destinado a amar e a pesquisar o voo das aves. Por certo que o conteúdo insignificante da recordação, bem como sua ininteligibilidade, além de sua alegada inevitabilidade ensejaram a Freud compreendê-la como uma recordação encobridora.

 

Abutre ou milhafre?

Freud traduziu como abutre - Geier - o que na recordação era um milhafre - nibbio. Curiosamente, Freud citou no estudo em tela o texto de Scognamiglio acerca da recordação, e onde milhafre, e não abutre, é a palavra utilizada. Já na versão prévia ao seu estudo - apresentada em Viena em 1909 - Freud usou o termo Hühnergeier para traduzir nibbio, palavra essa correntemente utilizada para designar milhafre, não obstante a sua partícula geier. Quanto a outros autores a que Freud fez referência em seu texto, Marie Herzfeld e Woldemar von Seidlitz utilizaram Hühnergeier, enquanto na tradução alemã do livro de Edmondo Solmi e também na tradução da novela em que Dmitry Merezhkovsky abordou a vida de Leonardo - fonte capital para Freud -, utilizou-se Geier[5].

 

Para além disso, seria relevante destacar que, no imaginário social, a relação entre abutres e milhafres tem sido mais promíscua do que supuseram os que tentaram desqualificar o texto de Freud com base no emprego de abutre. Tais críticos acusaram o psicanalista pelo equívoco ao passo que negligenciaram que outros autores partilharam com Freud tal emprego. Naturalmente, quando Freud optou por tal tradução, ele se fez corresponsável por ela, não importando com respeito estritamente a isso suas motivações inconscientes.

 

No que toca à análise dessa tradução, não se esclarece muita coisa quando se a aborda como fez Schapiro. Para o autor, abutre é abutre, e milhafre é milhafre. Logo, "o milhafre é também uma ave de rapina, mas não se alimenta de carniça e tem a aparência bastante diferente da de um abutre"[6]. De saída, é preciso dizer que o milhafre se alimenta, sim, de carniça. Não seria exagero supor que o lapso de Schapiro diante dessa evidência se deveu a sua pretensão de escavar um fosso profundo entre essas aves a fim de subtrair a possibilidade de que Freud, tendo mirado o abutre, pudesse ter acertado o milhafre.

 

Outros autores, entretanto, souberam flagrar a frequente associação entre tais aves no imaginário social de contextos históricos distintos:

 

A águia, que se parece com o abutre, é o símbolo de Ísis, mãe [a bem da verdade, a ave que simboliza a deusa-mãe Ísis é o milhafre, o que é um detalhe relevante, como se verá]. Pode-se confundir as espécies de um país ao outro; espécies intermediárias, tais como falcões, abutres, águias, são parecidas. A águia, assim como o abutre e outros pássaros de garras, possuem, dizem, certas particularidades, as fêmeas são mais robustas e mais audaciosas que os machos[7].

 

Caso o leitor julgue que as similaridades apontadas por Lafargue no xix são vagas e que não esclarecem a tradução em tela, sugerimos a seguinte passagem de seu contemporâneo Pictet: "Os nomes do milhafre se confundem frequentemente com aqueles do abutre, com o qual ele se assemelha por seus hábitos"[8].

 

Uma consulta ao verbete abutre[9] do Illustrated Bible Dictionary, obra do xix, revela que, quanto à divisão entre animais limpos e imundos, as traduções bíblicas erigiram uma babel ornitológica. É assim que em Levítico 11:14 emprega-se a palavra hebraica da'ah, abutre, enquanto numa passagem paralela, Deuterônimo 14:13, emprega-se ra'ah, milhafre. E o verbete milhafre diz: "A palavra hebraica empregada, ‘ayet', é traduzida como ‘abutre' em Jó 28:7 na Versão Autorizada, e ‘falcão' na Versão Revisada. Trata-se provavelmente do milhafre-real"[10].

 

A confusão bíblica entre o abutre-do-egito e o falcão-gerifalte envolve o mesmo problema, sendo que gerifalte traduz Gierfalcon. Nesse caso, o sufixo gier ensejou toda sorte de mal-entendidos. A explicação é que Gier era um adjetivo relacionado às aves de rapina em geral, mas que foi substantivado. Por isso é que mesmo nos modernos dicionários de alemão o primeiro significado de Geier é abutre, embora a palavra designe ainda falcão. Eis, então, que Geier

 

reclama sua associação com nibbio no interior de um vasto vocabulário trans-europeu que tem por base ‘grups' e ‘gryps'. Qualquer europeu do século xix tardio, com conhecimento de Latim, poderia ter traduzido o nibbio de Leonardo como milhafre, falcão, abutre, grifo ou abutre-fouveiro[11].

 

Ao fim desses apontamentos, saiba o leitor que não queremos justificar a tradução em tela apostando as fichas na confusão: trata-se, antes, de reconhecer que no xix e início do xx ela era plausível, embora o tenha deixado de ser. No mais, esses apontamentos indicam que as razões que levaram Freud a tomar o abutre pelo falcão não são redutíveis à inépcia, como querem seus críticos. E mais: considerando que o milhafre e o abutre são tomados como primos-irmãos no imaginário social[12], ou seja, considerando que os significantes têm produzido tal paridade - fato que ensejou a Freud atirar no que viu e acertar no que não viu -, poderemos agora nos deter na recordação. Ainda que reconheçamos que tal tradução não poderia ter sido inócua, nem por isso faremos como os afoitos que quiseram desqualificar no ninho o estudo freudiano.

 

O núcleo da interpretação de Freud, e a elaboração a posteriori

Freud compreendeu a recordação à luz da felação, a qual por sua vez aparece como tributária da amamentação. De fato, há que se considerar que existe um sem-número de nomes de aves que designam os genitais masculino e feminino, embora mais em particular o pênis[13]; e que, em latim, felláre significa chupar e também mamar, bem como, em português, é com a mesma palavra que se designa o bico de borracha em forma de mamilo e a felação. Em que pese, desse modo, a tradução de nibbio por abutre, pode-se admitir que o núcleo da interpretação de Freud - tanto no que concerne à fantasia de Leonardo com respeito à amamentação (tornada passiva), quanto no que concerne à elaboração da premissa fálica - ficou intocado[14].

 

É conhecida a crítica que Schapiro endereçou também a essa interpretação. Schapiro procurou demonstrar que a visita do milhafre não possuía qualquer conteúdo mnêmico, já que se tratava de um topos literário. O autor então nos lembra o que Cícero escreveu sobre Midas: ainda criança, este foi visitado enquanto dormia por formigas que encheram sua boca com trigo, o que pressagiava que ele seria um homem abastado. Cícero relata que, quando Platão era uma criança de berço, abelhas pousaram em sua boca, o que pressagiava a doçura de sua eloquência. E já segundo o que afirmou Plínio, um rouxinol pousou na boca de Estesícoro quando este era uma criança e se encontrava adormecido: isso prenunciava o destino de poeta.

 

A nosso ver, o modo como Schapiro compreendeu o topos dos presságios infantis permite esclarecer o núcleo de sua crítica. Para Schapiro, quando a psicanálise se detém em cânones estéticos, ela daria pouca atenção à "história e à situação social ao lidar com os indivíduos e mesmo com a origem dos costumes, das crenças e das instituições"[15]. Tudo se passaria, então, como se na psicanálise o sujeito agisse tal como age a aranha, a qual retira de dentro de si todo o fio de sua teia; tudo se passaria como se Freud tivesse atribuído uma originalidade absoluta a Leonardo. Ora, isso é insustentável.

 

A psicanálise concebe o sujeito como "histórico, desnaturado e tributário dos modos de socialização aos quais foi submetido"[16]. Entretanto, embora a realidade psíquica inclua a dimensão histórica, nem por isso a subjetividade se constitui apenas por meio da "transmissão dos elementos da cultura e história que guiam a apreensão e inteligibilidade do mundo pelo Sujeito, mas principalmente pela constituição do recalcado originário, em torno do qual este, num primeiro momento, estrutura sua relação de desejo ao outro [simbólico] e a imagem que faz de si mesmo [imaginário]"[17]. Ao admitir-se então, na esteira disso, que as memórias infantis são falseadas ao se invocá-las após a infância - de modo que são inconscientemente postas a serviço de interesses do tempo presente -, pode-se constatar que o teor literário dos presságios infantis não apresenta contradição com tal elaboração a posteriori do tesouro mnêmico, e isso pelo fato de que a própria utilização desse topos - ou de qualquer padrão tradicional, público - por um sujeito acaba por dar ocasião para a referida elaboração, ao mesmo tempo que tal topos é incorporado por ela como significante do desejo. Como se vê, o que está em jogo aí é o modo como no presente o aparelho psíquico se apropria do passado, apropriação que é sobredeterminada pelo retorno do recalcado.

 

Seguramente, o Questo scriver que abre a recordação pontuou um momento em que o renascentista - por volta de 1505 - pesquisava uma vez mais o voo das aves, isto é, pontuou um momento em que o canhoto Leonardo se concebia cumprindo o destino que lhe fora traçado no berço[18]. Provavelmente, Leonardo acabara de registrar novos diagramas sobre o voo quando escreveu no verso de uma das páginas a recordação. A certa altura dessas anotações, Leonardo aludiu ainda à semelhança entre o movimento da cauda do milhafre e o do leme de um navio[19]. Autores como Schapiro e Beck viram nisso a influência de Plínio sobre o renascentista, já que o romano escreveu o seguinte sobre o milhafre: "parece que este pássaro, pela manipulação de sua cauda, ensinou a arte de pilotar navios [...]"[20]. Entretanto, há uma diferença capital entre a apreciação de Schapiro e a de Beck: é que para este o lastro que a recordação mergulha nessa tradição não exclui o valor fantasístico que ela comportava para o renascentista, enquanto que para Schapiro a cauda do milhafre resguardaria apenas um sentido científico. Ou seja: Schapiro coagulou o significante cauda em torno de leme. Beck, com vistas a comprovar o teor fantasístico que a recordação possuía nas pesquisas de Leonardo - e onde o milhafre excedia o valor científico sem o excluir -, cita uma passagem do renascentista sobre a memória, a qual mostra que Leonardo era cônscio de que o passado remoto está mais presente na nossa vida do que muitos fatos recentes:

 

Nosso julgamento não julga coisas ocorridas em diferentes intervalos do tempo de acordo com sua devida e apropriada distância, porque muitas coisas do passado remoto parecem próximas e avizinhadas do presente, e muitas coisas próximas a nós parecem velhas, do tempo de nossa juventude[21].

 

Tal sentença arvora semelhança com a seguinte passagem de Guimarães Rosa - ainda que esta deixe mais clara a elaboração significante do tesouro mnêmico:

 

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não[22].

 

Voltando à argumentação de Schapiro, pode-se afinal asseverar que nela a aporia reside em que o sujeito é reduzido a um espelho das tradições. Isto é: Schapiro forcluiu a subjetividade. Tal como disse Andersen[23], a tese de Schapiro apresenta um problema que pode ser crônico em certas investigações históricas, e nas quais se supõe que nada existe sob o sol sem que traga atrás de si um precedente, precedente no qual o sentido do novo já estaria dado. Ora, é indubitável que a tradição acumula em proveito dos homens do presente a experiência daqueles que não mais se encontram no mundo. Entretanto, tal herança é incapaz de substituir-se à contração pelo sujeito de sua dívida simbólica em face dos antepassados. Ou seja: também Leonardo teve de adquirir aquilo que herdou, sendo que tal aquisição estava sobredeterminada por conteúdos mnêmicos latentes.

 

Mas não conclua o leitor que os comentadores de Leonardo deram por resolvido o estatuto da recordação. A. Marinoni[24] supôs que ela derivara de um sonho infantil - tese condizente com a de Freud. Já C. Pedretti[25], embora tenha em vista que tal evento é improvável, não chega a descartar que ele possa ter ocorrido num quente verão toscano. E como disse Andersen[26], a boca de um bebê após a amamentação, ou a de uma criança após ingerir guloseimas, transforma-se numa fonte de olores que pode atrair pequenos insetos - e por que não aves? Em uma palavra: embora não seja provável que a recordação derive de um evento real, tal hipótese não pode ser completamente descartada. Contudo, mais convincente é admitir que se trata de um topos literário, embora se trate de um topos que Leonardo adquiriu de modo irrepetível, e o que implica aí o sujeito.

 

A mãe e a infância de Leonardo

No que toca à mãe e à primeira infância de Leonardo, Schapiro entendeu que Freud estava errado ao admitir que mãe e filho mantiveram um contato estreito. Leonardo era filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci com uma humilde camponesa, Catarina. Segundo Freud, o renascentista teria ficado privado da companhia do pai na primeira infância, uma vez que Ser Piero - um tabelião em florescência profissional - viria a contrair seu primeiro matrimônio em 1452, ano do nascimento de Leonardo. Para além, entretanto, desse componente histórico, Freud se baseia na recordação infantil para sustentar a hipótese da privação. Para o psicanalista, o que o primeiro estrato da recordação encobre é a magnitude fantasmática da mãe nas formações inconscientes de Leonardo. Isto é, o que está encoberto aí é, de início, o comércio entre mãe e filho, e o qual, ante o distanciamento do pai, exacerbou-se a ponto de a mãe supercompensar essa dupla falta - a do homem, para ela; e a do pai, para seu filho - devotando um amor incondicional ao pequeno[27]. E bem se sabe que o comércio entre a mãe e sua criança de peito tangencia uma relação amorosa plenamente satisfatória, a qual saturaria desejos inconscientes cuja insatisfação estrutural é condição para a subjetivação do infans.

 

Para Schapiro, a descoberta de um registro - três décadas após a publicação do texto de Freud - atribuído ao avô paterno de Leonardo - o tabelião Antônio -, e no qual este declarou o nome do padre que batizou Leonardo e os dos padrinhos - que eram avizinhados da família paterna -, imporia admitir que Leonardo foi criado pelos avós. Não obstante a descoberta de tal registro, outros biógrafos - que escreveram já cientes da existência dele - sustentaram que mãe e filho estiveram em contato íntimo. White afirma que "o recém-nascido foi entregue [pelos avós paternos] à Catarina para que ela o criasse"[28], de modo que ela serviu como ama-de-leite por um ano e meio, costume que era socialmente aceito em havendo diferença social entre o casal. Já Andersen[29] pondera que uma vez que não há registros que permitam afirmar por quanto tempo Leonardo ficou distante do pai, não há também meios de dizer por quanto tempo Leonardo foi amamentado, sendo que à época as crianças mamavam até três anos de idade. De toda forma, o fato é que os autores concordam que Leonardo ficou de início aos cuidados da mãe, embora não haja clareza do tempo envolvido aí. Vale dizer que Andersen e White atentaram, ademais, para o fato de que os avós paternos Antonio e Lucia - além do tio Francesco - amaram Leonardo, e que não o abandonaram com Catarina. Tal hipótese, que é verossímil, não contradiz a interpretação de Freud, como poderia parecer, uma vez que ela não depende de um isolamento pleno, mas do distanciamento do pai e, sobretudo, do apetite imaginário da mãe pela criança, isto é, da anexação narcísica da criança enquanto falo imaginário da mãe.

 

Para além do consenso com respeito ao vínculo inicial entre Catarina e seu primogênito, Andersen e White, no que toca ao tema do psiquismo infantil, estão ambos tomados pela psicologizada lógica da frustração, segundo a qual seria a frustração infantil que engendraria patologias psíquicas. Por conta disso, os dois procuram provar que a infância de Leonardo foi feliz, prazerosa[30], ou "passada em um ambiente idílico, mas toldado por sombras"[31], o que então implicaria aí uma família estruturada (sic). E se esta era estruturada - terminologia que é psicologizante -, Leonardo não poderia ter sido uma criança frustrada, o que supostamente faria ruir a biografia de Freud, dado que sem isso não haveria complexos infantis. Ora, tal psicologização fica aquém das conjecturas de Freud. Para além de tais frustrações, o que está em causa para a psicanálise é a produção de inscrições inconscientes no aparelho psíquico, e as quais se (de)cifram pela maneira irrepetível com que uma criança consegue ou não se haver com as vicissitudes que marcam sua socialização, já que todo pequeno tem de realizar sacrifícios pulsionais a fim de ingressar - ou, inicialmente, a fim de ser introduzido pelos seus pais - no mundo da vida em comum. Em uma palavra: as críticas de Andersen e White não são, nesse ponto, relevantes para o debate sobre a subjetivação.

 

Duas fábulas de Leonardo sobre a maternidade

Não obstante tenha sido Freud quem viu por trás do milhafre da recordação a figura fantasmática da mãe - nunca antes suposta aí -, Schapiro insistiria em dizer que, ainda que o milhafre tenha despontado numa fábula de Leonardo sob uma figuração maternal - como veremos -, tal ave não encarnava o "modelo da boa mãe"[32] suposto por Freud. É curioso que já White diga o oposto do que foi afirmado por Schapiro sobre a Catarina de Freud. Segundo White, Freud supostamente acreditou "que Leonardo guardava um ressentimento profundamente arraigado para com a mãe, por ‘tê-lo deixado ir' quando bebê"[33], ou que o "trauma infligido pela mãe levou Leonardo a diversificar a sua busca intelectual ou a tratar dos assuntos de maneira por demais superficial"[34].

 

Ora, como podem tais autores ter chegado a conclusões tão díspares? Talvez porque ambos subestimaram uma noção elementar em psicanálise: a ambivalência. Vejamos como Freud se pronunciou sobre Catarina: "Porque a ternura de sua mãe lhe foi fatal [...]. A violência das carícias evidentes em sua fantasia sobre o abutre eram muito naturais. No seu amor pelo seu filho, a pobre mãe abandonada procurava dar expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia por outras mais"[35].

Em outra passagem, Freud versa conceitualmente sobre tal questão:

 

[Quando a pulsão sexual é particularmente prematura], a criança porta-se como o adulto, na medida em que transforma sua libido em angústia quando não pode satisfazê-la; e, inversamente, o adulto neurotizado pela libido insatisfeita comporta-se como uma criança em sua angústia: começa a sentir medo tão logo fica sozinho, ou seja, sem uma pessoa de cujo amor se acredite seguro, e a querer aplacar esse medo através das medidas mais pueris[36].

 

Na fábula de Leonardo intitulada Inveja, lê-se sobre o milhafre que, quando tal ave nota em seu ninho que as crias estão gordas, ela as bica nas costas e as deixa sem comida[37]. Ora, o fato de o milhafre despontar numa fábula de Leonardo sob uma figuração maternal já deveria ter rendido a Freud algum reconhecimento pelo mérito de suas análises, uma vez que o psicanalista introduziu inteligibilidade num ponto onde ninguém suspeitara haver. Contudo, nem todos os literatos estão dispostos a reconhecer isso. De toda forma, vejamos mais esta passagem de Freud: "O artista parece ter usado o sorriso bem-aventurado da Sant'anna [no quadro A virgem, o Menino e Santa Ana] para negar e encobrir a inveja que sentiu a pobre mulher quando foi obrigada a entregar o filho à sua rival nascida em berço mais nobre [D. Albiera, a primeira esposa de Ser Piero], assim como lhe havia entregado o pai"[38].

 

Supomos que se lançaria um pouco mais de luz sobre isso ao se invocar uma teoria sexual infantil arcaica. Por meio desta os pequenos compõem "uma longa lista de acusações e queixas contra a mãe, as quais, supõe-se, justificam os sentimentos hostis da criança"[39]. Tais sentimentos hostis aludem à ambivalência: "A censura contra a mãe, que remonta à época mais remota, é a de que esta deu à criança muito pouco leite - censura que lhe é feita como falta de amor. [...] Mais parece que a avidez da criança pelo primeiro alimento é completamente insaciável, que a criança nunca supera o sofrimento de perder o seio materno"[40]. Talvez, o contexto no qual supomos o desenrolar da infância de Leonardo - em que ele teve de deixar o seio materno para ser reconduzido à casa paterna - tenha propiciado que a ambivalência de tal teoria infantil ganhasse relevo em seu psiquismo.

 

Schapiro, no entanto, argumenta hipoteticamente - e contrariamente a Freud - que algum familiar de Catarina poderia ter feito as vezes de pai de Leonardo antes de este ter sido reconduzido à família paterna; ademais, Catarina poderia ter sido hostil à ilegitimidade da criança; ou mesmo, ela poderia ter compensado a falta de seu pequeno mediante o nascimento de outros filhos[41]. Novamente, temos de reconhecer que tudo isso é plausível. Talvez não se possa, afinal, inferir a partir de elementos fantasmáticos atribuídos a Leonardo certos fatos que ditaram o desdobrar de sua infância. Em que pese, no entanto, tal dificuldade, não se deve perder de vista outra fábula do renascentista, e a qual tem como tema o amor materno excessivo. O título é "A macaca e o passarinho":

 

Encontrando a macaca um ninho de passarinhos, toda contente procura aproximar-se, mas sendo eles já capazes de voar, só conseguiu apanhar o menor. Cheia de alegria, com ele na mão foi para a sua toca; e pondo-se a olhar para o passarinho, começou a beijá-lo; e levada pelo profundo amor, tanto o beijou e revirou e apertou que lhe tirou a vida. Aplica-se àqueles que, por não castigarem os filhos, lhes fazem mal[42].

 

A origem dessa fábula remete a Plínio e a Esopo. Mas o notável é que no original não há referência aos passarinhos, o que implica que também aí Leonardo adquiriu o que herdou. A versão original conta que uma macaca, tendo gerado dois filhotes, ama o primeiro e menospreza o segundo. Todavia a macaca, por abraçar com violenta paixão o filhote favorito, o sufoca, enquanto o outro cresce e se torna um adulto. "O significado da fábula", diz Beck, "é que o destino é mais forte do que todo o nosso cuidado; amor excessivo ou incontrolado irá destruir o objeto de afeição"[43]. Como se vê, Leonardo substituiu nessa fábula os filhotes da macaca pelos passarinhos, sendo que apenas o menor destes - o menos capacitado para voar, para seguir por si seu destino - foi apanhado. Solitário e passivo, na toca para onde foi conduzido ele é objeto do desmesurado amor da macaca, a qual o beija arrebatadamente até roubar-lhe o destino. Ou melhor, até preparar-lhe um, já que o significado da fábula é que a ausência de castigos, derivada do amor excessivo, é fatídica ao filho favorito, enquanto os outros supostamente seguem seu destino. Beck, em face dessa fábula, conclui que não se pode rejeitar uma interpretação de teor psíquico, isto é, não se podem ignorar seus conteúdos latentes. Pensamos, com efeito, que tais conteúdos condizem com a interpretação de Freud de que a ambivalente ternura da mãe do renascentista foi decisiva para este. Isto é, o apetite imaginário de Catarina lhe deve ter sido fatídico, ou assim pareceu ao florentino, já que tal amor - manifestado pela tão pungente oralidade - lhe teria feito mal, isto é, lhe teria imposto um destino. Em se dando então ouvidos a esses conteúdos latentes, pode-se admitir que o encobrimento da mãe na recordação infantil manifestou que Leonardo nada queria saber acerca de que nosso destino é por princípio - e não apenas acidentalmente - preparado por nossas mães, isto é, que de início nosso destino é inconscientemente cifrado por nossas primeiras educadoras.

 

Considerações finais

Fazendo uma breve retomada, vimos que a paridade significante entre abutres e milhafres permitiu a Freud acertar no milhafre quando visou o abutre. Vimos também que a interpretação sobre a recordação implicava a mãe em seu comércio com o filho. Relembramos, depois, a crítica de Schapiro a essa interpretação, e argumentamos que não há contradição entre o teor poético da recordação e a elaboração de conteúdos latentes. Por fim, observamos que nada disso impede que a recordação possua um fundo semirreal. Não obstante tal observação, é certo que a recordação obedece a padrões literários, padrões aos quais a psicanálise articulou a subjetividade.

 

Na sequência, verificamos que o fato de a família paterna ter preservado a guarda do pequeno Leonardo na ausência do pai não fragiliza a hipótese de que Catarina tenha cuidado de seu pequeno: na verdade, isso a torna até mais provável. E se é provável tal comércio entre mãe e filho, seria então o caso de apurar se ele esteve em consonância com a interpretação de Freud. Por óbvio, não há registros históricos que o permitam fazer com segurança. Sendo assim, resta verificar o legado de Leonardo. E Schapiro foi quem chamou atenção para a fábula Inveja, que versa sobre as bicadas do milhafre nos filhotes. Entretanto, a interpretação desse autor sobre a Catarina de Freud o impediu de compreender a ambivalência atribuída pelo último ao amor da mãe pelo filho. Pois bem, Beck chamou atenção para a fábula da macaca. Ora, quanto a essa fábula, pode-se até preferir entregar nas mãos do acaso a introdução aí de um pássaro cujo destino foi selado pelas mãos de tão amorosa cuidadora. No entanto, o que não é possível é afirmar que Leonardo replicou a fábula original, ou, então, negar que nela ele mobiliza conteúdos manifestos que são igualmente capitais na recordação, como pássaro, a absoluta passividade infantil, destino e, particularmente, a impressionante oralidade. Ora, mas para tentar avançar mais um pouco nesse ponto, deveremos considerar que não apenas as duas fábulas e a recordação atuam como significantes da anexação do filho pela mãe, senão que o topos dos presságios infantis o faz. Isto é: a não ser que se queira creditar aos céus ou à natureza sob a forma de formigas, abelhas e aves a destinação da vida de um recém-chegado (ou então a genes e neurônios, como se quer hoje), deve-se antes preferir creditá-la inicialmente a seus outros primordiais, e, mais imediatamente, a sua primeira educadora. Desse modo, o próprio topos dos presságios - que cifra aquilo de que nada se quer saber, isto é, aquilo que é sempre objeto de recalque - fornece a chave a para a sua decifração, na medida em que explicita a pungência da oralidade na destinação de um recém-chegado, oralidade que, no que toca à constituição subjetiva, implica primariamente a mãe, a cuidadora.

 

Pois bem, pode-se dizer ao cabo de tudo que a psicanálise contribuiu para desvendar traços da biografia de Leonardo? Acreditamos que sim, ainda que não se possa conferir a isso, é claro, um sentido absoluto. Tal como ocorre com toda empresa racional, só se atingem certos resultados partindo-se de certas premissas, e, além disso, até mesmo nas ciências empíricas as conclusões obtidas não independem do que o experimentador aí introduz. Neste artigo, foi pressuposta a produção de inscrições psíquicas inconscientes decorrentes dos sacrifícios pulsionais exigidos a todo pequeno para que ele venha a ser introduzido por seus outros primordiais no mundo que lhe preexiste. Isto é: assumiu-se que "aquilo que se inscreve na criança atuará como um texto cifrado no adulto"[44]. Ora, foi a partir disso, por exemplo, que as fábulas e a recordação infantil, tal como ocorre a tantas criações de Leonardo, puderam despontar como textos cifrados do ambivalente amor materno e de sua tão vigorosa oralidade.

 

Quanto à biografa em tela, foi por meio de um modo específico de decifrar conteúdos manifestos e de relacioná-los aos latentes que se vislumbrou certa ordem de determinações onde não se supunha haver uma. Isso significa que aquilo que alguns biógrafos descobrem mediante intuições brilhantes com respeito a conteúdos latentes na vida e na obra de seus personagens corresponde, no caso da psicanálise, ao modo como esta enseja a compreensão de que - na extimidade da vida subjetiva - as inscrições inconscientes sobredeterminam as produções manifestas.

 

Por fim, é preciso então que se deem ouvidos a Leonardo e se reconheça que o florentino estava afinal correto quando disse que seu destino fora definido no berço, e pela boca. Mas, para além disso, na recordação a cifragem da mãe se prestou a encobrir aquilo que sempre se recalca: que somos todos - inicial e inconscientemente - criados, inventados por nossas mães. Nesse sentido, o milhafre em particular e as aves em geral foram amiúde alçados nas fábulas, pesquisas, pinturas etc. como elaborações do tesouro mnêmico, isto é, como significantes da implantação do significante materno na criança, implantação latente que deflagra a humanização de um recém-chegado ao direcioná-lo - tal como faz um leme - a este ou então àquele rumo[45].

 

A particular concepção psicanalítica de subjetivação - que não autoriza qualquer sorte de análises selvagens - permitiu ainda que o personagem Leonardo irrompesse como um sujeito que, embora tributário de uma forma histórica de socialização, não se limitou a ser um espelho dela. Eis que a psicanálise propiciou entrever - sem que com isso se tenha pretendido esgotar um enigma inesgotável - rasgos de uma vida singular. Por fim, muitos desses rasgos parecem mesmo ter atuado na vida de Leonardo como cifras da - simbolicamente traumática - violência das carícias maternas, fato esse cujo teor pressagioso o renascentista foi afinal o primeiro a admitir, ainda que ele o tenha feito na medida em que talvez o soubesse sem o saber, isto é, na medida estranhamente familiar do saber não sabido do inconsciente.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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